Resíduo da indústria cervejeira tem alto valor nutricional
Bagaço de malte pode ser empregado em alimentos à base de proteína vegetal
Felipe Mateus
Texto
Antonio Scarpinetti
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A indústria cervejeira do Brasil é uma das maiores do mundo. O país, o terceiro maior produtor da bebida, fica atrás apenas da China e dos Estados Unidos. De acordo com o Sindicato Nacional da Indústria de Cerveja (Sindicerv), o setor produziu 15,4 bilhões de litros de cerveja e faturou R$ 77 bilhões em 2022, o equivalente a 2% do produto interno bruto (PIB) nacional, e responde por mais de 2 milhões de empregos diretos e indiretos. Entre rótulos conhecidos nos supermercados e marcas pequenas de produção artesanal, as cervejarias brasileiras contam com cerca de 43 mil produtos registrados.
Mesmo com toda essa pujança, um dos resíduos dessa produção poderia ser melhor aproveitado de modo a agregar ainda mais valor à cadeia produtiva. Trata-se do bagaço de malte, conhecido pela sigla BSG (brewer’s spent grain). Rico em fibras e proteínas, o BSG resultante da produção de cerveja é comumente usado, hoje, como ração animal. Só em 2022, estima-se que foram geradas 2.500 toneladas do produto.
Uma pesquisa desenvolvida na Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp buscou analisar o potencial de uso do bagaço de malte na produção de alimentos à base de proteínas vegetais. Em sua tese, Aurenice Mota da Silva realizou experimentos a fim de identificar os melhores parâmetros para a extração de proteínas do BSG e as melhores condições para incorporá-lo a um alimento análogo à carne, feito com proteína de soja. O estudo contou com a orientação da professora Ana Carla Sato.
Fonte de proteínas
O malte é produzido pela germinação, seguida da secagem e torrefação dos cereais, que serão então fermentados para criar a cerveja. Esse processo define os aromas e sabores da bebida. Vários grãos podem ser utilizados, sendo a cevada o mais comum. Após esses procedimentos, o malte é aquecido em água para que o amido dos grãos seja liberado e converta-se em açúcares fermentáveis. O líquido obtido por esse processo, chamado de brassagem, passa por uma filtragem e por outras etapas até chegar à cerveja. Já os resíduos que sobram compõem o BSG, formado pela camada mais externa dos grãos. Em média, o BSG pode conter entre 15% e 30% de proteínas e de 40% a 55% de fibras solúveis e insolúveis. “Por se tratar de um resíduo, é um desperdício não aproveitarmos esse bagaço, pois as proteínas são nutrientes de alto valor biológico e econômico”, analisa Silva.
A pesquisa primeiro buscou identificar a melhor forma de extrair as proteínas do BSG. Silva utilizou o método da extração alcalina, na qual as proteínas do produto, colocado em um solvente cujo pH e temperatura são elevados de forma controlada, desprendem-se dos outros resíduos. A melhor condição encontrada foi a proporção 1:17 – uma parte de BSG para 17 de solvente –, com pH 11 e temperatura de 60 °C, resultando na liberação de 87% das proteínas.
No entanto, conforme as condições variaram, as propriedades das proteínas obtidas mudaram. “Não adianta termos apenas um novo ingrediente. Ele precisa ter qualidade para a aplicação em alimentos”, justifica Sato. Quando submetido a um pH mais próximo do neutro (pH 7) e a uma temperatura mais baixa, o BSG liberou uma quantidade menor de proteínas, mas essas substâncias apresentaram propriedades responsáveis por facilitar seu uso, por exemplo, em emulsificantes, úteis na fabricação de molhos e sorvetes. Já com um pH e temperaturas mais altos, a liberação de proteínas aumentou, mas essas sofreram alterações em sua estrutura e passaram a apresentar uma maior capacidade de formar géis, importantes para a produção de salsichas, mortadelas e produtos que precisam de viscosidade.
Outra frente de trabalho, levada adiante durante um estágio da pesquisadora na Universidade de Manitoba, no Canadá, consistiu na aplicação do BSG na fabricação de produtos análogos à carne e feitos com proteínas de soja. Foram testadas quatro formulações, com 7%, 15%, 23% e 59% de BSG, e três níveis de umidade, 60%, 65% e 70%, em processo de extrusão de alta umidade, no qual o alimento adquire forma a partir da combinação de calor e pressão. O uso de 7% e 15% de BSG melhorou a textura do produto à base de soja, que passou a apresentar fibras mais parecidas com as de produtos de carne tradicionais. Já porcentagens mais altas do bagaço não conferiram esse aspecto fibroso das carnes, o que seria menos interessante para o tipo de produto almejado. Outras vantagens encontradas no caso do uso de BSG: uma maior digestibilidade do alimento e mais maciez. “As fibras [do BSG] têm capacidade de reter água, por isso o produto análogo à carne ficou mais macio”, conta Silva.
Mercado em expansão
A busca por fontes de proteínas alternativas às carnes é uma tendência em franco crescimento no país. Números divulgados pelo The Good Food Institute (GFI) do Brasil, organização que incentiva o desenvolvimento de pesquisas e tecnologias para o setor, mostram que, em 2022, o mercado de substitutos vegetais para alimentos de origem animal cresceu 42% em relação a 2021, alcançando R$ 821 milhões em vendas no varejo. No mesmo ano, segundo o órgão, 67% dos brasileiros reduziram seu consumo de carnes e, desses, 52% alegaram ter mudado de hábito devido a uma preocupação maior com a saúde, o bem-estar dos animais e o meio ambiente.
“Nosso alimento poderia compor uma nova geração de produtos vegetais que, além de não conter ingredientes de origem animal, são mais saudáveis, têm menos aditivos e corantes e contêm mais fibras”, destaca Silva, ressaltando que as pesquisas na área não visam substituir por completo a carne, mas ampliar as alternativas à proteína animal. A pesquisadora e sua orientadora também apontam que a combinação do BSG, derivado de um cereal, com uma leguminosa, como a soja, apresenta vantagens nutricionais por resultar em um somatório de aminoácidos essenciais complementares. Em última instância, uma nova fonte de proteínas, barata e disponível em grandes quantidades no contexto brasileiro, pode tornar o mercado ainda mais diversificado. “Com o concentrado proteico de BSG, quem sabe um dia não teremos no mercado um whey protein de cerveja, por exemplo?”, imagina Silva.