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Arte Rafaela Repasch

Congresso reúne milhares de mulheres no centro de São Paulo, em 1979: na linha de frente da resistência (Foto: Reprodução)

Extrema direita e ideário neoliberal ameaçam direitos das mulheres

Historiadora alerta para retrocessos que colocam em risco conquistas históricas do movimento feminista

Marta Avancini


Em meados dos anos 1970, quando a fase mais violenta da ditadura começava a dar sinais de enfraquecimento, uma nova cena social e cultural se fortalecia no Brasil, abrindo espaço para as lutas feministas, travadas em nome da ampliação dos direitos das mulheres. Porém, passadas seis décadas, em um Brasil agora marcado pelo avanço de uma extrema direita alinhada com o ideário neoliberal, essas conquistas podem estar em risco. 

Essa é a análise da historiadora e professora aposentada do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp Margareth Rago. Autora do livro A Aventura de Contar-se – Feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade, que relata a trajetória de sete militantes feministas nascidas entre 1940 e 1950, a historiadora associa o feminismo brasileiro dos anos 1970 ao cenário social e cultural de resistência à ditadura dos anos 1960.

A historiadora Margareth Rago: “A ideia de que ‘você é uma empresa’ também diz respeito à dimensão das subjetividades” (Foto: Antoninho Perri)

Na época, estudantes e sindicalistas retornavam às ruas ao mesmo tempo que a música, o teatro e outras formas de arte se contrapunham à violência e à opressão do regime, questionando padrões e visões de mundo cristalizadas então. Em contrapartida, o tradicionalismo dava o tom das relações de gênero, reforçando a sobreposição dos direitos dos homens sobre os das mulheres: por exemplo, somente em 1962 as mulheres casadas conquistaram o direito de trabalhar sem a autorização do marido e, só em 1974, ganharam o direito de ter um cartão de crédito.

Mas os ventos estavam mudando e o ano de 1975 pode ser considerado um marco nesse processo de renovação. Além de ter sido escolhido como o Ano Internacional da Mulher pela Organização das Nações Unidas (ONU), 1975 também se viu marcado pela realização da primeira Conferência Mundial sobre as Mulheres, no México, evento responsável por impulsionar a articulação do movimento feminista em várias partes do mundo.

Nesse contexto, igualmente em 1975, surgiam no Brasil o Movimento Feminino pela Anistia e o jornal Brasil Mulher, este com o objetivo de “contribuir para elevar o nível cultural e de informação das mulheres que nos leem”, conforme descrito no editorial do primeiro número da publicação.

“A existência dessa cena cultural e do feminismo em meados da década de 1970 é algo muito impressionante porque aquele era um momento de silenciamento, de destruição da esfera pública e de prisão de integrantes de grupos de esquerda em um cenário de violência assustadora”, contextualiza Rago. 

Cartaz do Movimento Feminino pela Anistia: entidade trouxe à tona a condição dos exilados no regime militar (Imagem: Reprodução)

Apesar disso, a fenda aberta pela movimentação cultural da época e, sobretudo, pelo feminismo impulsionou transformações no mundo e no país. “O feminismo, ou melhor, os feminismos trouxeram essa crítica estrutural. Esse é um movimento que, desde o início, se colocou contra uma identidade imposta às mulheres”, define a historiadora. Assim, questões como as desigualdades entre mulheres e homens e temas antes reservados à esfera doméstica (como a sexualidade) começaram a aparecer no debate público. 

Em outras palavras, para a professora do Departamento de História do IFCH, o feminismo rompeu com a diferenciação entre privado e público implantada pela sociedade burguesa desde o final do século 18, o que acarretou mudanças profundas tanto na subjetividade quanto nas concepções dos sujeitos sobre o mundo.

“As conquistas são enormes. As mulheres começaram a valorizar o seu corpo, a valorizar a sua pessoa. Passaram a pensar que podem ser engenheiras, artistas. Que ser cantora não quer dizer ser prostituta. E a subjetividade passou a ser debatida”, detalha Rago. Já no plano das ideias, a historiadora chama a atenção para a modificação do conceito de política. “Antes do feminismo, política era a política institucional. O aborto não era pensado como política.” 

O rompimento da barreira entre público e privado possibilitou que viessem à tona assuntos que hoje estão na ordem do dia – por exemplo, a violência contra a mulher. “Não dava para existir uma lei contra o feminicídio porque esse assunto não era um tópico de debate”, afirma a pesquisadora. “Como tudo era muito controlado, com um peso que vinha dos séculos 18 e 19, tudo muito oculto, não havia abertura para se falar sobre a violência doméstica e nem para ter a consciência, que começa a existir hoje, de que a violência contra a mulher é mais do que a agressão física.”

Conquistas em risco 

Embora os debates e processos desencadeados nos anos 1970 tenham sido cruciais para a configuração da sociedade brasileira de hoje, muitos desafios do passado persistem e se tornam mais intensos sob a ordem neoliberal predominante no mundo atualmente: a falta de representatividade política das mulheres ainda é um desafio e persistem as desvantagens salariais em relação aos homens quando realizam o mesmo trabalho – assim como persistem diferenças injustas na forma de educar meninas e meninos. E o número de casos de violência contra a mulher continua elevado.

