Patroas de domésticas e o sindicato sem sindicalismo
Empregadoras mobilizam-se para conter avanço dos direitos trabalhistas dentro de suas casas
Adriana Vilar de Menezes
Texto
Antonio Scarpinetti
Fotos
Para entender uma relação desigual, é preciso entender as partes que a compõem, sentencia a antropóloga Júlia Vargas. “Estamos falando de uma relação histórica e estruturalmente desigual no Brasil: a do trabalho doméstico remunerado”, afirma a autora da dissertação de mestrado “O mundo patronal em foco: Empregadoras(es), sindicatos e perspectivas patronais no trabalho doméstico remunerado”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, sob orientação da professora Susana Soares Branco Durão.
Vargas estuda o tema desde a graduação e descobriu haver pouca pesquisa específica, principalmente quando se trata dos ocupantes da posição de empregador: a patroa (ou o patrão). Decidiu então focar os sindicatos patronais. “De um modo geral, isso é muito importante na antropologia: olhar para quem está em uma posição de poder, no caso, os empregadores.”
No Brasil, há cerca de 6 milhões de trabalhadores domésticos com remuneração mensal, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com dados de 2023, menos de 25% têm carteira registrada. E o número de trabalhadores formais vem caindo, diz Vargas. “Mas, ainda assim, as mensalistas continuam sendo maioria no Brasil e representam um número muito expressivo.”
Para a pesquisadora, o trabalho doméstico remunerado sintetiza muitos dos problemas relativos às desigualdades existentes no país. “O tema se tornou um tabu por causa da dificuldade de encarar esses problemas”, diz. “Há um certo consenso de que muita coisa no trabalho doméstico é herança de coisas não resolvidas desde a escravidão, ou seja, de que é parte do racismo estrutural.”
Vargas fez um mapeamento dos sindicatos patronais no Brasil. O primeiro foi fundado em 1989, na capital paulista, São Paulo. A pesquisadora identificou 26 sindicatos patronais do trabalho doméstico criados no Brasil entre 1989 e 2014. A maioria, porém, não existe mais. Apenas nove continuam em atividade, desses apenas dois com registro no Ministério do Trabalho – o de São Paulo e o de Campinas – e capazes de efetivamente negociar como categoria laboral, criar mecanismos tais quais as convenções coletivas e ter representação política e negocial.
A organização das trabalhadoras domésticas em sindicatos, no entanto, já havia acontecido mais de 50 anos antes, quando em 1936, em Santos (SP), foi fundado o sindicato das domésticas, por Laudelina de Campos Mello. Em 1972, essas mulheres conquistaram a obrigatoriedade do registro em carteira de trabalho, mas, segundo Vargas, “a lei não se cumpria”. Somente após a Constituição de 1988, essa conquista ganhou evidência, mesma ocasião em que se estabeleceu o direito de sindicalização para as categorias profissional e patronal.
“A Constituição mexeu com a estrutura dos empregadores domésticos, que começaram a se organizar em sindicatos”, diz a pesquisadora.
Entre as conclusões da dissertação de Vargas, está a de que os sindicatos patronais representaram uma resposta aos esforços de mobilização dos trabalhadores domésticos. “A categoria patronal teve receio de perder direitos perante algumas conquistas dos trabalhadores. Os empregadores se entendem como a parte enfraquecida da relação de trabalho doméstico.”
Os fundadores dos sindicatos patronais do trabalho doméstico são pessoas ligadas ao direito do trabalho, principalmente advogados trabalhistas. “Há essa relação muito próxima com o direito do trabalho no sentido de se proteger de ações judiciais e de fazer essa gestão jurídica, como elaborar um contrato de trabalho, um processo de demissão, o cálculo demissional.” A maior parte dos 26 sindicatos patronais identificados por Vargas está no Sudeste, mas eles existem na maioria dos Estados brasileiros.
A pesquisadora entrevistou nove empregadoras: todas brancas, das quais apenas uma não era casada e apenas uma sem filhos. Essas mulheres tinham entre 39 e 65 anos de idade, eram de classe média e média alta e contavam, todas, com formação superior completa (algumas até com pós-graduação). A responsabilidade pela contratação e gestão do trabalho doméstico ainda recai sobre as mulheres, afirma Vargas. “Os maridos quase não aparecem. Isso, porém, não significa que não estejam lá e que não sejam importantes.”
Discurso
Historicamente, o trabalho doméstico é desvalorizado e, em grande parte, realizado por mulheres negras. “Tudo isso tem a ver com essa relação de não se ver o trabalho doméstico remunerado como um trabalho. Daí o discurso: ‘Ela é como se fosse da família’. Isso justifica, por exemplo, não pagar hora extra”, diz a pesquisadora, salientando que houve uma certa atualização de alguns discursos.
Vargas identificou um discurso de profissionalização entre as empregadoras, tomadas pela ideia da meritocracia: “Vocês querem direitos? Então têm de agir como profissionais, têm de cumprir seus deveres. O ponto, no entanto, é: quem vai definir esses ‘deveres’? Muitas vezes, trata-se das preferências e das expectativas particulares de cada empregador. E surge esse discurso do: ‘É um trabalho como outro qualquer’. E não é um trabalho como outro qualquer, porque é um trabalho embebido de todas as relações estruturais e desiguais, que lida com coisas muito íntimas porque o íntimo é o objeto do trabalho. A gente vê essas esferas do público e do privado como se fossem coisas separadas. Quando se misturam, acabam abrindo portas para vários tipos de exploração e abuso”.
Às expectativas profissionais, juntam-se as expectativas morais: como a pessoa se veste, como se comporta, se é séria ou sorridente. A questão da confiança revela-se o principal ponto da moralidade. Vargas acredita ser preciso avançar no estudo sobre o trabalho doméstico no país. No doutorado, a pesquisadora pretende seguir a mesma linha de investigação, comparando o Brasil e a Argentina sob a mesma perspectiva patronal do trabalho doméstico remunerado.
Para a orientadora da dissertação, essas relações atravessam ainda questões raciais e de gênero. “A Júlia escolheu um campo de trabalho difícil na pesquisa, que levanta uma série de questões sobre o nosso lugar e sobre a maneira como conduzimos isso eticamente. Foi bastante inovador e corajoso da parte da Júlia, uma mulher negra, estudar esse assunto. Esse diálogo interdisciplinar revela-se muito importante. Fez-se necessário dialogar com a sociologia, a economia, a história e o direito, além da antropologia”, afirma Durão.