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Arte Rafaela Repasch
Manifestação pró-impeachment de Dilma Roussef

Manifestação pró-impeachment de Dilma Rousseff na Avenida Paulista, em dezembro de 2015: nova militância formada nas redes sociais está permanentemente mobilizada (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Viés neofascista e enraizamento social da direita põem democracia em risco

Como a radicalização do antipetismo de classe média tornou possível o bolsonarismo e sua trama golpista

Pedro Fávaro Jr.


A insurreição de 8 de janeiro de 2023 foi o desfecho de uma trama golpista cujo plano original, surgido em 2022, esteve muito mais perto de materializar-se do que se imaginava, diz o sociólogo e professor Sávio Machado Cavalcante, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, que prepara uma tese de livre-docência sobre o surgimento das novas direitas e sobre como seu enraizamento social ameaça a democracia no Brasil. Cavalcante apresentou um material composto de artigos e capítulos de livro a respeito do papel da classe média na guinada à direita ocorrida nos últimos dez anos.

Uma das principais causas para a consolidação de tal fenômeno, diz o pesquisador, foram os desdobramentos, intencionais e imprevistos, da reação das classes médias aos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), iniciados em 2002. A partir de 2015, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) perdeu sua capacidade de acomodar forças sociais radicalmente anti-igualitaristas. Esse papel de representação política da unicidade da direita começou a ser ocupado por novos agentes e grupos que, desde a década anterior – como mostrou Camila Rocha em Menos Marx, Mais Mises. O liberalismo e a nova direita no Brasil (2021) –, ganhavam cada vez mais alcance e público nas redes sociais e nas ruas. 

Cavalcante passou a se interessar pelo fenômeno em 2013, quando era professor temporário na Universidade Estadual de Londrina (UEL) e morava na cidade paranaense. Desde ali, acompanhou as manifestações de junho daquele ano, que inauguram uma década de turbulência e instabilidade política. “Pelas características da cidade, eram mais claros os indícios de um fenômeno novo nas ruas, se comparado ao que se viu nas duas décadas anteriores. A pauta anticorrupção tornou-se um aspecto mais recorrente de um perfil de manifestante de classe média, mas chamava a atenção, naquele momento, um tom patriótico que, além de marcar o repúdio à esquerda por meio do uso de símbolos nacionais (como a camisa da seleção brasileira), expressava uma revolta mais genérica contra o ‘sistema’ político e os partidos. Trata-se de um tema que eu já tinha estudado, teoricamente, no doutorado – o problema das classes médias –, e percebi que aqueles protestos poderiam ter efeitos mais amplos na cena política.”

Professor Sávio Machado Cavalcante
O sociólogo e professor Sávio Machado Cavalcante: “O radicalismo anti-igualitário que formou as novas direitas continua produzindo resultados úteis a neoliberais e conservadores na cena política” (Foto: Antonio Scarpinetti)

Logo após os protestos, o professor iniciou um projeto de pesquisa sobre a reação da classe média ao ciclo dos governos do PT e acompanhou as manifestações de rua em apoio ao impeachment de Dilma Rousseff, com a ascensão da Lava Jato e, depois, a depuração de extrema direita provocada pelo bolsonarismo. 

“Acompanhei as manifestações de 2015 e 2016 pelo impeachment in loco, em São Paulo. Percebia uma revolta motivada pelo que os próprios manifestantes apresentavam como uma luta moral contra a corrupção. Mas havia camadas mais profundas e outros interesses em jogo”, analisa. “Desde 2015, já estava claro que aqueles movimentos representavam um novo tipo de atuação de setores da direita. E, de fato, eles obtiveram algo crucial: uma base de massa que não mais restringia sua participação política ao ato de votar. Essas pessoas passaram a agir nas ruas, para além de contextos eleitorais, de forma coesa e disciplinada, mesmo sem a liderança de um partido formal.” 

