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Arte Rafaela Repasch

Bolo cresce, mas receita desanda e país ainda paga a conta do ‘milagre’

Descontrole inflacionário, explosão da dívida externa e concentração de renda são heranças da ditadura

Felipe Mateus


“Crescer o bolo para depois distribuí-lo.” A receita de Antonio Delfim Netto, ministro da Fazenda de 1967 a 1974 e um dos signatários do Ato Institucional Nº 5, resume o pensamento que conduziu a gestão da economia brasileira durante a ditadura militar. A prioridade era promover o crescimento econômico por meio do incentivo à industrialização. O resultado dessas políticas pode ser visto na evolução do Produto Interno Bruto (PIB). Entre 1968 e 1973, período conhecido como o “milagre econômico brasileiro”, a economia cresceu, em média, 10,2% ao ano (pico de 14% em 1973). 

A receita de Delfim, no entanto, nunca chegou a sua segunda parte. Sem as reformas de base propostas pelo presidente deposto João Goulart, reformas essas apontadas como um dos fatores determinantes para a eclosão do golpe de 1964, o bolo cresceu para poucos e muitos ficaram só com as migalhas. A desigualdade no Brasil medida pelo coeficiente de Gini, de 0,518 em 2023, chegou a 0,63 em 1977. Quanto mais próximo de 1 o coeficiente, mais desigual é a sociedade. A inflação naquele período nunca esteve abaixo dos dois dígitos. O menor índice da ditadura, 15,5%, verificou-se em 1973. Quando os militares deixaram o governo, em 1985, a inflação anual ultrapassava os 220%. Outro índice que explodiu foi o da dívida externa. Em 1964, esse montante somava US$ 3,2 bilhões. Já em 1985, o valor era superior a US$ 105 bilhões. 

Delfim Neto

Delfim Netto, ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, durante encontro com militares que integravam o governo no final da década de 1960 (Foto: Reprodução)

“Em termos econômicos, a cara da nossa sociedade hoje é, em parte, fruto do que foi feito naquele período”, analisa Marco Antonio Rocha, professor do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. Na entrevista a seguir, Rocha aponta características do desenvolvimentismo do período que reverberam até hoje, como a concentração de renda e o aceno de alguns grupos sociais a projetos autoritários em troca de uma gestão da economia que lhes seja vantajosa. “Talvez esta grande crise que vivemos agora na Nova República seja, basicamente, fruto da necessidade do país de ajustar suas contas com essas estruturas herdadas do período ditatorial.”


Jornal da Unicamp – Existe um consenso de que a escolha de um candidato nas eleições ou o apoio da sociedade civil a um determinado governo, seja ele democrático ou não, dá-se baseado, em parte, na situação econômica do país. Nesse sentido, como se encontrava a economia brasileira no período anterior ao golpe de 1964?

Marco Antonio Rocha O início da década de 1960 marca o começo de uma certa desaceleração da economia global após o longo ciclo de crescimento verificado no pós-guerra. Ele também marca o fim de um ciclo menos complexo do processo de industrialização, menos voltado para a indústria pesada e, por isso, mais fácil de ser implementado dadas as condições econômicas da América Latina. Esses fatores levam a um diagnóstico de que, para essas economias conseguirem recuperar seu crescimento econômico e completar seu processo de industrialização, eram necessárias as reformas de base. A desaceleração econômica estava ligada a fatores estruturais que precisavam ser alterados a fim de haver uma base sustentável para intensificar o processo de industrialização. Em termos concretos, no Brasil, isso significava uma agenda de defesa da reforma agrária e do fortalecimento do capital nacional.

Marco Antônio Rocha
O professor e economista Marco Antonio Rocha: “A ditadura ofereceu uma prova cabal da possibilidade de haver crescimento econômico e industrialização com um perfil de desenvolvimento social pavoroso” (Foto: Felipe Bezerra)

Tal agenda colocava em rota de colisão certos grupos políticos. Havia uma agenda desenvolvimentista mais à esquerda, que apoiava justamente as reformas de base porque, em última instância, elas fortaleceriam o mercado doméstico e possibilitariam o crescimento da renda e o próprio processo de industrialização. Uma direita mais progressista, mais desenvolvimentista, concordava com esse diagnóstico, embora achasse que isso poderia ser feito com a ajuda do capital estrangeiro. De outro lado, havia um bloco mais conservador receoso de que esse processo de industrialização conduzido pelo Estado fosse capturado por uma agenda radical vinda das camadas populares e de que eclodisse uma experiência parecida com a Revolução Cubana. 

