Estudo confirma surgimento de nova espécie de borboleta por hibridização
Pesquisa em parceria com especialistas da Unicamp identifica fenômeno raro e de difícil comprovação científica
Marina Gama
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Antonio Scarpinetti
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A beleza e a diversidade das borboletas vão muito além das cores e dos formatos que encantam os olhos. Esses insetos desempenham um papel importante em estudos responsáveis por ampliar o entendimento sobre as espécies animais do planeta. As pesquisas em torno das borboletas, por exemplo, fundamentaram parte das ideias que culminaram na teoria da evolução de Charles Darwin. Passados quase dois séculos desde o surgimento da revolucionária teoria, esses seres continuam a desempenhar um papel vital na ciência, gerando conhecimento e comprovações que, anteriormente, eram inacessíveis devido a limitações tecnológicas. Um exemplo recente disso: um estudo publicado na revista Nature, no último dia 25, comprova o surgimento de uma nova espécie de borboleta amazônica por meio de hibridização.
Esse fenômeno evolutivo, que ocorre a partir do cruzamento de duas espécies diferentes, é considerado raro no mundo animal. O trabalho de pesquisa, liderado por cientistas da Universidade de York (Inglaterra) e da Universidade de Harvard (Estados Unidos), contou com a participação de uma equipe brasileira comandada pelo professor André Freitas, coordenador do Laboratório de Ecologia e Sistemática de Borboletas (Labbor) do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.
Segundo o artigo, a borboleta da espécie Heliconius elevatus surgiu do cruzamento de ancestrais das atuais Heliconius melpomene e Heliconius pardalinus. As análises genéticas e ecológicas indicam que os primeiros cruzamentos entre as duas espécies ocorreram há cerca de 180 mil anos, um espaço de tempo considerado curto na escala evolutiva.
Freitas acredita que a comprovação representa uma quebra de paradigma no estudo do processo de evolução da fauna. “A gente sempre espera que uma espécie ancestral dê origem a duas outras espécies pelo menos. E aqui se trata do contrário. Duas espécies dão origem a uma, e isso não é comum no caso dos animais.”
Árvore da vida
O estudo da história evolutiva de uma espécie ou grupo de espécies – cientificamente chamado de filogenia – pode ser representado pela imagem de uma árvore evolutiva (ou árvore da vida), na qual o “tronco” representa as linhagens ancestrais e as “ramificações”, os descendentes desses ancestrais. Geralmente, o surgimento de novas espécies no mundo animal ocorre quando um ancestral divide-se em duas ou mais espécies. A pesquisa demonstra um caminho diferente: a hibridização.
De acordo com Marianne Elias, coautora do artigo e pesquisadora do Institut de Systématique, Évolution, Biodiversité, do Muséum national d’Histoire naturelle de Paris (França), o estudo identifica na hibridização um propulsor do processo evolutivo por ser possível comprovar que esse evento sempre traz consequências. “Talvez esse fenômeno seja mais frequente do que pensamos. Até nos casos em que não há formação de uma nova espécie, mas somente uma mudança de um padrão de cor, por exemplo. Isso porque, no passado, ocorreu a hibridização com outra espécie, fazendo desse um motor potente da evolução”, explica Elias.
Freitas considera que o estudo dá um passo adiante na compreensão da biodiversidade, e não apenas na região neotropical, na qual o Brasil está inserido. O pesquisador conta que a América do Sul e a América Central mostram-se ainda mais ricas se comparadas com outras regiões, como a África tropical e a Ásia. “Só no gênero Heliconius, já identificamos três ou quatro espécies que podem ter origem híbrida. Imagine quantos outros grupos de insetos e artrópodes em geral podem ter se originado da hibridização! Esse estudo é mais uma peça que contribui para a compreensão da grande diversificação presente na América do Sul.”
Desafios do estudo
O estudo, que levou dez anos para ser concluído, mobilizou pesquisadores também do Peru, do Equador e da Colômbia. Um dos seus desafios foi a logística envolvendo o transporte de parte dos tecidos animais até os Estados Unidos para realizar o mapeamento genético. Apesar de o Brasil possuir tecnologia para a identificação do genoma, os custos mostraram-se proibitivos, explica Karina Silva-Brandão, pesquisadora colaboradora do IB, curadora no Museum of Nature do Instituto Leibniz (Alemanha) e responsável por todo o processo de encaminhamento dos tecidos para fora do país.
O mapeamento revelou-se crucial para descobrir a base genética de várias características que definem uma espécie. Entre essas características estão o padrão de cor, o formato das asas, as preferências por planta hospedeira, os feromônios sexuais, a escolha de parceiro e o tipo de voo. Apesar da transferência de parte do tecido dos animais para análise genômica, muitas das borboletas coletadas continuam no Brasil e podem ser vistas no Museu de Zoologia da Unicamp.
Passado e presente juntos
Um dos pioneiros dessa área no Brasil, o professor aposentado do IB Keith S. Brown Jr., inspirou gerações de pesquisadores. “Em 1977, o professor Brown propôs haver uma relação de um grupo de borboletas com outro que não tinha o mesmo padrão de asas. Com a tecnologia que possibilita acessar o genoma inteiro de uma espécie, comparando os genomas de cada uma das espécies, é possível hoje mostrar o que antes se inferia apenas por meio do padrão das asas”, explica Silva-Brandão.
Uma das autoras brasileiras do artigo, Leila Teruko Shirai, que foi pós-doutoranda e pesquisadora visitante do IB, destaca a grande contribuição da pesquisa: comprovar, a partir da análise genômica, os estudos realizados anteriormente por naturalistas. “Reunir ideias de naturalistas que vêm sendo pensadas há muito tempo e que antes não podiam ser respondidas sem genômica é um dos maiores ganhos da biologia molecular. Finalmente podemos afirmar que, de fato, o que era uma inferência aconteceu em determinada época. Estamos conseguindo concluir o quebra-cabeça por causa da tecnologia.”
Segundo Freitas, o caráter interdisciplinar do estudo é outro ponto de destaque. “Esse trabalho mostra a importância de a pesquisa acontecer unindo diferentes linhas para se entender um problema”, afirma. De acordo com o estudioso, embora seja um avanço responsável por abrir portas para novas descobertas, a biologia molecular muitas vezes, por si só, não basta. “Sem o respaldo do conhecimento de campo, da história natural e dos acervos dos museus, esses trabalhos se tornam incompletos, porque não dá para entender direito o que está acontecendo para além da parte molecular.”