Caminho alternativo

Para Cavalcante, destacou-se como fato mais importante o de as novas direitas terem encontrado, por meio das redes sociais, um caminho alternativo para chegar diretamente aos eleitores, especialmente aos da classe média. “Ao contornar meios de comunicação tradicionais, tais grupos conseguiram formar uma militância de novo tipo e conseguiram fazer com que ela fosse permanentemente mobilizada e ativa de acordo com as pautas de cada momento”, comenta.

Como mostrou Rocha, o processo “começou no Orkut, que teve muita força no Brasil, depois no Facebook, além dos blogs”. Em comum, essas novas direitas propagandeavam o diagnóstico de que a ordem social e política da Nova República havia sido hegemonizada culturalmente pela esquerda (no limite, pelo comunismo), como na imprensa, nas escolas, nas universidades e até mesmo em grandes empresas que passaram a absorver o debate sobre a diversidade e a responsabilidade social. Porém, até meados da década de 2000, o legado de violência e autoritarismo da ditadura militar fazia com que houvesse “certa vergonha em se dizer de direita”.

Embora seja um equívoco factual a denúncia da hegemonia comunista, pondera Cavalcante, “havia ali uma dimensão verdadeira, pois princípios igualitaristas caros à identidade histórica das esquerdas (o combate às desigualdades, a justiça social, as ações afirmativas contra a discriminação racial etc.) gozavam de certa superioridade moral ante as bases anti-igualitárias da direita”. A hegemonia do PSDB no campo da direita, embora representasse um neoliberalismo possível (e, com o tempo, cada vez mais conservador), surgia como um obstáculo para a renovação de posições radicalmente anti-igualitaristas. “Importante lembrar que o PSDB, mesmo liderando a direita, se dizia uma ‘terceira via’. E, de fato, o partido contava com grupos internos progressistas. Durante muito tempo, hoje a gente até esquece, o mais comum era um crítico da esquerda negar a identidade de direita, dizendo que se trataria de uma classificação pobre ou anacrônica para dar conta da realidade contemporânea.”

Precursores

Para o docente, Olavo de Carvalho ocupa um lugar fundamental nesse processo. Antes mesmo de apostar nas redes sociais, Carvalho conseguia espaço na grande imprensa, inclusive em revistas com proposta editorial dirigida à “alta cultura”, como a Bravo. “Tanto os novos conservadores quanto os neoliberais, quase todos tiveram uma militância instigada de início por Olavo de Carvalho. Isso é bem constatado nas pesquisas. Foi ele o agente que, embora identificado com obras menos conhecidas de autores tradicionalistas, criou uma convergência mínima entre antipetistas neoliberais e conservadores mais radicais”, afirma o professor. 

Carvalho conseguiu isso não apenas por renovar o anticomunismo ao “denunciar” o Foro de São Paulo na grande imprensa e, depois, na internet, “mas por ser talvez quem mais compreendeu que uma nova direita precisa atacar, de todas as formas possíveis, a pretensão de superioridade moral de princípios igualitaristas dos progressistas de todo o tipo. É isso que explica sua retórica violenta e agressiva, pois sabia que atacava o que era visto como o ‘bem’, o ‘politicamente correto’. Antes de investir na crítica intelectual, apostou na denúncia sobre a degeneração moral de um progressismo supostamente hipócrita, depravado e, no limite, criminoso”. 

Olavo de Carvalho
Para Cavalcante, “Olavo de Carvalho criou uma convergência mínima entre antipetistas neoliberais e conservadores mais radicais” (Foto: Reprodução)

Na tese, Cavalcante dedica mais atenção a figuras da grande imprensa que se apresentavam como conservadores liberais, tais quais Leandro Narloch, Luiz Felipe Pondé e João Pereira Coutinho. Nessa linha, coube ao jornalista Reinaldo Azevedo chegar mais longe que os demais. Além das colunas na revista Veja, Azevedo tinha um dos blogs mais lidos e influentes da internet. Ficou conhecido por chamar os petistas de “petralhas”, termo transformado em recurso linguístico potente para uma direita que, desde a crise do mensalão, investiu na criminalização do adversário político de esquerda. Segundo Cavalcante, “o importante é perceber, nas centenas de textos de Azevedo, um escritor e polemista, aliás, de grande talento, a sedimentação gradual dos pontos mais importantes do programa conservador-neoliberal em uma audiência mais ampla, majoritariamente formada pela classe média, programa esse depois reivindicado de forma oportunista por [Jair] Bolsonaro. Estava tudo lá: anticomunismo, negacionismo climático, crítica feroz de políticas antirracistas e feministas, defesa moral da criminalização das drogas e do aborto com a defesa do programa econômico neoliberal”.