JU – E quando acontece o golpe, além do conservadorismo político e ideológico permeando a sociedade, havia também uma expectativa de mudança econômica?

Marco Antonio Rocha Existia um processo inflacionário, que já ocorria desde o final do governo Juscelino Kubitschek, e um aumento do endividamento externo. Mas houve fatores muito pontuais que detonaram o golpe, como a política de salário mínimo de João Goulart. O governo tinha um viés trabalhista que assustava grande parte da classe média. A partir do fim dos anos 1950, o país começa a viver uma polarização, iniciada ainda com o suicídio de Getúlio Vargas. Essa polarização leva a esquerda a se juntar ao bloco trabalhista, o que causa um certo temor de uma esquerdização do bloco trabalhista. O que ocorria, na verdade, é que essas medidas visavam proteger os trabalhadores, permitindo o aumento real da renda. 

Todos os países latino-americanos estavam em contextos de crise não muito distintos entre si. Tratava-se, tipicamente, de crises de balanço de pagamento. A diferença é que nós, justamente, estávamos em um processo de polarização crescente, alimentado por mudanças estruturais do processo de industrialização. Devemos lembrar que a industrialização torna as classes médias mais complexas, faz aumentar o número de estratos urbanos e cria o proletariado. Ela cria novos agentes políticos, o que torna a estrutura política mais complicada. 

Assim, além da necessidade de fortalecer o mercado doméstico para permitir o crescimento das indústrias já implantadas, havia a necessidade de incorporar indústrias de base, as que oneravam o balanço de pagamentos. Isso demanda uma modificação significativa na estrutura do Estado, com a criação de bancos, fundos de financiamento etc. Tudo isso somado dá início a um processo de polarização. Esse processo, por sua vez, nos anos 1960, com a desaceleração da economia, cria um sentimento de “ou vai ou racha”.  

Operarios ponte Rio-Niterói

Operários festejam, em 1973, a colocação da última viga da Rio-Niterói: inaugurada em 1974, a ponte foi um dos símbolos do milagre econômico brasileiro (Foto: Reprodução/UFRJ)

JU – Existem características na condução da economia pela ditadura no Brasil que a diferencia da dos outros países da América Latina?

Marco Antonio Rocha A ditadura do Brasil é a única que leva adiante o processo de industrialização. Todas as demais o abandonaram. O Chile, a Argentina e o Uruguai optam por um abandono do processo de industrialização partindo da perspectiva de ser ele mesmo um fator de polarização política, de ser muito mais fácil controlar uma sociedade que ainda mantém uma estrutura social arcaica. O grande debate econômico que se faz sobre a ditadura no Brasil gira justamente em torno de seu viés industrialista.

Após 1967 começa o chamado “milagre brasileiro” e o processo de industrialização ganha força. É interessante notar que, de certa forma, a ditadura brasileira dá uma outra resposta ao diagnóstico segundo o qual se faziam necessárias as reformas de base, demonstrando ser possível uma industrialização com aquela base arcaica. Uma industrialização, porém, com um padrão de desenvolvimento completamente diferente. A industrialização brasileira poderia ter se apoiado em um perfil de renda muito mais igualmente distribuída, com um padrão de consumo das classes urbanas mais sofisticado, criando o instrumental necessário para capturar a renda dos estratos mais altos e taxar rendas elevadas e certas atividades a fim de percorrer uma trajetória de desenvolvimento muito mais equitativa. Não foi o que a ditadura fez. Ela levou adiante um padrão de industrialização baseado em um desenvolvimento altamente excludente. 

JU – É isso o que sintetiza a famosa frase de Antonio Delfim Netto, sucessor de Bulhões no Ministério da Fazenda, de que primeiro era necessário fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo? A ditadura então apenas fez o bolo crescer?

Marco Antonio Rocha Exatamente. Segundo a ideia defendida pela ditadura, o processo de industrialização é concentrador de renda em seu início e, mais tarde, à medida que a industrialização avança, esse processo promove a distribuição da renda. Essa é uma leitura um tanto equivocada do trabalho de um economista chamado [Simon] Kuznets. O que a ditadura faz é se apropriar dessa ideia para justificar um padrão de industrialização baseado na concentração de renda.