Como lembra Rago, o avanço do neoliberalismo – que se pauta por uma visão econômica conservadora e prega a diminuição ao máximo da presença do Estado – é o pano de fundo de um cenário de precarização do trabalho e da destruição de direitos conquistados. Essa é também a base a partir da qual governos antidemocráticos e projetos políticos autoritários e conservadores, como os do governo de Jair Bolsonaro no Brasil entre 2019 e 2022, proliferaram, defendem intelectuais como a cientista política Wendy Brown, dos Estados Unidos. 

A questão, porém, é que o projeto neoliberal não se restringe ao domínio da economia. Valendo-se dos ensinamentos de Brown (que tem como referência, por sua vez, as análises de Michel Foucault sobre a governamentalidade neoliberal), Rago afirma que o neoliberalismo modela diversas esferas da vida. “Hoje experimentamos com maior clareza, para além da precarização do trabalho e da destruição dos direitos, a ‘economização do social’. Ou seja, a expansão neoliberal da lógica custo-benefício para todas as dimensões da vida humana, inclusive para as relações afetivas”, analisa.

Dessa maneira, o indivíduo fica reduzido à ideia de empreendedor ou “empresário de si mesmo”, nos termos de Foucault, e passa a ser entendido como “capital humano”. “Esse é o perigo em um mundo neoliberal. Além de o indivíduo ter de gerar lucro, a ideia de que ‘você é uma empresa’ também diz respeito à dimensão das subjetividades.”

Capas do jornal “Brasil Mulher”, lançado em 1975 na esteira da criação do Dia Internacional da Mulher e da primeira Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada no México (Imagens: Reprodução)

Nesse sentido, a historiadora lembra a concepção de Gary Becker, considerado um dos principais ideólogos do neoliberalismo, sobre o casamento. “Ele defende que, se uma mulher decide se casar, o ideal é que ela escolha um homem capaz de agregar capital humano aos filhos, escolhendo um parceiro mais inteligente ou mais bonito do que ela”, exemplifica Rago. “Geralmente, faz-se uma crítica econômica do neoliberalismo, enfocando a precarização do trabalho, a abolição dos direitos, mas não se fala da captura da subjetividade.”

Outra ideia associada ao conceito de sujeito como empreendedor é a da liberdade. “Os neoliberais estão falando: ‘Você tem que ser livre para empreender e para seu capital humano crescer’”, explica a pesquisadora. No que diz respeito à condição feminina, essa visão se traduz no surgimento de diversos outros tipos de pressão para as mulheres.

“A sociedade ainda é muito machista e misógina. Com todas as transformações, a luta ainda continua, principalmente depois da pandemia, que intensificou a tendência de valorização do capital humano no sentido do neoliberalismo, estimulando a valorização extrema do eu, a competição e a sobrecarga [de atividades]”, analisa. “A carga em cima das mulheres é muito grande, exigindo que ela dê conta de vários tipos de demanda, além da exigência de que esteja em conformidade com um padrão de beleza.” Ou seja, há uma expectativa social de que a mulher se adapte a padrões de beleza, além de ser capaz de desempenhar com excelência seu papel na vida pública, em especial no mercado de trabalho, e na vida doméstica, como esposa, mãe e responsável pela casa.

A ideia de liberdade

Para a historiadora, esse processo de apropriação das relações humanas e da dimensão afetiva pela ideia de capital humano – somada à noção de liberdade propagada pelo neoliberalismo – ameaça a manutenção dos direitos já conquistados, além de embaralhar as percepções e a conduta das pessoas.

“O feminismo defende a liberdade das mulheres. À primeira vista, pode parecer que está se falando da mesma liberdade defendida pelos neoliberais. Mas existe uma diferença brutal entre as duas visões”, defende Rago. “Não é possível uma pessoa ser feminista e liberal ao mesmo tempo. É a mesma coisa que chamar alguém de ditador democrata”, complementa.

Nesse sentido, a historiadora enfatiza o fato de o feminismo ter nascido no Brasil como um movimento crítico à ditadura militar. “Não dá para misturar as duas coisas e fazer de conta que são a mesma coisa. Não basta ser mulher para ser feminista. E nós estamos vendo mulheres chegando ao poder com um discurso muito antifeminista”, analisa Rago, referindo-se à pastora evangélica Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos durante o governo de Jair Bolsonaro e atualmente senadora do Distrito Federal pelo Republicanos.

Para fazer frente a esse cenário, a historiadora defende como caminho possível uma atuação mais articulada dos movimentos de esquerda no campo dos direitos sociais. Segundo Rago, tem prevalecido a defesa de pautas específicas, muitas vezes alinhadas a identidades, o que tende a gerar fragmentação frente a uma direita que se mostra organizada e eficiente.

Manifestação organizada por movimentos feministas contra o governo de Jair Bolsonaro, em 2021, em São Paulo: Rago defende uma atuação mais articulada dos movimentos de esquerda no campo dos direitos sociais (Foto: Karina Zambrana/Mídia Ninja)

“Ao contrário de um filósofo famoso, eu não acho que a esquerda morreu. Penso que a esquerda está muito viva, mas ela não está unida. As bolhas ainda não se dissolveram e estamos precisando dissolvê-las, passar um pouco por cima das diferenças e dar as mãos”, afirma. “Não dá para o feminismo ficar brigando entre si, o anarquismo ficar brigando entre si para ver quem é mais anarquista, quem é mais feminista. Está na hora de fazer o contrário: feminista dar a mão para o anarquista, para o socialista, pois a direita sabe se unir, controla o dinheiro e a religião e sabe usá-los.”

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