Bióloga usa técnicas avançadas de extração e purificação simultâneas de compostos bioativos
No vasto universo das bebidas naturais, o chá tem ocupado um lugar de destaque há séculos, não apenas por seu sabor reconfortante mas também por seus potenciais benefícios à saúde. Do chá verde ao de camomila, cada variedade tem propriedades únicas. No entanto, dois tipos têm estado sob o foco das pesquisas científicas recentemente: os chás preto e mate. Estas infusões, amplamente consumidas em diferentes partes do mundo, têm revelado uma riqueza surpreendente de substâncias químicas naturais e chamado a atenção de cientistas para potenciais utilizações com benefícios à saúde humana.
Os chamados compostos bioativos, também presentes em vários outros alimentos, como frutas, vegetais, nozes e sementes, têm capacidade de interagir com processos biológicos do corpo. Muitas pesquisas científicas demonstram seu potencial na prevenção de doenças crônicas, como diabetes, doenças cardiovasculares e até mesmo câncer. O desafio está na produção de extratos purificados e com elevada concentração dessas substâncias — normalmente obtidas em forma bruta, ainda apresentando certo nível de impureza.
Em pesquisa de doutorado desenvolvida no Laboratório Multidisciplinar em Alimentos e Saúde (Labmas) da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, a bióloga Mariana Correa de Souza, especialista em Ciências Nutricionais e Metabolismo, utilizou e desenvolveu técnicas avançadas de extração e purificação simultâneas de compostos bioativos — principalmente dos chamados flavonoides — das folhas de chá preto e mate, além de ter avaliado a posterior aplicação desses compostos em alimentos e seu potencial biológico. Flavonoides são pigmentos naturais presentes na maioria das plantas e que apresentam importante ação antioxidante, anti-inflamatória, antiviral, antibacteriana, antialérgica e vasodilatadora, todas relevantes para a saúde humana.
A purificação dos compostos foi monitorada em tempo real, o que permite realizar rapidamente qualquer ajuste necessário, reduzindo tempo e custo do processo. Obteve-se, assim, um extrato concentrado de flavonoides livre de outros interferentes, algo inédito na ciência até o momento. Além disso, os flavonoides resistiram ao processamento térmico durante a fabricação de pães funcionais, indicando que há um potencial de aplicação dessa classe de compostos em alimentos.
Outro resultado relevante apontou um efeito antimicrobiano seletivo dos flavonoides em microrganismos patogênicos, que não se estendeu a microrganismos probióticos. Como explica a especialista, essa sinergia entre flavonoides e bactérias probióticas pode ser explorada tanto para aplicação na indústria alimentícia como para produção de bebidas probióticas. Por fim, testes iniciais in vitro também demonstraram que os flavonoides purificados possuem alta capacidade biológica antitumoral. “Este resultado reforça o grande potencial promissor dessa classe de composto”, avalia Souza.
O trabalho foi desenvolvido em cotutela com a Universidade de Cádiz (Espanha), com orientação do professor Maurício Ariel Rostagno, coordenador do Labmas, e coorientação da professora Adriane Antunes, coordenadora do Laboratório de Lácteos, Probióticos e Prebióticos da FCA (LLPP). A pesquisa rendeu, até o momento, a publicação de três artigos em revistas científicas internacionais (LWT, Food Science and Technology e Food Chemistry Advances) e duas patentes de invenção depositadas no Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (Inpi). O estudo recebeu, ainda, o Prêmio Inventores 2023, da Agência de Inovação da Unicamp, além de menção honrosa do Prêmio Capes de Tese 2023, na categoria Nutrição.
Técnicas avançadas
Rostagno explica que a utilização dos compostos bioativos em aplicações na saúde e em alimentos depende do sucesso da sua extração a partir da matéria- -prima, que precisa ser eficiente, seletiva (separar bem os compostos) e barata, sem provocar a degradação das substâncias. Segundo o docente, métodos convencionais são muito demorados e pouco eficientes, envolvendo diversas etapas. “Em processos convencionais, os extratos produzidos contêm todos os compostos misturados: ácidos fenólicos, cafeína e flavonoides, entre outros. O problema é que a cafeína se encontra em uma concentração muito mais alta do que os demais compostos. Assim, para permitir explorar a bioatividade desses compostos, é necessário separá-la dos demais”, explica o especialista.
Para alcançar a extração seletiva dos compostos, os pesquisadores combinaram técnicas avançadas, como a extração com líquidos pressurizados (PLE) e a extração em fase sólida (SPE), com um detector de raios ultra-violeta (UV) online acoplado ao sistema. “Nossa tecnologia permite realizar a extração e a purificação de forma simultânea e monitorar o processo em tempo real, eliminando diversos passos”.
A pesquisa desenvolvida no laboratório de Rostagno faz parte de um projeto maior, que abrange outras teses de doutorado, dissertações de mestrado e trabalhos de pós-doutorado. O grupo está desenvolvendo um sistema bidimensional para análise de compostos bioativos em alimentos, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “Muitos resultados ainda serão obtidos, mas estamos particularmente interessados no uso de detectores para monitorar o processo de extração e em como utilizar esses dados para quantificar os compostos presentes. Também estamos apostando no uso de gradientes de solvente de extração para aumentar o rendimento da extração de compostos com diferentes características químicas e aumentar a concentração nos extratos. Neste contexto, estamos explorando solventes alternativos com menor impacto ambiental, como os solventes eutéticos profundos, entre outros”.
São muitas as aplicações práticas possíveis — os extratos podem ser utilizados na produção de medicamentos, cosméticos e até anticorrosivos para a indústria mecânica. No entanto, o foco do grupo é a produção de extratos purificados para aplicação na indústria alimentícia, como ingredientes bioativos para elaboração de alimentos funcionais, substituindo aditivos sintéticos como conservantes, por exemplo.
É um trabalho que exige produção de novos conhecimentos, muita dedicação e investimentos pacientes de recursos públicos. Somente assim é possível avançar na produção de novas tecnologias e ciência de qualidade para o desenvolvimento econômico do país. “Fazer ciência não é fácil. Sou muito grata à oportunidade que me foi confiada nesses anos de pós-graduação. Fazer ciência na Unicamp é fazer ciência de mãos dadas”, coloca Souza