Segundo o pesquisador, a circulação crescente dessas ideias, no contexto dos governos petistas, conseguiu diminuir a carga negativa da identidade de direita, antes vinculada à ditadura. Para tanto, observa Cavalcante, a estratégia usada “foi desqualificar a superioridade moral de ideias igualitaristas, retomando a acusação de que o comunismo, a ideologia em tese mais radicalmente igualitarista, teria levado à morte mais de 100 milhões de pessoas em todo o mundo. Uma estimativa, aliás, usada sem qualquer cuidado documental ou qualquer precisão. Desse modo, embora se dissessem democratas, essas pessoas funcionaram como intelectuais que, nesse novo contexto, reabilitaram a justificativa usada pelos golpistas em 1964 de atacar a democracia para supostamente prevenir um ‘mal maior’”. 

Ressignificação do anticomunismo

Para o docente, dado que os governos do PT apenas realizavam reformas no modelo capitalista neoliberal, muitos subestimaram a possibilidade de retorno do anticomunismo. “Aquilo parecia apenas um sinal da ignorância ou do delírio de grupos mais radicais.” Porém, tratou-se de um fenômeno muito mais complexo, com várias camadas sobrepostas. Cavalcante indica algumas: “Primeiro, certas mudanças sociais ocorridas durante os governos do PT, embora muitas delas tímidas, tiveram efeitos reais, econômicos e simbólicos, suficientemente fortes para desestabilizar lógicas estruturais de dominação e exploração baseados em classe, raça, gênero e sexualidade”.

Outro vetor capaz de explicar o anticomunismo é o êxito do ativismo digital das novas direitas em conseguir retratar toda ação do Estado, especialmente as dirigidas ao combate da desigualdade ou da discriminação, como um primeiro estágio de uma suposta estratégia maior da esquerda para retirar toda a liberdade dos indivíduos e de suas famílias. “Esse é um recurso que vem de longe, principalmente dos neoliberais austríacos. [Ludwig von] Mises e [Friedrich] Hayek diziam que qualquer modelo baseado na justiça social, mesmo no capitalismo, era um ‘caminho para a servidão’, uma antessala do comunismo.” 

Ldwig von Mises
Sávio Cavalcante enxerga, em textos do economista austríaco Ludwig von Mises, cujo pensamento é abordado na tese do docente, “uma defesa desavergonhada do fascismo” (Foto: Reprodução)

Cavalcante, por fim, sugere haver uma terceira camada, que seria um desdobramento político importante das anteriores: “Se considerarmos, então, que 1) houve mudanças sociais objetivas em termos da dinâmica histórica de reprodução da desigualdade, 2) que elas foram fomentadas pelo Estado e 3) que havia uma sistema de agitação e propaganda das novas direitas interpretando isso como começo do fim da liberdade (no limite, o primeiro passo de um regime comunista que irá gerar milhões de mortes)… Enfim, se juntarmos tudo isso, o resultado, como temos visto, não é apenas uma nova direita que busca esvaziar, dentro do regime democrático, o princípio da justiça social da Constituição de 1988. Ela vai além. Essa é uma direita com base social de massa e que se sente moralmente justificada e protegida quando, a depender do contexto, precisa apoiar uma variação de extrema direita abertamente autoritária contra uma esquerda democrática e apenas reformista”.

