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Operação para apreensão de homossexuais

Operação no centro de São Paulo para a apreensão de homossexuais: jornal denunciou violência policial durante a ditadura (Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo)

Pioneiro, jornal iluminou debate sobre a dissidência sexual e de gênero

Lampião da Esquina circulou entre 1979 e 1981, tematizando questões de sexualidade para além de uma ótica estigmatizante

Liana Coll 


Durante a ditadura militar no Brasil, surgiram várias publicações que tiveram um importante papel de crítica e denúncia. A chamada imprensa alternativa também funcionou como espaço de circulação de ideias em meio às ações de repressão realizadas pelos militares. Mas um dentre as centenas de publicações destacou-se igualmente por trazer a público, pela primeira vez, textos dedicados aos temas da dissidência de sexualidade e de gênero, chamando atenção para discussões sobre a homossexualidade e a transexualidade, entre outros assuntos correlatos. O jornal Lampião da Esquina circulou entre 1979 e 1981, com distribuição nacional. Seus discursos foram analisados por Larissa Tanganelli em uma dissertação orientada pela professora Nádia Farage, defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e recentemente publicada em livro. 

A autora do trabalho, vencedora do prêmio da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) para a melhor dissertação de mestrado em ciências sociais em 2020 na etapa regional (pelo Sudeste), aponta a singularidade do jornal, que abordava temas até então considerados secundários pela esquerda. “Ele foi o primeiro [jornal] organizado dessa maneira, tendo como principal tema a dissidência de sexualidade e de gênero e talvez tenha sido o primeiro jornal a assumir a luta e as pautas de todas as minorias políticas”, aponta Tanganelli.

Páginas jornal lampião
Reprodução de capas e de páginas interna do jornal “Lampião da Esquina”: abordando pautas de todas as minorias (Imagens: Reprodução)

“Já na distensão do regime, o jornal começa a falar sobre essas dissidências e sobretudo sobre as alianças dessas categorias com outras ditas minoritárias”, dentre elas o movimento feminista, o movimento negro, o movimento indígena e o movimento ambientalista, completa a pesquisadora. Representantes desses movimentos eram convidados a escrever no periódico, bem como eram entrevistados. A antropóloga menciona a entrevista com Leci Brandão como uma das mais emblemáticas do Lampião, já que a artista trouxe para o debate um conjunto de pautas destacando a intersecção entre raça, gênero e sexualidade. 

Naquele período, como lembra Tanganelli, homossexuais, transexuais e outros dissidentes de sexualidade e de gênero viam-se comumente retratados de forma pejorativa na imprensa, como casos patológicos no meio médico e como casos criminais no meio jurídico e pelo regime militar. 

Isso, explica, diz respeito à biopolítica, conceito desenvolvido pelo pensador francês Michel Foucault para falar da tentativa de controle sobre as massas. “As lutas biopolíticas estão concentradas na administração do humano em termos de seus corpos anatômicos e dos corpos populacionais. Eu tento mostrar algumas facetas desse controle centradas no Estado, mas que também são realizadas pelos corpos técnicos e jurídicos e pelos dispositivos médicos.”

Para isso, a pesquisadora analisou as categorias elaboradas pelo próprio movimento a fim de falar de si mesmo, observando essas categorias como formas de resistência biopolítica. “Eles estavam produzindo outras maneiras de tratar esses corpos, maneiras que fossem condizentes com sua humanidade. Esse é o primeiro momento no Brasil em que há um jornal falando sobre dissidências sexuais e de gênero fora de uma ótica da patologia e do crime”, aponta.

Represália dos militares

O Jornal Lampião da Esquina, como todas as publicações da imprensa alternativa, posicionava-se claramente contra a ditadura, assumindo um papel crítico ao regime. Por isso, e apesar de circular já em um momento de abertura da ditadura, a publicação sofreu represália dos militares, como quando houve uma tentativa de abrir um inquérito. “O inquérito contra o Lampião veio na esteira de uma série de processos censórios dirigidos a outros materiais que estavam tematizando as questões de sexualidade e de gênero de forma positiva”, indica Tanganelli. 

Larissa Tanganelli
Larissa Tanganelli, autora do livro: pósfacio traça as conexões existentes entre o período ditatorial e a ascensão da extrema direita (Foto: Divulgação)

Nesse momento, outros jornais da imprensa alternativa se uniram em defesa do Lampião e contra a intimidação dos órgãos da ditadura. O regime, diz a pesquisadora, produziu ideias e narrativas segundo as quais os homossexuais subvertiam os costumes da sociedade brasileira. 

