Quilombos
José Maurício Arruti
Aliança entre caserna e empresas desalojou comunidades centenárias
Conluio militar-empresarial atingiu milhares de quilombolas em áreas consideradas “estratégicas” pela ditadura
Tote Nunes
Com raízes que se estendem até o Brasil Colônia, as comunidades quilombolas viram-se atingidas pela repressão do regime militar instaurado em 1964, a partir de um conluio entre a caserna e empresas privadas. A avaliação foi feita pelo historiador, antropólogo e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp José Maurício Arruti, que coordena o projeto Quilombos: Memórias, Configurações Regionais e os Desafios da Desdemocratização Brasileira, levado a cabo pelo Laboratório de Pesquisa e Extensão com Povos Tradicionais, Ameríndios e Afro-Americanos (Lappa) em associação com o Núcleo Afro-Cebrap.
De acordo com o professor, essa aliança empresarial-militar materializou-se, por exemplo, em uma área quilombola do Espírito Santo que acabou ocupada pelos eucaliptos da multinacional Aracruz Celulose. “Essa área só foi viabilizada como espaço de plantio de eucaliptos em função da aquisição criminosa de terras por parte da empresa, em conluio com o governo estadual e o regime militar”, disse Arruti.
“Existia um personagem famoso na região, muito violento, que era o responsável pela compra de terras. Ele era conhecido como Tenente Merçon, aposentado do Exército. Usava uniforme militar, andava armado e coagia os moradores [a vender suas terras]. Todo mundo sabia que ele pertencia ao regime”, revela.
Segundo o Mapa de Conflitos elaborado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o território quilombola de Sapê do Norte ocupava uma extensa área entre os atuais municípios de São Mateus e Conceição da Barra, no Espírito Santo. Nessa área, viviam cerca de 12 mil famílias espalhadas por mais de cem comunidades. Hoje, restam menos de 1.200 dessas famílias ali. De acordo com o mapa, “essas comunidades foram expulsas de seus territórios tradicionais por um violento processo de colonização patrocinado pelo Estado”.
Arruti diz que dois outros episódios, desta vez em São Paulo, mostram que projetos desenvolvimentistas ou de repressão política do regime militar interferiram diretamente em comunidades quilombolas. Um deles, o projeto de construção de pequenas usinas hidrelétricas ao longo do Vale do Ribeira, um projeto frequentemente retomado e que não leva em conta as formas de vida dos territórios tradicionais, o respeito aos direitos humanos ou mesmo as questões ambientais. A região concentra 37 das 58 comunidades quilombolas do Estado. Com a pavimentação da BR-116 na década de 1960, houve uma súbita valorização das terras, acompanhada pela expansão da agricultura comercial, a especulação imobiliária, a grilagem de áreas e a consequente intensificação dos conflitos agrários.
O outro episódio envolve um fator político. Os quilombolas da região foram acusados de abrigar Carlos Lamarca – um dos líderes da luta armada contra a ditadura brasileira. Os militares afirmaram que os quilombolas protegiam Lamarca e, supostamente por conta disso, começaram a perseguir de forma violenta vários moradores dessa localidade. “Há relatos, inclusive, de que teria sido usado o agente laranja”, conta o professor, referindo-se ao herbicida amplamente utilizado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã (1955-1975).
Alcântara
Situado em uma terra ocupada originalmente pelo povo Tupinambá, o município de Alcântara, no Maranhão, assistiu ao deslocamento forçado de centenas de remanescentes dos quilombos, naquele que talvez seja o episódio mais emblemático da causa quilombola no Brasil. Hoje, na região, comunidades quilombolas vivem confinadas e sob constante ameaça de despejo, por conta da instalação do Centro de Lançamento de Alcântara – um dos projetos do programa espacial brasileiro.
Segundo a Agência Brasil, o centro foi construído nas proximidades da capital São Luís, na década de 1980, pela Força Aérea Brasileira (FAB) como base para o lançamento de foguetes. Na época, 312 famílias quilombolas de 32 povoados acabaram expulsas do local e reassentadas em sete agrovilas. Alguns grupos permaneceram ali e, segundo os denunciantes, sofrem até hoje ameaças constantes de expulsão para permitir a ampliação da base.
