Escritor, cuja obra é marcada pelo resgate da memória histórica e pela autoficção, é o novo convidado do Programa do Artista Residente
O escritor, roteirista e dramaturgo paulistano Marcelo Rubens Paiva é o novo convidado do Programa “Hilda Hilst” do Artista Residente do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp. O premiado autor, um ex-aluno da Unicamp que estreou na literatura com o romance autobiográfico Feliz Ano Velho, de 1982, participará de uma série de atividades entre outubro e dezembro, incluindo palestras e uma oficina de literatura com cinco encontros.
O ciclo tem início no dia 20 de outubro com a palestra “Marcelo Rubens Paiva: a missão de um escritor”, às 14h, no anfiteatro do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), no qual o autor cursou seu mestrado, de 1991 a 1994. Entre 27 de outubro e 1º de dezembro, acontecem, em encontros semanais a serem realizados por meio de uma plataforma de vídeo, as oficinas literárias abordando seu processo criativo. As inscrições já estão abertas.
A marcante vivência de Paiva na Unicamp teve início aos seus 17 anos, quando ingressou no curso de engenharia agrícola na então Faculdade de Engenharia de Alimentos e Agrícola. Nessa fase (1977-1979), viveu intensamente a vida da Universidade, do distrito de Barão Geraldo e de Campinas, o que contribuiu para sua formação inclusive como escritor, produzindo contos, letras de música, poemas e textos diversos para fanzines. Em dezembro de 1979, um acidente marcaria para sempre a vida de Paiva: ao pular em um lago durante uma festa, quebrou uma vértebra e ficou paraplégico.
“A Unicamp sempre esteve na minha fantasia, como o lugar em que eu fui muito feliz e, por outro lado, como o lugar em que eu sofri uma tragédia, a pior da minha vida, que mudou minha vida. A tragédia não foi exatamente na Unicamp, foi na Rodovia dos Bandeirantes, em um lago que existe até hoje em um sítio, mas foi em uma festa de fim de ano do terceiro ano de engenharia agrícola”, recorda Paiva.
No processo de recuperação e de adaptação às novas condições limitantes, Paiva recebeu um convite do editor Caio Graco Prado (1931- 1992), da Editora Brasiliense, para escrever um romance de ficção baseado em sua história. O autor vivia outro drama pessoal a compor o enredo daquele Brasil pós-anistia que lutava para colocar fim ao longo inverno de sua sangrenta ditadura militar. Paiva era filho do ex-deputado federal Rubens Paiva (1929-1971), cassado pelo golpe de 1964 e, sete anos depois, sequestrado em sua residência pelo aparato do regime ditatorial. Preso ilegalmente, torturado e privado do contato com sua família, o político foi morto nos porões do Exército no Rio de Janeiro. Seu corpo permanece desaparecido até hoje.
Lançado em 1982, Feliz Ano Velho, em pouco tempo, tornou-se um fenômeno de vendas, colocando o autor em evidência na mídia, tendo texto adaptado para o cinema e para o teatro e, assim, alcançando um grande público. Recorrendo à autoficção com bastante humor, apesar do pano de fundo trágico, Paiva atingiu um leitorado jovem ao abordar questões de comportamento, sexo e política, com linguagem acessível. Nos anos de repercussão posteriores ao lançamento, o autor conquistou reconhecimento de público e crítica, como o Prêmio Jabuti de 1983, e seu livro de estreia se tornou um dos mais vendidos do Brasil nos anos 1980: 120 mil exemplares nos dez primeiros meses e cerca de 400 mil até o começo dos anos 2000.