O inquérito não seguiu adiante, já que, como explica a pesquisadora, os editores do jornal eram artistas e intelectuais prestigiados que angariaram uma lista de apoio ímpar, da qual constam os nomes de Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni e Fernanda Montenegro, dentre outros. 

Ainda assim, as investidas não pararam. Depois da tentativa de inquérito, o Centro de Informações do Exército começou a enviar cartas exigindo os balancetes financeiros da publicação para provar que ela não tinha condições econômicas para continuar existindo. “Quando não conseguiam fechar algum veículo, era comum fazerem investidas questionando a situação financeira”, analisa a antropóloga. 

Em seguida, o jornal acabou fechando. A crise financeira foi um dos motivos para isso, mas não o único. “O término [do Lampião] coincide com o término da imprensa alternativa brasileira. Com a abertura do espaço público para o diálogo e a exposição de opiniões, dos 500 jornais que existiram, restavam, em 1982, 15”, observa Tanganelli.

Orientadora da dissertação, intitulada “Há perigo na esquina: discursos dissidentes no jornal Lampião (1978-1981)”, Farage sintetiza a importância da publicação e da análise feita pela aluna, responsável por jogar luz sobre a resistência do Lampião diante da violência epistêmica e institucional daqueles anos tendo por alvo as sexualidades dissidentes. A docente também destaca o fato de a orientanda ter feito um trabalho de indexação dos temas tratados pelo jornal, aplainando os caminhos para futuros pesquisadores.

“O Lampião foi um jornal de vida curta, mas fez uma intervenção significativa no cenário político e cultural daqueles anos. O grande mérito do livro da Larissa é realmente manejar as categorias de época e fazer o leitor penetrar nesse momento em que a luta gira em torno dos direitos humanos e dos direitos de gays, lésbicas. Em suma, a dissertação faz com que as sexualidades dissidentes sejam vistas no âmbito da luta por direitos humanos.”

Dessa forma, como mostra o trabalho de Tanganelli, o Lampião desempenhou um papel tanto na resistência contra a ditadura como nas transformações ocorridas dentro da esquerda. Além disso, foi a partir dele que os primeiros coletivos de mobilização de dissidentes de sexualidade e de gênero formaram-se.

Da distensão ao desmonte

O livro resultante da pesquisa saiu pela editora Huya, na série Teses Premiadas. A autora acrescentou à obra um posfácio, intitulado “Da distensão ditatorial ao desmonte democrático”, no qual traça as conexões existentes entre o período ditatorial e a ascensão da extrema direita, culminando com a eleição de Jair Bolsonaro para presidente, em 2018. Tanganelli lembra que, nesse período, atualizaram-se vários elementos do autoritarismo e do conservadorismo, incluindo um recrudescimento dos ataques a minorias, dentre as quais o movimento LGBTQIA+. 

Protesto de manifestante
Manifestante protesta na 26ª Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, em 2022: ataques a minorias aumentaram durante o governo de Jair Bolsonaro (Foto: César Xavier/Reprodução)

Ainda durante a campanha presidencial, recorda o texto, uma travesti foi assassinada aos gritos de “Bolsonaro” no Largo do Arouche, na capital paulistana. “A poucos metros de distância do sangue derramado na calçada, fica o 3º DP [distrito policial] da Rua Aurora, para onde os dissidentes eram levados [na ditadura] e que até o momento continua nomeado em homenagem ao delegado que coordenava as operações, conhecidamente responsável pelas arbitrariedades e torturas que aconteceram nas suas dependências”, aponta. 

Ali também houve uma “permanente batalha entre dissidentes de gênero e sexualidade e os tantos camburões enviados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado em 1980, em sequência das amplas incitações às limpezas morais veiculadas pelo jornal O Estado de S. Paulo pelos excessos de ‘licenciosidade’ que ocorreriam nas imediações da Praça do Arouche, amplamente denunciadas e documentadas pelo Lampião”, diz Tanganelli.

Resgatar a história e os discursos do jornal, reflete a antropóloga, significa também apostar na verdade e na memória frente a cenários conservadores e autoritários. O acesso à obra é livre e pode ser feito no endereço: huya.com.br/teses-premiadas.

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