Simon Kuznets
Para Rocha, a ditadura fez uma leitura equivocada e se apropriou das ideias de Simon Kuznets (acima) para justificar um padrão de industrialização baseado na concentração de renda (Foto: Reprodução)

O que aconteceu no Brasil chama-se aumento da densidade de consumo, algo verificado entre as famílias de classe média do país. Elas consomem mais do que precisam e isso acaba fornecendo uma capacidade de crescimento a setores da indústria baseado na expansão do crédito ao consumo. Surgem as modalidades típicas de consumo do Brasil, como o crediário e o parcelamento, que fizeram a fortuna das lojas de varejo por conta de suas altas taxas de juros. Isso permitiu à classe média comprar televisões, geladeiras etc., bens que, por conta de sua renda, não poderiam ser adquiridos à vista. 

Então, a ditadura dava um jeito de levar adiante esse padrão de industrialização. A grande marca do período é a ideia de que o crescimento econômico, a industrialização e o desenvolvimento social podem ser coisas completamente distintas. A ditadura ofereceu uma prova cabal da possibilidade de haver crescimento econômico e industrialização com um perfil de desenvolvimento social pavoroso. 

JU – A primeira metade da ditadura militar, sobretudo o período de 1968 a 1973, ficou conhecido como o “milagre brasileiro”, com crescimento anual médio do Produto Interno Bruto (PIB) de 10%, chegando a 14% em 1973. Quais fatores fizeram com que esse ritmo de crescimento não se perpetuasse? O milagre não era sustentável?

Marco Antonio Rocha Primeiro, houve um esgotamento do próprio padrão de crescimento do mercado doméstico, uma incapacidade de levar adiante, de forma indefinida, o ciclo de endividamento das classes médias urbanas. Outro fator fez-se presente na forma de um excessivo endividamento internacional devido à maneira como a ditadura garantiu sua legitimidade, surfando em uma onda de liquidez internacional advinda do comércio de petróleo. 

Com o choque dos juros da economia norte-americana, em 1979, a dívida externa tornou-se simplesmente impagável, fazendo com que todos os países da América Latina enfrentassem problemas na balança de pagamentos e dificuldades para financiar seus processos de desenvolvimento econômico. Isso fez com que as economias começassem a se deteriorar de forma rápida por conta dos processos inflacionários, distorcendo completamente os preços relativos, atrapalhando os investimentos e dificultando a importação de maquinário e matérias-primas, o que, por sua vez, tornou desatualizada a tecnologia das indústrias brasileiras. 

Para lidar com isso, o governo lançou mão do congelamento das tarifas das empresas públicas, deteriorando sua capacidade de investimento. A industrialização dos anos 1970 baseou-se em grande parte no antigo “sistema brás”, formado por empresas como a Telebras e a Eletrobras, que tinham a função de organizar o investimento na área de pesquisa e o desenvolvimento de inovações nas indústrias. Quando a capacidade de investir se reduziu, a competitividade da indústria brasileira também diminuiu. Tudo isso detonou um processo, nos anos 1980, que bagunçou a economia brasileira como um todo, o que explica o nascimento de uma perspectiva segundo a qual o Estado não serve para nada, a indústria brasileira é arcaica etc. 

A adoção dessa perspectiva desemboca nas privatizações do governo de Fernando Collor, cuja abertura econômica mostrou-se muito mais ideológica do que arquitetada em termos estratégicos. O legado do desenvolvimentismo da ditadura foi a crise dos anos 1980, que abriu as portas para o neoliberalismo dos anos 1990.

JU – Qual leitura se faz hoje desse período da ditadura entre os economistas e entre os agentes do mercado? Ainda há uma romantização do “milagre brasileiro”?

Marco Antonio Rocha Entre os liberais, isso acontece muito pouco. O período já passou por um processo de revisão no debate liberal, inclusive com dúvidas sobre se o crescimento foi realmente significativo. Já entre os desenvolvimentistas, instalou-se um quadro um pouco mais complicado, porque o processo de industrialização é visto como central para o desenvolvimento econômico. Difícil é separar uma coisa da outra no debate e apontar que o processo deveria ter sido conduzido em um outro contexto e mirando outra trajetória. 

Note-se ainda que o Brasil, de certa forma, completou seu processo de industrialização, pelo menos do ponto de vista setorial, o que nos deu uma trajetória diferente daquela dos demais países da América Latina. Isso também acaba gerando um certo olhar benevolente. O grande problema é olhar a economia da ditadura como algo separado do período como um todo. Essa crítica ainda está sendo feita. Trata-se de um debate ainda em aberto. 

JU – Mesmo entre economistas e analistas econômicos que criticam o período da ditadura, há uma avaliação de que ela criou estruturas econômicas necessárias e importantes para o país. Talvez a principal delas seja o Banco Central, nascido em 1964. Você concorda com essa leitura?

