Agronegócio sufoca pequenos produtores no Cerrado baiano
Pesquisa mapeia relações, contradições e conflitos na região do Matopiba
Eliane Fonseca Daré
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Arquivo pessoal | Antonio Scarpinetti
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O Matopiba, uma região de planejamento delimitada pelo Grupo de Inteligência Territorial Estratégico da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária Territorial (Embrapa Territorial), foi criado com foco no desenvolvimento do agronegócio. Fazem parte do território cerca de 340 municípios espalhados por uma área de 73 milhões de hectares situada nos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – quase todos dentro do bioma Cerrado, para onde a agricultura intensiva se expandiu a partir da segunda metade dos anos 1980, com destaque para o cultivo de soja, milho e algodão. Uma dissertação defendida por Matheus Dezidério Busca e orientada por Ricardo Abid Castillo no Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências (IG) analisa as relações e contradições entre o agronegócio e os pequenos agentes do campo na disputa pelo uso da terra nessa região.
Busca investigou a sobreposição e o conflito entre as diferentes divisões territoriais do trabalho. Um dos avanços teóricos da dissertação consiste no desenvolvimento de um conceito, inicialmente proposto pela geógrafa Denise Elias, da Universidade Estadual do Ceará (Uece), com base em uma teoria do geógrafo Milton Santos: a relação entre os circuitos inferior e superior da economia agrária. O circuito superior relaciona-se com o agronegócio globalizado, em especial a produção voltada ao abastecimento do mercado internacional e do nacional de comodities, como soja, milho, algodão e café. “Já o circuito inferior associa-se aos pequenos agentes do campo, sobretudo à agricultura familiar, aos assentados de reforma agrária, comunidades tradicionais, ribeirinhos, quilombolas, produtores sem-terra, dentre outros pequenos produtores tanto de economia de subsistência como da produção voltada para o mercado interno. Existe uma característica que dá certa unicidade ao circuito inferior, o fato de eles não serem modernizados”, explica o pesquisador.
De acordo com Castillo, o Matopiba tem enorme potencial para a expansão do modelo de agricultura intensiva e a delimitação da área foi muito importante a fim de que se pudesse aplicar subsídios para o desenvolvimento da agricultura, gerando mais exportação. Contudo esse planejamento não contemplou os pequenos produtores e não considerou devidamente as implicações negativas do projeto sobre suas economias e culturas. A pesquisa de Busca concentra-se na região oeste da Bahia, onde há a sobreposição de quatro formações regionais. “É uma região natural, que é o bioma Cerrado; uma região histórica, que é o Além de São Francisco; uma região produtiva, que são essas áreas propriamente produtoras de soja; e a região de planejamento Matopiba”, explica o orientador.
Outro fator para a escolha do oeste baiano como foco da dissertação foi o fato de o território abranger uma das áreas mais expressivas do Matopiba em termos de produção. Os pequenos agentes contribuem de forma destacada com a horticultura nessa região, que é também uma das principais produtoras de grãos do país – atividade comandada pelo grande agronegócio. “São porções de chapada com menor declividade, o que propicia a mecanização, ou seja, a lógica de produção das monoculturas”, explica Busca, que propôs uma cartografia técnico-científico-informacional da área pesquisada. “A partir desse mapeamento, apresentamos uma região produtiva do agronegócio, com nove municípios”, aponta o pesquisador.
O mais evidente conflito entre os agentes dos circuitos superior e inferior da economia agrária é a disputa pelo uso do território, disputa essa em meio à qual os pequenos produtores veem-se marginalizados. “Nas chapadas, agora ocupadas pelo agro, esses produtores faziam coleta de frutos, de ervas. Essas áreas também serviam de pastagem para a pequena pecuária. Já nos vales, eles estabeleciam as residências e a pequena agricultura”, explica Castillo. O docente chama atenção para a necessidade de aplicação massiva de agrotóxicos a fim de garantir o alto rendimento do grande agronegócio. “As monoculturas necessitam de muitos produtos químicos, sobretudo os agrotóxicos, porque criam um ambiente propício à disseminação de pragas”, explica. O uso massivo de agrotóxicos na chapada, com a consequente contaminação do solo nos vales, pode tornar inférteis as terras ocupadas pelos pequenos produtores. “Os agentes do circuito inferior sabem que existe um processo de tomada das terras, de expulsão, de envenenamento da água, do solo e do ar, algo intencional, até porque essas monoculturas precisam disso. Cada vez mais, essa pequena agricultura está ameaçada”, afirma Castillo.
Assim como acontece no interior paulista com a monocultura de açúcar, muitas cidades do oeste baiano se tornaram imprescindíveis para o desenvolvimento do agronegócio por apresentarem significativa especialização produtiva. Algumas delas, como o município de Luís Eduardo Magalhães, apresentam, no entanto, grande desigualdade socioespacial e elevado nível de vulnerabilidade territorial. Na cidade coexistem duas realidades contrastantes: de um lado, está a parte mais rica, com predomínio da classe média; do outro, a cidade precária, marcada pela pobreza. Ao longo da BR-242 e da BR-020, a cidade se organiza como se fosse um outdoor. “Ela vende essa ideia de cidade do agronegócio. Tanto que existe a feira Bahia Farm Show, uma versão da AgriShow de Ribeirão Preto. Na última edição, o evento contou com a presença de 81 bancos internacionais – chineses, americanos, alemães e japoneses”, destaca Busca. Já na parte pobre, predomina a falta de rede sanitária, de luz elétrica, de tratamento de água e de asfalto nas ruas.
Para o orientador, os resultados obtidos nesse trabalho devem-se à dedicação de Busca e ao acerto no avanço das inovações teóricas. Parte da pesquisa consta do livro Agricultura e Espaços Globalizados, publicado pela editora Hucitec e organizado por Castillo e pela pesquisadora de pós-doutorado do IG Mait Bertollo. Durante o mestrado, Busca ficou meio ano na Universidade de Innsbruck (Áustria), sob supervisão de Martin Coy, docente que estuda a agricultura e os conflitos socioambientais no Brasil desde a década de 1970. A experiência possibilitou ao pesquisador, que agora inicia seu doutorado, complementar seus estudos a partir de pesquisas publicadas por estudiosos austríacos sobre conflitos socioambientais no norte do Mato Grosso, outra região importante do agronegócio brasileiro.