Projeto desenvolvido na Unicamp tem como foco análises sobre mídias, arquivamento e formas de difusão
Dia 8 de janeiro de 2023. Invasores entram nas sedes dos três Poderes em Brasília e transmitem o passo a passo dos seus atos nas redes sociais. Momentos depois, a mídia tradicional começa a cobrir o caso. Reportagens de televisão, textos em portais online, colunas, divulgação nas redes. Usuários da web passam a interagir e a produzir conteúdos. Uma profusão de informações toma conta do mundo virtual de forma veloz, com diversas narrativas em disputa. No futuro, como poderemos consultar essas informações e quais serão aquelas a servir para reconstruir a história? Questões como essas fazem parte do projeto Centro de Humanidades Digitais (CHD) da Unicamp, coordenado pelo professor Thiago Nicodemo.
O CHD originou-se do Grupo de Pesquisa Memória Digital: Arquivo e Documento Histórico no Mundo Contemporâneo, vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O centro tem como objetivo refletir sobre aspectos teóricos e metodológicos das mídias digitais e de seu arquivamento, desenvolver técnicas de processamento de um corpus arquivístico e bibliográfico, bem como explorar, junto à sociedade, formas de conexão e de difusão do saber.
Segundo Nicodemo, docente do Departamento de História da Unicamp e atual coordenador do Arquivo Público do Estado de São Paulo, o centro é produto da pandemia e, durante aquele período, nasceu um dos seus principais projetos, que busca compreender como se dá o registro dos fatos envolvendo a covid-19. Para isso, o grupo, do qual fazem parte o doutorando Ian Marino e a graduanda em História Amanda Montezino, realizou entrevistas com organizadores de arquivos digitais da pandemia no Brasil.
“Fizemos o monitoramento e a análise qualitativa e quantitativa dos projetos de iniciativa e memória da pandemia no Brasil e na América Latina, pensando nas condições de preservação dessa memória de forma que ela possa ser usada também na busca e na luta por direitos”, indica o professor.
Um dos projetos é o “Fala Parente! A Covid chegou entre nós”, resultante do Programa de Educação Tutorial (PET) do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal do Amapá (Unifap). A iniciativa contou com cem relatos de indígenas do Estado, que compartilharam suas experiências sobre a chegada do vírus às aldeias e a suas vidas.
São mais de cem iniciativas disponibilizadas na base de dados. Os dados da pesquisa, destaca o historiador, são abertos. No site do CHD (chd.ifch.unicamp.br) é possível visualizar o levantamento completo e as análises sobre o panorama arquivístico relacionado ao tema.
Preservação e reparação
Uma das preocupações principais do CHD são as diversas formas de arquivamento de dados e sua preservação. “Há muitas formas novas de produção de memórias e eu busco fazer tipologias e estudos para entender quais arquivos vão ser importantes para a gente contar as histórias no futuro e como preservá-los. Isso gera um novo olhar para as humanidades, porque inevitavelmente essa preservação envolve tecnologia”, afirma Nicodemo.
A preservação, reflete, pode possibilitar um processo de reparação ou de busca por justiça em um contexto de profusão de informações que não facilita a interpretação dos fatos. Pelo contrário, torna-a mais complexa. Um exemplo citado por ele é o do conflito entre Israel e o Hamas, a respeito do qual um dos desafios consiste em separar a informação verídica das informações falsas.
“Estamos estudando como eventos-limite produzem memórias difíceis, mas que precisam ser guardadas para contar a história. E não se guarda simplesmente porque pessoas morreram. Guarda-se também porque alguém tem que ser responsável por reparar”, observa o historiador.
Refletir sobre os meios de propagação das informações também faz parte dos esforços do CHD. No caso do 8 de janeiro, o professor e o seu aluno de doutorado em História Alesson Rota investigaram de que forma o Twitter pode ser construído como um documento histórico. “Quem primeiro entrou no Twitter registrando [as ações] foram os invasores. E eles entraram com a sensação de que podiam fazer tudo, de que nada ia acontecer com eles. Mas, quando ocorreu a repressão, com a polícia atuando, eles apagaram os conteúdos. O tweet dura 15 dias, perde-se muito rápido e não se consegue fazer com que vire uma evidência”, analisa o professor.
Reflexões éticas
O processo de salvaguarda da memória e de preservação dos fatos, em um universo cada vez mais digitalizado, também suscita questionamentos sobre questões éticas e legais relacionadas ao armazenamento de dados. Nicodemo lembra que há duas visões prevalentes sobre a questão: uma que trata os dados como commodities e outra que centraliza no Estado o armazenamento e o uso de dados.
Para o professor, um dos autores da Política de Gestão e Preservação de Documentos Digitais do Estado de São Paulo, a reflexão sobre a questão ainda se mostra incipiente e é necessário avançar. “Não temos uma cultura para os dados e hoje temos um problema que é a perda da governança das pessoas e das instituições sobre seus dados e sobre sua memória. A pergunta é: quem vai ter acesso à memória e à história no futuro?”, indaga.