Marco Antonio Rocha Precisamos separar algumas coisas. Criaram-se estruturas necessárias para levar adiante um processo de desenvolvimento industrial, como o fortalecimento do antigo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) – que depois se tornou o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] –, como o papel incorporado pela Petrobras ao assumir a exploração das águas profundas e como o próprio Banco Central. Trata-se de instituições que fazem parte das economias modernas. Qualquer país que tenha avançado em seu processo de industrialização possui essas estruturas. 

Elas foram criadas, no entanto, a fim de materializar um perfil de industrialização altamente excludente. Quer dizer: há mérito na criação dessas instituições? De certa forma, sim. Mas elas poderiam e deveriam ter sido montadas mesmo se tivéssemos outro perfil de desenvolvimento, um perfil que poderia ter avançado a partir das reformas de base, com uma maior divisão de terra, a elevação dos salários e uma menor desigualdade. É importante, porém, não jogarmos fora aquilo criado durante o período ditatorial e até hoje importante enquanto instrumento de desenvolvimento econômico. Esses são patrimônios brasileiros e devem ser mantidos e fortalecidos. Devem ingressar no século XXI e ganhar importância para o capitalismo do século XXI mundo afora. 

Belo Monte

Na opinião de Marco Antonio Rocha, “Belo Monte é um exemplo de uma concepção que ainda enxerga a Amazônia como um lugar de exploração” (Foto: Reprodução/Jornal da USP)

JU – Governos recentes do Brasil, sobretudo as gestões de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, investiram em projetos de incentivo à industrialização. Recentemente, o atual governo Lula anunciou o programa Nova Indústria Brasil. Qual a diferença entre esse desenvolvimentismo atual e aquele praticado durante a ditadura? Existem ainda heranças daquela visão de desenvolvimento industrial atualmente?

Marco Antonio Rocha Existem. Um exemplo muito claro disso foi a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Talvez não tenha ainda havido uma crítica apropriada ao período do “milagre brasileiro” e à visão segundo a qual o processo de industrialização realizado naquela época, apesar de todos os seus custos, tenha sido algo positivo para o país. O fato de termos completado nosso processo de industrialização é, claro, importante, sobretudo dentro da América Latina. Porém, trata-se de uma industrialização peculiar, que legou ao capital estrangeiro postos-chave da economia, que não alterou o lugar do país dentro da divisão internacional do trabalho e que manteve o Brasil como um exportador de produtos primários, além de ter sido socialmente excludente e ambientalmente pavorosa. 

Parte dessa crítica, aquela relativa ao caráter de exclusão social do processo, ganhou reconhecimento. Há dificuldade ainda em se fazer uma crítica sobre a mobilidade na divisão internacional do trabalho e o passivo ambiental deixado por esse modelo de desenvolvimento. Belo Monte é um exemplo disso, de uma concepção que ainda enxerga a Amazônia como um lugar de exploração. Outro exemplo: a discussão recente sobre a exploração de petróleo na Bacia Equatorial, na foz do Rio Amazonas. Há aí uma visão que leva o desenvolvimento adiante sem pensar nas populações diretamente afetadas. Por outro lado, é interessante termos vindo do governo Bolsonaro, que encarnava outra visão, que ecoa o fim do governo de Ernesto Geisel, ou seja, o abandono pela ala militar dos grandes projetos de desenvolvimento, uma defesa da posição subalterna em relação aos Estados Unidos e a adoção do liberalismo econômico. Às vezes vemos ecos desse desenvolvimentismo aqui e acolá. 

JU – O senhor vê então avanços nesses programas de incentivo à indústria, como é o caso do Nova Indústria Brasil?

Marco Antonio Rocha Sim, há avanços em relação aos governos anteriores do PT. Mas isso ocorre também porque a agenda mundial incorporou essas questões, sobretudo a pauta climática. Isso gera uma pressão internacional para que essas questões estejam na agenda dos governos. Se não fosse por essa mudança não sei se estaríamos vivendo essa repaginação do desenvolvimentismo. 

JU – O que explica a mudança de visão econômica da direita no Brasil? O que fez a direita abandonar o desenvolvimentismo e abraçar uma visão mais liberal, mais afeita ao mercado financeiro? Em outras palavras, o desenvolvimentismo tornou-se pauta apenas da esquerda no Brasil?

