O Antropoceno não pode esperar
Emergência climática é tema da coleção Ponto Crítico, lançada pela Editora da Unicamp
Paula Penedo
Texto
Antonio Scarpinetti
Fotos
“As mudanças climáticas são uma ameaça ao bem-estar humano e à saúde do planeta e qualquer atraso adicional na tomada de uma ação global coordenada resultará na perda da pequena janela de oportunidades que está rapidamente se fechando.” Com essas palavras, o sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC, na sigla em inglês), publicado em 2022, faz um alerta sobre a necessidade de se alterar urgentemente o padrão energético e mitigar o uso de combustíveis fósseis de modo a garantir, antes de a situação tornar-se irreversível, um futuro sustentável e seguro para a humanidade.
De acordo com o historiador Luiz Marques, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, em alguns aspectos esse estado de irreversibilidade já se instalou. Uma análise da Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês) demonstrou que, entre 1992 e 2020, a Groenlândia e a Antártida perderam mais de 7 trilhões de toneladas de gelo, fenômeno responsável por 40% do aumento do nível dos oceanos. Como não existe uma tecnologia capaz de congelar de novo essa água e como o sistema climático possui uma inércia – ou seja, demora um tempo para reagir às mudanças implementadas –, mesmo que a humanidade parasse imediatamente de emitir gases do efeito estufa, levaria séculos para esse cenário ser revertido.
“O que nós podemos fazer agora, se tomarmos juízo, é trabalhar para desacelerar a taxa de elevação do nível do mar e outros aspectos de irreversibilidade, como a destruição das florestas tropicais”, constata o docente. “Se mantivermos a trajetória atual, até 2050 nós ultrapassaremos em 2 graus Celsius a temperatura média da era pré-industrial. A última vez que o planeta registrou essa temperatura foi 2,5 milhões de anos atrás. Então, a humanidade nunca viveu em um lugar tão quente assim. Mas, para reverter isso, a sociedade tem que entender a envergadura do problema e o caráter existencial da ameaça que paira sobre a gente”, complementa.
Na expectativa de incentivar esse debate e informar as pessoas, Marques e a historiadora Neri de Barros Almeida, também professora do IFCH, lançaram em março, pela Editora da Unicamp, a nova coleção de livros Ponto Crítico, voltada a oferecer um panorama diversificado de estudos e discussões sobre as mudanças climáticas. Coordenada por Almeida e Marques, a antologia, inaugurada com o livro O Acontecimento Antropoceno, de autoria dos historiadores franceses Christophe Bonneuil e Jean-Baptiste Fressoz, aborda o problema da interseção entre os direitos da natureza e os direitos humanos.
Essa obra, até então inédita no Brasil, veio a público na França, em 2013, e se tornou um clássico na área por tratar informações científicas relativas ao problema das mudanças climáticas com abrangência interdisciplinar, colocando em diálogo as ciências humanas e as da natureza. “O aprofundamento da interdisciplinaridade é uma meta importante para esse cenário de enfrentamento das mudanças climáticas porque apenas isso garante que as soluções propostas sejam eficazes e seguras o suficiente para garantir a continuidade da vida humana no planeta”, observa Almeida.
Antropoceno
O termo Antropoceno, proposto no início dos anos 2000 pelo biólogo Eugene Stoermer e o Nobel de Química Paul Crutzen, tem sido amplamente empregado por ecólogos, climatologistas, historiadores, filósofos e leigos para se referir à nova época geológica que teria posto fim ao Holoceno, iniciado cerca de 11.500 anos atrás, com o fim das glaciações. De acordo com seus defensores, a ação humana sobre o planeta se tornou tão vasta e intensa que compete com as forças da natureza no impacto sobre o comportamento do sistema Terra, devendo ocupar um espaço individual na linha do tempo geológica.
Embora a mudança de época não tenha sido oficialmente aceita pela União Internacional de Ciências Geológicas – em uma votação polêmica realizada no início de março deste ano–, essa recusa não significa uma negação dos impactos da ação humana no padrão climático, que têm sido documentados por pesquisadores e observados por meio de marcas deixadas na natureza desde o início do período industrial. O próprio relatório do IPCC publicado em 2022 reconheceu que as mudanças observadas na atualidade resultam da intervenção humana, uma conclusão baseada na análise e discussão sobre mais de 14 mil artigos científicos produzidos a partir de diferentes metodologias de pesquisa.
Tanto Marques como Almeida afirmam que os sistemas de governos atuais não têm interesse nem capacidade de reverter esse processo. Por outro lado, segundo os professores, os cidadãos comuns viram-se transformados em meros objetos de uma economia consumista. Um exemplo é a indústria da pecuária, que, predatória em relação ao meio ambiente, leva as pessoas a consumirem muito mais do que o nutricionalmente necessário. Por esse motivo, alegam, a crítica dos cidadãos a esse sistema mostra-se fundamental para que mudanças comportamentais no âmbito da cultura e da política aconteçam de acordo com aquilo que a ciência diz ser o recomendável.
Para o docente, essa tomada de consciência supõe um trabalho muito intenso de informação, divulgação e estratégias de comunicação, algo ainda não posto em prática, além de uma capacidade de organização que permita à sociedade impor uma mudança radical aos seus governantes. “E, talvez, o mais difícil de tudo: será preciso aceitar o fato de que não haverá mudanças sem grandes sacrifícios e de que esses sacrifícios deverão recair sobre os ombros dos mais ricos. Isso nos remete à velha agenda da justiça social e da emancipação da sociedade no sentido de ela assumir o controle sobre seus investimentos estratégicos, principalmente energia e alimentação”, conclui.
Para o segundo volume da coleção Ponto Crítico, a ser publicado em 2025, Almeida e Marques projetam uma obra, com autores brasileiros, sobre o papel da governança nos resultados da futura COP-30, a 30ª Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. O evento ocorrerá em novembro de 2025, em Belém, no Pará, e promete concentrar esforços na defesa da Amazônia e dos povos indígenas e ribeirinhos.