Adaptado por Alcides Nogueira para o teatro, com direção de Paulo Betti, Feliz Ano Velho celebrou sua milésima apresentação em 15 de maio de 1986, em um espetáculo realizado junto com a banda Legião Urbana, no Ginásio da Unicamp, e organizado pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE). Apesar de dificuldades com a acústica do local, um espaço mais afeito à prática esportiva, a presença naquele evento, denominado “Feliz Legião”, de um público de 5 mil pessoas, entre elas o próprio Paiva, emocionou o elenco, formado por Adilson Barros (1947-1997), Denise Del Vecchio, Lilia Cabral, Christiane Rando, Marcos Frota e Marcos Kaloy.
“Esse conflito, em que a pessoa tem que, de um dia para o outro, mudar todos os planos de vida e tentar se reconstruir, tentar apagar o passado e ser uma nova pessoa, é algo universal. Parece o mito do Sísifo, de todo dia erguer uma pedra para cima da montanha e ver a pedra cair”, comparou Paiva, falando sobre a abrangência e atemporalidade da trama de Feliz Ano Velho.
A pressão revelou-se enorme para um autor estreante, à época com 23 anos, obrigado a estar precocemente preparado para dar dezenas de entrevistas, participar de eventos diversos e estar sujeito ao assédio do público e da imprensa, uma experiência que ele define como “assustadora”. “Eu fiquei atordoado. Não sabia o que fazer da vida. Então, começaram a aparecer os prêmios, o assédio, as entrevistas, que eu não sabia dar, já que era péssimo e já que não tinha ninguém encarregado da área de relações públicas”, conta o então estudante de Rádio e TV pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), cuja atenção estava voltada para a faculdade e para a vida social intensa em uma época de efervescência cultural.
Feliz Ano Velho foi adotado em muitas escolas interessadas em trazer para o currículo a discussão sobre a ditadura militar (1964-1985). Para surpresa de Paiva, entretanto, o fenômeno da ascensão da extrema direita na política brasileira na última década mostra o quanto ainda há de desconhecimento e desinformação na sociedade brasileira sobre esse passado sombrio. “O que se falou sobre a ditadura nos últimos anos foi assustador: pessoas tendo como ídolo Brilhante Ustra [Carlos Alberto Brilhante Ustra, 1932-2015, coronel do Exército que liderou centros de tortura e execução de opositores da ditadura], bandeirinhas do AI-5 [Ato Institucional no 5] nas manifestações bolsonaristas e pedidos de intervenção militar.”
Passado o impacto inicial da repercussão do best-seller, nas duas décadas seguintes, a produção literária de Paiva continuou intensa, obrigando o autor a trancar sua matrícula na USP para escrever seu segundo livro, Blecaute (1986). Graduado pela ECA em 1988, foi apresentador de televisão, jornalista na grande imprensa, roteirista e dramaturgo. Na década seguinte, publicou Ua:brari (1990), uma aventura sobre um desaparecimento na Amazônia, e, quando já cursava o mestrado em teoria literária na Unicamp sob orientação do professor Antonio Arnoni Prado (1943-2022), o romance político-policial Bala na Agulha (1992).
Após ter cumprido todos os créditos das disciplinas no IEL, terminou por não defender a dissertação, preferindo aceitar um convite para ser bolsista durante um ano (1994-1995) na Universidade Stanford (EUA), onde continuou a estudar literatura. “Eu tenho uma paixão pela Unicamp, que me lembra muito de Stanford. Acho que ela foi um pouco inspirada pelas universidades norte-americanas, que fazem você residir na universidade.” A proposta de escrever um romance sobre a guerrilha do capitão Carlos Lamarca (1937-1971) no Vale do Ribeira, objeto de seu mestrado no IEL, acabou por ser concluída e a obra, publicada em 1996 sob o título Não És Tu, Brasil.
Ausência e desmemória
Essa perplexidade com o déficit educacional e com a desinformação sobre a história do país funcionou como um dos propulsores de sua escrita mais recentemente. Em 2015, voltou a adotar uma abordagem autobiográfica ao publicar Ainda Estou Aqui, também vencedor do Prêmio Jabuti, narrando em profundidade o episódio do desaparecimento e assassinato de seu pai e a biografia de sua mãe, Eunice Facciolla Paiva (1932-2018), advogada e militante também encarcerada na ocasião da prisão de Rubens Paiva.