Para o sociólogo, este último aspecto revela-se o menos estudado no campo da pesquisa sobre as novas direitas. A tendência, segundo Cavalcante, é que as análises priorizem as diferenças entre as novas direitas liberais e conservadoras e o autoritarismo bolsonarista. Ao proceder dessa maneira, entendem que o apoio a Bolsonaro resulta de uma escolha apenas contingente e contextual da política. Subestimam, assim, as bases antidemocráticas do radicalismo anti-igualitário das novas direitas: “Se voltarmos a textos de Mises, por exemplo, vemos uma defesa desavergonhada do fascismo e do que o autor chamou textualmente de civilização do homem branco. Enfim, como outras análises mostram, também não vejo no bolsonarismo o resultado necessário das novas direitas.  Porém essa é a nova direita realmente existente, aquela que objetivamente conseguiu confiscar a revolta advinda das resistências à mudança social”. 

A normalização de Bolsonaro

Do quadro exposto, Cavalcante ressalta a necessidade de compreender o que tornou possível uma diferença tão gritante entre as intenções originais declaradas pelas novas direitas e o desfecho golpista criado pelo governo de Bolsonaro. “É preciso encarar um fato objetivo. As novas direitas, que reivindicaram uma identidade desvinculada do regime militar imposto em 1964, acabaram por normalizar – e, em muitos casos, por confessamente apoiar – um defensor da ditadura em 2018 e 2022. Na verdade, a coisa é muito pior, pois Bolsonaro sequer representa a linha ‘branda’ ou técnica da modernização conservadora do regime. Bolsonaro é o símbolo do subsolo da ditadura, que não apenas justifica, mas enaltece e valoriza a tortura e a eliminação física dos opositores.”

Para o pesquisador, esse resultado fez-se possível não apenas devido aos efeitos da ampliação das redes sociais sem regulamentação pública. Os grandes meios de comunicação, ainda que críticos ao bolsonarismo, cumpriram um papel importante ao normalizar os indícios de radicalização da extrema direita no contexto de crise que levou à deposição de Dilma Rousseff em 2016, “até chegar ao ponto em que Bolsonaro sente-se à vontade para elogiar um torturador na hora de pronunciar o voto pelo impeachment”. 

Equipe médica no Complexo Esportivo d Ibirapuera

Equipe médica em hospital de campanha no Complexo Esportivo do Ibirapuera, em São Paulo, durante a pandemia de covid-19: na análise de Cavalcante, “o negacionismo de Bolsonaro era parte de uma estratégia deliberada de fazer o vírus circular” (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Em 2018, a tese da “polarização” entre Bolsonaro e Fernando Haddad, supostamente representantes de extremos da direita e da esquerda, surgiu sem qualquer pudor na boca de colunistas e grandes grupos de comunicação com linha editorial liberal. A tese perdeu força em 2022, especialmente pela forma como agiu o governo Bolsonaro na pandemia, “mas, de certa forma, já era tarde. Um movimento reacionário de massa já havia se autonomizado da base inicial mais ampla antipetista. Convergindo com o conservadorismo cristão, havia ganhado maior enraizamento social em classes populares e construído canais de comunicação próprios imunes a críticas”. 

O teste da história mais duro e perverso se deu na pandemia. Independentemente da grave crise sanitária e do negacionismo científico, Bolsonaro manteve uma base fiel e militante, mesmo nas ruas. “Como defendo em um artigo de 2021, Bolsonaro não fez uma política ‘equivocada’. O negacionismo era parte de uma estratégia deliberada de fazer o vírus circular, mesmo ciente das mortes evitáveis que isso causaria. Ao prometer, nos anos anteriores, liderar um processo de purificação da economia, da política e da nação, Bolsonaro enfrentou uma pandemia podendo, quando quis, normalizar a morte.”

Neofascismo e classe média

Cavalcante aponta não haver um consenso entre os pesquisadores sobre a caracterização do bolsonarismo como um movimento de tipo neofascista. “Como os contextos, as formas de organização política e o conteúdo das ideologias diferem do que se viu no fascismo do século XX, muitos recusam o conceito. Porém sigo a análise do cientista político Armando Boito Jr., que prioriza, como núcleo comum para a caracterização do gênero fascismo (ainda que não das ‘espécies históricas’), a existência de um movimento reacionário de massa que, em contextos de crise política específicos, coloca em ação permanente setores principalmente baseados em camadas intermediárias da sociedade”, detalha. 