No ano passado, o caso chegou a ser julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em Santiago, no Chile, e o Estado brasileiro reconheceu ter violado os direitos de propriedade e de proteção jurídica de comunidades quilombolas durante a construção da base.
Cobiça militar
Arruti chama atenção para um aspecto que considera muito importante nesse processo. De acordo com o pesquisador, mostra-se significativa a quantidade de áreas pertencentes a comunidades quilombolas cobiçadas pelos militares. “Nós temos o caso de Marambaia, na região de Mangaratiba, no litoral sul do Rio de Janeiro, que é uma área de interesse da Marinha. Temos Alcântara, que é de interesse da Aeronáutica, e temos o Rio dos Macacos, no Recôncavo Baiano, uma área de interesse do Exército”, disse.
O professor lembra que, no início dos anos 2000, o conflito na Bahia ganhou visibilidade devido a uma violenta ação lançada contra a população original, ameaçada para deixar o território que ocupa há mais de um século. Segundo Arruti, o Exército chegou a fechar a área impedindo o acesso das pessoas à sua própria terra. Nos deslocamentos, houve registros de pessoas agredidas violentamente. Moradores denunciaram que o Exército ocupou inclusive nascentes e trechos do rio onde as pessoas pescavam.
“É muito interessante essa situação, porque ela materializa um enunciado que a gente pode considerar mais amplo. Para as populações quilombolas, assim como para as populações indígenas, a mudança de regime não é tão relevante assim”, afirma. “A violência a que estão submetidas não é uma violência de regime político, mas uma violência de Estado, de longo termo, que se perpetua e se manifesta nas estruturas estatais, independentemente do regime”, acrescenta. “São situações que transcendem a mudança de regime e que se conectam com o caráter colonial do Estado e da sociedade brasileiros.”
Bolsonaro
A violência de Estado a que se refere o historiador e antropólogo da Unicamp aparece de diversas formas. Uma delas, a negligência com que as autoridades tratam questões como o direito à reparação dessa parcela da população. A escravidão acabou no Brasil, oficialmente, em 1888, mas apenas cem anos depois, em 1988, os quilombolas passaram a ser reconhecidos de forma institucional. A implementação de políticas públicas para esse grupo, no entanto, avança em ritmo lento, quase quatro décadas após aquele processo de reconhecimento.
A primeira política pública para o setor só apareceu em 2003 – durante o governo inaugural do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006). E durou pouco. A partir da metade do segundo mandato de Lula (2007-2010), esses esforços começaram a minguar. E recuaram ainda mais com os primeiros cortes orçamentários determinados pela presidente Dilma Rousseff em sua primeira passagem pelo governo (2011-2014).
Durante o governo de Michel Temer (2016-2018) e sua política de teto de gastos, o orçamento para o setor desapareceu. Sob Jair Bolsonaro (2019-2022), além da persistência do corte orçamentário, houve um desmonte da legislação e o fim da chamada institucionalidade, traduzidos pela quase extinção da participação popular em conselhos e órgãos do governo responsáveis pelo setor. “Então nós temos aí o fim da política. A diferença entre Temer e Bolsonaro é que, se Temer acabou com a política, Bolsonaro vai tentar destituir o direito”, diz o professor.
Para Arruti, Bolsonaro desfez as relações institucionais, eliminando os conselhos consultivos e fechando outras instâncias de participação popular. “Depois disso, vieram a violência verbal e o racismo explícito”, afirmou o professor, lembrando a forma como Bolsonaro se referiu aos quilombolas. Em 2022, no Rio de Janeiro, o então presidente chegou a dizer que indígenas e quilombolas “atrapalhavam a economia”. Na mesma oportunidade, Bolsonaro contou ter notado, ao visitar uma comunidade quilombola, que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”.
“Isso, no entanto, não era apenas bravata. Tratava-se de uma estratégia de poder, porque a gente viu na prática que essas declarações públicas alteravam a lógica política local, alteravam o equilíbrio dos atores na ponta. Então, os proprietários de terra se tornaram mais violentos. O agronegócio se tornou mais violento no contato com essas comunidades. Os funcionários públicos locais e os juízes de primeira instância começaram a mudar o entendimento que tinham sobre os processos administrativos e judiciais”, afirma o professor.