Professor encontra na história das ciências um instrumento para a interdisciplinaridade
A implantação das primeiras fábricas Leblanc de carbonato de sódio (chamado popularmente de soda), na França do século 18, envolveu aspectos científicos, econômicos, sociais e ambientais que inspiraram o projeto de doutorado levado a cabo por Ivo de Freitas no programa de Pós Graduação Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática (Pecim) da Unicamp. Professor de química, o pesquisador abordou o potencial da história das ciências para viabilizar uma abordagem interdisciplinar no ensino básico, a partir de uma historiografia contemporânea que destaca os diferentes prismas de um episódio decisivo para o desenvolvimento ocidental. Sua narrativa serve de guia para orientar educadores e fornece subsídios para a criação de projetos que visem ao diálogo entre diferentes áreas do saber. Discute, ainda, os desafios de sua adoção no Brasil.
Destacada na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como princípio fundamental da integração curricular, a educação interdisciplinar não encontra espaço nas redes pública e privada, avalia Freitas. Já na graduação, o foco na especialização disciplinar não capacita o professor em formação para interagir com outras áreas, diz o agora doutor em ensino de ciências e matemática. Uma vez no mercado de trabalho, os educadores, frente ao acúmulo de aulas em diferentes escolas e à estrutura engessada da grade, que compartimenta o conhecimento em matérias estanques, distanciam-se uns dos outros. “A interdisciplinaridade é a formação para o diálogo, para a construção de propostas. As disciplinas têm de conversar entre si, para o estudante entender melhor uma situação. No entanto, o modelo praticado hoje foca o isolamento dos sujeitos. O professor leciona sua aula e vai para outra escola. Não conversa com os colegas, talvez nem com os alunos”, analisa.
A junção de interdisciplinaridade com história das ciências possibilita a aquisição de um conhecimento amplo sobre temas complexos e fenômenos científicos contemporâneos, defende o pesquisador. Por abordar os aspectos envolvidos na construção e no funcionamento da ciência, essa combinação favorece o desenvolvimento do pensamento crítico, coibindo o negacionismo, explica Gildo Girotto Júnior, professor do Instituto de Química (IQ) da Unicamp que orientou o doutorado em parceria com Adriana Rossi, docente da mesma unidade. “Contar como essa história foi construída mostra que a ciência é feita por seres humanos, a partir do emprego de métodos e mecanismos necessários para comprovar ou refutar fenômenos. E que está inserida em um ambiente sujeito a influências externas. Ela não traz verdades absolutas”, frisa o docente.
A complexidade da conjuntura por trás do desenvolvimento do processo creditado ao cientista francês Nicolas Leblanc (1742–1806), o primeiro método de obtenção da soda que permitiu produzi-la em escala industrial, foi decisiva para sua escolha como tema da pesquisa, revela o autor da tese. “A soda se insere no contexto da expansão industrial da Europa. Então, essa foi uma oportunidade para discutir questões da história da química e da química em si, pois a substância serve de insumo para indústrias de papel, de vidro e têxteis. Também havia um potencial para discutir a história social da indústria no continente, refletir sobre as influências da Revolução Industrial nesse processo”, argumenta.
Sua pesquisa tratou de textos escritos por historiadores das ciências, a partir de documentos dos séculos 18 e 19 disponibilizados em materiais de difícil acesso. Com base em referenciais teóricos diversos, o professor de química elaborou os critérios necessários para avaliar o potencial interdisciplinar do episódio escolhido, chegando a três quesitos de análise: diálogo com o conhecimento oferecido por outras disciplinas; diálogo com os contextos materiais; e diálogo com conhecimentos que promovem o entendimento sobre o funcionamento das ciências. “A pesquisa histórica tornou evidente que Leblanc era um homem de seu tempo, inserido dentro de um contexto histórico e social. Antes de sua contribuição, vários outros ensaios industriais estavam sendo realizados na Europa, por diversos outros inventores. Não foi um caso isolado, do tipo eureka, em que uma ideia surge do nada.”
Pirâmide
Para definir quais ângulos de análise seriam contemplados por sua pesquisa, Freitas seguiu o conceito de múltiplos domínios – modelo desenvolvido pelos cientistas brasileiros Celso Barbiéri Júnior e Tiago Maurício Francoy para o estudo da meliponicultura (criação de abelhas sem ferrão). Segundo o pesquisador, a ferramenta utiliza a figura da pirâmide como metáfora a fim de ilustrar uma metodologia criada para estudar questões complexas, permitindo a observação de detalhes de seus diferentes recortes e, também, a compreensão do todo. Em seu projeto, o professor de química selecionou quatro domínios do episódio histórico em questão: científico, econômico, social e ambiental.
Resultado do desmatamento que devastou a Europa nos anos 1700, a escassez de matéria-prima necessária para a obtenção de insumo impulsionou a busca por alternativas com o objetivo de suprir a demanda e garantir independência econômica, assunto tratado no domínio econômico do trabalho. Já a necessidade de substituir o produto favoreceu o desenvolvimento científico. Além de apresentar teorias químicas elaboradas na época, Freitas tratou de sua importância no surgimento dos primeiros projetos industriais de produção da soda. O pesquisador discutiu, ainda, como as teorias de afinidades serviram de motor para as primeiras reações do processo Leblanc.
No mesmo período em que as primeiras fábricas Leblanc foram erguidas, a Revolução Francesa se desenrolava no país, o que determinou o curso de sua disseminação pela Europa, causando impactos sociais de grandes proporções. “Em meio ao clima revolucionário, o país decretou a nacionalização das patentes, e aquele processo se tornou de domínio público. Isso facilitou a expansão das fábricas de soda na Inglaterra, contribuindo para a expansão da Revolução Industrial, que modificou as relações trabalhistas da época. Começa a haver uma busca incessante pelo lucro”, descreve Freitas, que se debruçou sobre os dois episódios históricos em sua proposta.
Por fim, para fazer um paralelo com os dias de hoje, o professor de química explorou como repercutiu, na época, a preocupação com as questões ambientais. “No início do século 19, foi criada uma legislação sobre as indústrias insalubres. Isso favorecia a busca por melhorias técnicas, nas fábricas, mostrando uma participação política e popular no processo. Considerar a dimensão ambiental é importante para que o estudante faça paralelos com o que acontece hoje, promovendo, assim, uma educação crítica”, finaliza.