A mãe do escritor teve uma carreira de destaque na defesa dos direitos dos indígenas e dos desaparecidos políticos, exercendo um papel importante no Brasil durante os anos de chumbo e na redemocratização. A reconstituição da história feita por Paiva serviu-se de dados apurados detalhadamente pela Comissão Nacional da Verdade (2011-2014) e teve como estímulo inicial a descoberta de que Eunice sofria de Alzheimer, levando a temática do resgate da memória, tanto pessoal como histórica, a outro patamar.
Ainda Estou Aqui está sendo adaptado para o cinema pelas mãos do também premiado Walter Salles, diretor de Central do Brasil (1998). Tendo no elenco Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, ambas no papel de Eunice Paiva, e Selton Mello, no papel do próprio Marcelo Paiva, o longa-metragem, que deve ter suas gravações concluídas em outubro, ainda não conta com previsão de lançamento nos cinemas. Amigo da família Paiva desde os anos 1960, Salles se propôs a reconstituir com riqueza de detalhes o cenário do Rio de Janeiro no qual se passa parte da trama, emocionando o autor, um dos protagonistas da história.
Murilo Rauser, que trabalhou com o cineasta Karim Aïnouz em A Vida Invisível (2019), é o responsável pela adaptação do roteiro, processo do qual participam Salles e Paiva, que debatem os trechos do texto e fazem sugestões, cortes e mudanças nas cenas. “Cada tratamento do roteiro passou por mim, teve um filtro meu. Essa é uma participação mais intensa do que a daquele autor que vende os direitos e não quer saber, como foi meu caso em Feliz Ano Velho [lançado em 1987 pelo cineasta Roberto Gervitz e vencedor de vários prêmios no Festival de Gramado].”
Tendo presenciado parte das filmagens, Paiva se disse tocado pelo esforço de Salles na reconstrução de época. Entre os pedidos do autor, estava o de que o longa não exibisse cenas de tortura, as quais Paiva afirma não conseguir ver, apesar de tê-las incluído no livro. Contudo, mesmo na ausência dessas cenas, o escritor disse ter sido doloroso assistir às gravações. “Eu vi a Fernanda Torres exatamente como minha mãe, vi a casa exatamente como era, minhas irmãs e a mim com um elenco fantástico. Isso foi impactante e mexeu comigo. Vai ser muito difícil ver esse filme.” Décadas depois de sua estreia como escritor, ser espectador de uma encenação de seus dramas pessoais e familiares nas adaptações de Feliz Ano Velho para os palcos ou para as telas, confessa Paiva, ainda lhe traz uma sensação pungente.
Atualmente o autor está debruçado sobre um novo projeto literário inspirado pela paternidade, acatando uma sugestão do editor Luiz Schwarcz, dono da Companhia das Letras. Empolgado com o novo livro, Paiva diz ter mudado sua perspectiva de vida desde o nascimento dos dois filhos e explica que a obra em andamento relaciona sua experiência de ser um pai cadeirante, cuja companheira ficou grávida em plena epidemia do zika vírus (2015-2016), com o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) e a crise sanitária da covid-19 (2020-2023), que matou mais de 7 milhões de pessoas no mundo todo.
“Estou escrevendo agora sobre a pandemia, quase no fim do livro, e estava comentando com amigos escritores: ninguém mais vai escrever sobre isso? Foi assustador o que a gente viveu”, questiona Paiva. Órfão de pai aos 11 anos, com quatro irmãs, conta que sua mãe o criou com muita independência e que isso se reflete na educação dada por ele a seus dois meninos. A publicação ainda não tem previsão de ir ao prelo e Paiva considera que precisa de bastante tempo para concluí-la, já que ainda não a reescreveu, o que costuma fazer com frequência quando se trata de suas obras. Na qualidade de leitores atentos, o autor conta nessa fase da escrita apenas com os conselhos de seu editor, Marcelo Ferroni, da Alfaguara, selo da Companhia das Letras, e de Schwarcz, que normalmente escolhe os títulos das publicações de Paiva.