As camadas intermediárias às quais se refere o pesquisador englobam a classe média assalariada, os profissionais liberais e os pequenos proprietários, especialmente produtores rurais. São aqueles que se veem, em certos contextos, ameaçados ou oprimidos tanto pela concentração de poder do grande capital quanto por demandas progressistas de movimentos sociais populares.

Robert Kiyosaki
Durante a elaboração de sua tese, Cavalcante pesquisou obras de autoajuda, entre as quais de Robert Kiyosaki, autor de “Pai rico, pai pobre”: espanto com as ideias expostas no livro (Foto: Wikimedia Commons)

Cavalcante destaca, como um dos achados mais originais de sua pesquisa, a correlação entre o bolsonarismo e a classe média tornada possível na medida em que as novas direitas, especialmente os neoliberais radicais, promoveram uma intensa disputa ideológica sobre a própria identidade de classe.

“Tento mostrar que, mais visivelmente desde a década de 1990, há uma grande mudança da ideia de mérito, algo que, historicamente, serviu de justificativa ideológica para a classe média assalariada.” Acompanhando as mudanças mais estruturais do capitalismo, as novas direitas reabilitaram a figura do pequeno proprietário. O profissional ou técnico de alta qualificação, mesmo que tivesse um alto salário, “era exemplo de uma mentalidade de ‘escravo’, um ser cativo dos patrões ou, principalmente, do Estado. Comecei a me interessar por isso ao notar a frequência, nos discursos de lideranças das novas direitas, de críticas aos jovens talentosos que tinham como desejo apenas passar em um concurso público”.

Cavalcante se disse surpreso quando, ao pesquisar também a literatura de autoajuda para os negócios, leu o best-seller Pai rico, pai pobre (de Robert Kiyosaki): “Sempre via essa obra nas livrarias e imaginava que o modelo de ‘pobre’, oposto ao capitalista rico, era um trabalhador manual ou de execução. Enfim, um assalariado ou autônomo pobre. Confesso ter ficado, em um primeiro momento, espantado quando vi que, em vez disso, o pai pobre era um professor universitário com salário que o colocava, possivelmente, entre os 10% mais ricos nos Estados Unidos. Percebi, depois, como aquilo fazia todo o sentido, já que a reprodução social da classe média, no capitalismo neoliberal, exigia uma nova justificativa moral da renda obtida no mercado financeiro ou fora do circuito da produção”. Depois do sucesso do primeiro livro, Kiyosaki escreveu um outro, em “uma emblemática parceria com Donald Trump”.

Insurreição neofacista

Como expôs em um texto publicado no Jornal da Unicamp, Cavalcante caracteriza o 8 de janeiro de 2023 como uma insurreição neofascista, uma catarse golpista, de quase nula chance de sucesso, mas de certa forma inevitável após tantos anos de radicalização e de normalização da presença de acampamentos em frente aos quartéis após as eleições de 2022. Em sua opinião, a operação Hora da Verdade, deflagrada no 8 de fevereiro de 2024, fortalece o argumento: “O material revelado na operação indica que o plano original de Bolsonaro – apoiado por alguns militares da reserva e da ativa e por alguns agentes civis – era praticar um golpe ‘preventivo’, antes das eleições, quando tinha, como ele costuma dizer, o poder da caneta”. O dirigente tentou até buscar fundamento para o golpe na Constituição, mas não obteve o apoio, interno e externo, necessário para sobreviver ao dia ou às semanas seguintes: “Como em 1964, era preciso contar com os Estados Unidos e a grande burguesia nacional”.

