Pesquisadores comprovam efeito protetivo de saberes ancestrais
Artigo evidencia a importância dos povos indígenas e comunidades tradicionais para o meio ambiente
Felipe Mateus
Texto
Antonio Scarpinetti
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A relação dos povos indígenas e de comunidades tradicionais com o meio ambiente revela-se essencial para a conservação da biodiversidade. Essa é a constatação de um estudo publicado na revista Nature Ecology & Evolution, elaborado por um grupo de pesquisadores de diversas instituições, entre elas o Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Unicamp, e por indígenas da região do Alto Xingu, no Mato Grosso.
O artigo, de revisão bibliográfica, mapeou publicações que investigaram a relação entre a biodiversidade e a cultura desses povos. Por meio do estudo de caso de cinco modelos de conservação bem-sucedidos, denominados pelos pesquisadores de “pontos de esperança socioecológica”, o trabalho sublinha a importância dos conhecimentos tradicionais, acumulados ao longo de milhares de anos, e a necessidade de esses saberes serem valorizados e assimilados pela comunidade científica na busca por soluções transdisciplinares quando se trata dos problemas enfrentados atualmente pela humanidade.
“Por meio de suas práticas culturais, de sua relação com o ambiente, do seu conhecimento ecológico local, gerado ao longo de milhares de anos, a ação de povos tradicionais resulta em manutenção da diversidade biológica”, sintetiza Maíra Padgurschi, pesquisadora colaboradora do Cepagri, coordenadora do eixo de estudos do programa AmazonFace sobre impactos socioambientais e uma das autoras do artigo.
Visões antagônicas
A ideia de uma dicotomia entre sociedade e natureza perpassa o pensamento urbano e industrial de hoje, determinando a forma como as pessoas manejam a terra e os recursos hídricos. A agricultura atual, por exemplo, apesar de sua alta produtividade, baseia-se na monocultura e, no longo prazo, provoca uma redução da diversidade biológica, um aumento da resistência natural de pragas e um agravamento de fenômenos climáticos adversos. Nesse cenário, consagra-se um ideal na ecologia segundo o qual, para haver preservação do meio ambiente, é necessário separar os seres humanos e a natureza.
O estudo contrapõe essa perspectiva apresentando a visão de mundo dos povos tradicionais, baseada na existência de uma conexão entre todos os elementos que compõem o meio ambiente, incluindo os seres humanos e suas estruturas sociais. Ou seja, não existem fronteiras entre natureza e sociedade. Essa concepção modela a forma como os povos indígenas e as comunidades tradicionais convivem com a natureza, pois trata-se de uma relação negociada, pautada no respeito aos limites impostos pelo meio ambiente. “É como se nós nos relacionássemos com uma pessoa próxima, de nossa família, agindo com cuidado para não a desrespeitar”, afirma Padgurschi. Segundo a pesquisadora, em muitos casos, isso transparece nas diferentes cosmologias desses povos, que consideram árvores e rios, por exemplo, entes sagrados, o que vai de encontro ao próprio conceito de “recursos naturais”. Todos os elementos da natureza revelam-se sujeitos em interação contínua.
O artigo questiona a perspectiva tradicional da ecologia ao destacar estudos segundo os quais mais de um terço das áreas naturais conservadas, que sofreram baixo impacto das atividades produtivas, encontram-se dentro de territórios indígenas. Para os pesquisadores, esse estado de conservação resulta da visão de mundo desses povos. Padgurschi argumenta que tal conduta humana proporciona benefícios às regiões afetadas, como é o caso da chamada “terra preta de índio”, solo fértil encontrado na Amazônia e produto da ação de povos originários. “Tudo isso mostra a importância dessas populações para a manutenção da biodiversidade e apresenta formas de manejo que podem ser alternativas”, argumenta.
No trabalho publicado, os pesquisadores destacam cinco experiências observadas no Território Indígena do Xingu. Em uma primeira, o manejo da floresta aumentou a diversidade biológica de culturas alimentares e medicinais. Em outra, implementou-se um modelo bem-sucedido de preservação do pirarucu (Arapaima gigas) no Rio Solimões, peixe sob ameaça de extinção que teve sua população ampliada com o envolvimento de comunidades tradicionais em sua gestão. Em uma terceira, o turismo arqueológico-ecológico no Parque Nacional da Serra da Capivara passou a ser gerido por moradores locais, levando a uma melhora. Em uma quarta, o uso de saberes Xavante no manejo do fogo em áreas do cerrado mostrou-se eficiente. E, por fim, houve uma dispersão de sementes de araucária no sul da Mata Atlântica por meio dos deslocamentos de populações indígenas. A respeito desse último tema, diz Padgurschi: “A dinâmica natural desses povos de se deslocar e levar as pinhas das araucárias incrementa a diversidade das araucárias. O deslocamento é um mecanismo de dispersão, assim como fazem as aves, por exemplo”.
Futuro transdisciplinar
O fomento à diversidade biocultural reúne especialistas de diversas áreas em torno de objetivos comuns, entre os quais a incorporação, pelo fazer científico, dos saberes e práticas dos povos originários e de comunidades locais. “A transdisciplinaridade envolve as populações tradicionais não apenas como objetos de pesquisa, mas como atores, e engloba visões de mundo diferentes”, afirma a pesquisadora, ressaltando a presença dessa abordagem nos novos acordos mundiais de preservação ambiental. É o caso do Marco Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal, firmado em 2022, na 15ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica, que inclui, em 7 de suas 23 metas, a valorização dos saberes de povos originários.
Segundo Padgurschi, o desenvolvimento de pesquisas na área mostra-se um desafio a ser necessariamente enfrentado pela ciência. “Vamos conseguir entender problemas complexos e buscar soluções conjuntas quando, por meio do respeito mútuo, compartilharmos visões de mundo diversas e chegarmos a uma transdisciplinaridade real.”