O isolamento na pandemia também o levou a criar uma plataforma de cursos a distância, por meio da qual pôde experimentar a prática da docência e compartilhar suas experiências como escritor com interessados nesse ofício. A plataforma também oferece ao público cursos online com uma grande variedade de especialistas reconhecidos em temáticas diversas, como economia, jornalismo, política, esporte e filosofia.
Quando recebeu do IdEA o convite para ser residente, e tendo em mente aquela experiência prévia, aceitou imediatamente a oportunidade de retornar à Universidade. A palestra de abertura do ciclo no instituto, em 20 de outubro, em que abordará sua obra literária, deve ter a Unicamp como um importante personagem desse processo de criação, que já dura mais de quatro décadas. No encerramento da residência artística, Paiva vai proferir uma segunda palestra, no início de dezembro, em dia a ser ainda anunciado.
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O IdEA já recebeu grandes nomes do Brasil e do exterior desde 2017, quando o Programa “Hilda Hilst” do Artista Residente foi integrado ao órgão vinculado à Reitoria. Paiva é o quinto artista convidado pela iniciativa nessa fase. Fazem parte desse rol o cineasta paulista Ugo Giorgetti (2018), o escritor paulista Reinaldo Moraes (2019), a radioartista argentina Andrea Cohen (2020) e o músico, cantor, compositor e dançarino pernambucano Antonio Nóbrega (2022).
Desde 1985, quando Hilda Hilst (1930-2004) inaugurou o programa, mais de 30 nomes vieram até a Unicamp a fim de desenvolver atividades artísticas e contribuir para a interação da Universidade com a comunidade, gerando impacto e debates no meio cultural. Músicos, dramaturgos, coreógrafos, artistas plásticos, romancistas, artistas circenses, fotógrafos e poetas compõem o cenário percorrido pelo programa em quase quatro décadas.
“A residência [de Paiva] será uma oportunidade para as novas gerações conhecerem a vida, o processo de criação e a obra literária de um escritor brasileiro fundamental. Para a comunidade da Unicamp, a residência cria também a possibilidade de desenvolver e renovar os laços com o artista, para quem a Universidade tem um papel especial”, afirma Christiano Lyra, coordenador do IdEA e docente da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (Feec). Lyra lembra que a obra mais recente publicada por Paiva, o romance Do começo ao fim (2022), passa-se na Unicamp e em Campinas, narrando uma história inspirada nas vivências do escritor.
Isabella Tardin, professora do IEL e coordenadora-adjunta do IdEA, considera essa uma oportunidade muito rica para as comunidades interna e externa da Unicamp, que poderão interagir com um autor tão reconhecido e cujas obras discutem temas atuais. “Nossa expectativa é, em primeiro lugar, conhecermos mais de perto o escritor e sua obra, que é tão representativa da literatura brasileira contemporânea. Em segundo lugar, esperamos aprender sobre seu processo de criação literária e sobre seu diálogo tanto com os artistas que interpretam suas obras como com o mercado editorial.” Para Tardin, além dos alunos do IEL, os dos cursos de midialogia, divulgação científica e humanidades em geral devem ter interesse particular em participar dos eventos.
A coordenação do IdEA está programando para o primeiro semestre de 2024 uma residência artística com o maestro argentino Néstor Enrique Andrenacci. Já no Programa “César Lattes” do Cientista Residente, os próximos convidados serão o português Jorge Bento, da área de esportes, e a astrônoma e geóloga planetária Rosaly Lopes, cientista sênior da agência espacial norte-americana National Aeronautics and Space Administration (Nasa).