Manifestantes golpistas em 8 de janeiro de 2023

Manifestantes nas rampas do Congresso em 8 de janeiro de 2023: para Cavalcante, ato foi “uma catarse golpista” e revelador “da pertinência do conceito de neofascismo” (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O 8 de janeiro revela, na opinião do docente, a pertinência do conceito de neofascismo: “Bolsonaro não é, apenas, um populista de extrema direita. O movimento de massa reacionário, que ele incitou e liderou, não se dissolve em um passe de mágica. Ele ganha certa autonomia em relação aos líderes. Mesmo Bolsonaro tendo fugido para Miami [Estados Unidos], sua base de apoio mais radical pensou: ‘Não, a gente precisa ir até o fim!’. Dois traços importantes ficam mais nítidos: primeiro, uma forte disposição de civis, com a complacência de forças de segurança, para a prática aberta de atos violentos. Imagine, por exemplo, quão pior teria sido se o plano original de 2022 tivesse sido concretizado. Quantos obedeceriam a uma convocação de Bolsonaro para a ação, feita em rede oficial de comunicação? Segundo, isso expõe a dimensão autodestrutiva e irracional do movimento, de indivíduos não mais capazes de avaliar racionalmente chances reais de êxito, nem as consequências penais [de seus atos] para si mesmos”. 

25 de fevereiro

Já inelegível, Bolsonaro, ao realizar a manifestação de 25 de fevereiro de 2024, analisa o docente, precisou lembrar a todos não ser produto apenas de um fenômeno eleitoral ou político passageiro, mas expressão de um movimento social de massa, cujas coesão ideológica e disposição para o protesto de rua tornam maiores os custos políticos de uma condenação. Mais ainda, exigiu (e obteve) apoio público, em especial de quem mantém a radicalização ideológica do movimento (Nikolas Ferreira), de quem ajudou a eleger (Tarcísio de Freitas), de quem precisa de apoio, mesmo que envergonhado, nas eleições municipais (Ricardo Nunes) e de quem busca ocupar espaço na chapa bolsonarista para as eleições presidenciais de 2026 (Romeu Zema e Ronaldo Caiado).

Sobre a manifestação em si, o docente observa que muitos têm ressaltado a acentuação do tom religioso, especialmente evangélico, por conta do protagonismo de Silas Malafaia na organização do evento e do discurso messiânico de Michelle Bolsonaro. Tendo acompanhado presencialmente as grandes manifestações bolsonaristas do 7 de setembro de 2021 e 2022 na Avenida Paulista, Cavalcante comenta: “Nessas duas ocasiões, é nítido o papel do engajamento político via religião, mas de um conservadorismo cristão em geral, sem muitos traços que identificam diferenças entre católicos e evangélicos conservadores. Nesta última, não pude ir. Porém, com base em pesquisas (a proporção de católicos e evangélicos na rua não difere da geral) e relatos de observadores, além de diálogos com outros pesquisadores, como Ronaldo de Almeida [recentemente entrevistado pelo programa Analisa da TV Unicamp], não vejo aí algo muito novo, dado que o perfil majoritário, muito maior do que no geral da população, continua ser o de pessoas de renda acima de cinco salários mínimos, brancas e com ensino superior. Esse viés religioso parece dizer mais sobre a radicalização na extrema direita de certas lideranças evangélicas do que o compromisso mais amplo da base com o bolsonarismo”.

Manifestação de 25 de fevereiro de 2023

Palanque da manifestação de 25 de fevereiro na Avenida Paulista, em São Paulo: na opinião de Cavalcanti, Bolsonaro “precisou lembrar a todos não ser produto apenas de um fenômeno eleitoral ou político passageiro” (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

Por fim, o pesquisador sugere: “Com os militares acuados, o 25 de fevereiro pode ser visto como uma convergência daqueles que temem o isolamento ou a prisão com os que procuram se apresentar, em eleições sem Bolsonaro, como versões mais brandas e razoáveis da extrema direita. Seja como for, a manifestação e o apoio a ela nas redes sociais mostram, mais uma vez, que o radicalismo anti-igualitário que formou as novas direitas continua produzindo resultados úteis a neoliberais e conservadores na cena política, sejam esses resultados intencionais ou não”.

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