Marco Antonio Rocha É engraçado que os anos 1980, de certa forma, mataram a direita industrialista no Brasil. Se observarmos, por exemplo, a trajetória de Roberto Campos, um quadro técnico importante da industrialização promovida no período, diretor do antigo BNDE e ministro do Planejamento. Ele não era contrário à industrialização. Mário Henrique Simonsen, ministro da Fazenda de Geisel, também não era. Eles opunham-se a um viés nacionalista da industrialização. Essas figuras começaram a deixar de lado o debate sobre a industrialização a partir da crise do final do segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, que durou de 1973 a 1979. Parte do estrato político conservador brasileiro começa a abandonar o barco da industrialização a partir daquela crise, que se prolonga pelos anos 1980, e se alinha à defesa do neoliberalismo.

Talvez devido à própria conjuntura política dos anos 1980, isso ocorre com o próprio pensamento de direita mundo afora, com o pensamento conservador, e, no fim das contas, resulta no desaparecimento da direita industrialista no Brasil. O que resta do pensamento econômico da direita é, basicamente, o liberalismo. Não estamos falando de um fenômeno apenas brasileiro. Esse fenômeno ocorreu em grande parte da direita mundial nos anos 1990. Porém, atualmente, vemos um movimento da extrema direita que volta a ser protecionista, que volta a defender projetos de industrialização e de emprego de mão-de-obra local.

JU – O senhor considera importante voltarmos a ter uma direita que também tivesse um projeto industrialista?

Teste horizontal
Roberto Campos (à esquerda) e Mario Henrique Simonsen: deixando de lado, com os novos ventos, o debate sobre a industrialização (Fotos: Commons Wikimedia)

Marco Antonio Rocha Seria interessante termos uma direita que não fosse, meramente, cosmopolita. Entre 1950 e 1970, grande parte do debate político brasileiro ocorria no que poderíamos chamar de bloco nacionalista. Nele, cabia muita gente diferente, promovendo uma certa intersecção de estratos conservadores que apoiavam um projeto de desenvolvimento nacional com a parte desse mesmo bloco situado mais à esquerda. A força gravitacional desse bloco nacionalista vai se perdendo. O centro que existia em torno dos debates se perde. No fim das contas, resta uma direita muito cosmopolita e, portanto, essencialmente liberal. 

Vale observar também o que acontece com o próprio empresariado brasileiro, que abandona uma posição política de defesa do processo de industrialização ou se subordina a uma burguesia ligada ao mercado. Isso reduz o número de elementos em discussão dentro da direita, a discussão sobre o processo de industrialização. 

JU – Os agentes econômicos e empresários do período da ditadura demonstraram complacência com o autoritarismo de então. Considerando que tivemos quatro anos de um governo que também defendia ideias autoritárias e que teve chancela de grande parte do mercado e de empresários, você considera que este é um problema que persiste no Brasil: fazem-se concessões a um projeto antidemocrático desde que haja uma gestão econômica vantajosa para alguns grupos?

Marco Antonio Rocha Eles demonstraram que continuam sendo o que sempre foram, que estão muito pouco preocupados com a população brasileira e que estão dispostos a sacrificar qualquer coisa em nome de seu projeto econômico. Também porque são grupos portadores, historicamente, de privilégios de classe em uma sociedade de base escravocrata e aristocrática. Quando somamos esses fatores, temos as marcas de certos privilégios. Por exemplo, vimos em 2018 declarações de que, se ao menos houvesse a presença de Paulo Guedes no governo, uma ditadura seria aceitável. 

Claro que isso não foi dito assim, de forma clara, mas houve discursos sobre um “remédio amargo” valer a pena para que houvesse algo descrito como uma boa gestão da economia. Porém não houve sequer essa boa gestão. Assim como em 1964, estamos diante de pessoas que não tiveram pudor ao abrir mão da democracia a fim de garantir seus privilégios. E o ano de 2018 representa também um capítulo dessa história.

Choques em sequência

Lições e reflexos

A ditadura militar não representou o fim das políticas desenvolvimentistas no país. A agenda de incentivo à industrialização esteve presente, por exemplo, em gestões do Partido dos Trabalhadores (PT), como no caso do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). No fim de janeiro de 2023, o atual governo, do PT, lançou o programa Nova Indústria Brasil, com investimentos de R$ 300 bilhões, por meio da concessão de créditos do BNDES e de fundos setoriais a áreas estratégicas como as da agroindústria, da saúde, da transformação digital e das tecnologias verdes. 

Paulo Guedes
Paulo Guedes, ministro da Economia do governo Bolsonaro: apoio do empresariado nas eleições de 2022 (Foto: Agência Brasil)
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