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Livro revela as consequências da expansão de modelo adotado por empresas ancoradas em tecnologias digitais

Entregador vinculado a aplicativo circula por Barão Geraldo, distrito de Campinas: artigos do livro mencionam movimentos reivindicatórios de trabalhadores do setor
Entregador vinculado a aplicativo circula por Barão Geraldo, distrito de Campinas: artigos do livro mencionam movimentos reivindicatórios de trabalhadores do setor

O livro Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais (Boitempo) revela o panorama atual de um fenômeno que, apesar de ter começado há pouco mais de uma década, se intensificou durante a pandemia e, desde então, se alastra de forma desenfreada. Organizada por Ricardo Antunes, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, a obra destaca a produção científica de 41 pesquisadores que vêm estudando as consequências sociais, jurídicas e econômicas da expansão de um modelo de trabalho predatório, praticado por grandes empresas ancoradas em tecnologias digitais a fim de sobreviver em um mercado cada vez mais canibalizado: os icebergs.

O livro é o segundo produzido pelos pesquisadores em meio ao projeto de extensão universitária Trabalho, Tecnologia e Impactos Sociais: O Advento da Indústria 4.0 – uma iniciativa implementada em 2019 a partir de um convênio firmado entre a Unicamp e o Ministério Público do Trabalho (MPT). Coordenado por Antunes e pelas procuradoras do trabalho Clarissa Ribeiro Schinestsck e Fabíola Zani, o grupo já havia lançado seu primeiro livro em 2020, Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. Na obra inaugural, foram reunidos os resultados iniciais de sua investigação, contextualizando os três temas de pesquisa citados no título da obra.

Com estudos que analisam casos do Brasil, da Inglaterra, da Itália, da Espanha, dos Estados Unidos e de Portugal, a presente obra dá seguimento às investigações levantadas pelo grupo na publicação anterior. Como uma nova fotografia, atualiza o cenário então revelado e se aprofunda nos temas examinados, expondo agora seus desdobramentos. Para construir um retrato detalhado da situação atual, Antunes convocou uma seleção de pesquisadores bastante diversa. Além de apresentar os resultados inéditos dos estudos desenvolvidos pelos pesquisadores do projeto, selecionou textos assinados por colegas tanto do Brasil como de países com os quais estabeleceu intercâmbio nas últimas três décadas. A coletânea conta, ainda, com capítulos inéditos de pesquisa de pós-doutores vinculados ao projeto, bem como de docentes que integram o Grupo de Pesquisa Metamorfoses do Mundo do Trabalho (GPMT), do IFCH.

O avanço e a resposta

Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais está estruturado em três partes. A primeira, intitulada “A construção dos icebergs no capitalismo de plataforma”, aborda o nascimento e a expansão das grandes plataformas, bem como as singularidades do trabalho digital em diferentes países. Um movimento que se intensifica com o advento e a expansão da indústria 4.0. Esse fenômeno acarretou, segundo o docente, profundas mudanças no mundo do trabalho “em decorrência do aumento da robotização, da Internet das Coisas, da inteligência artificial, dos algoritmos, que vêm transformando o mundo produtivo em escala global, afetando muito fortemente a classe trabalhadora.”

A variedade das temáticas estudadas revela a complexidade do momento presente. Seja em um artigo dedicado à pesquisa do controle do algoritmo sobre o processo de trabalho, seja em uma investigação sobre a volta do abusivo putting-out – sistema inglês de terceirização do trabalho que data de um período anterior à Revolução Industrial. Já entre os trabalhos originais que foram produzidos diretamente pelos participantes do projeto de extensão, está presente a etnografia empreendida pelo pesquisador Marco Gonsales, que trabalhou como entregador para uma plataforma digital na capital paulista.

“Icebergs à deriva: expansão e descontrole”, a segunda parte do livro, traz exemplos do alastramento do trabalho em plataformas, encontrado em áreas tão distintas da economia quanto a educação (no Brasil, na Itália e em Portugal), a agroindústria e a mineração na Amazônia. “Com a educação básica sob o comando da tecnologia, o trabalho dos professores passa a ser digitalizado. E a indústria 4.0 chega até ao agro, pondo para fora milhares de trabalhadores. Há quem diga que isso é ótimo, mas o que esses trabalhadores e trabalhadoras rurais estão fazendo hoje? Será que suas vidas melhoraram? Por conta do avanço informacional e digital, milhares de profissões desapareceram.” Nesse cenário, conclui, o trabalho se torna um jogo, uma competição cuja realidade se assemelha a uma forma de escravidão digital.

Consequência da expansão de um modelo de trabalho caracterizado pela exploração desmedida, movimentos e lutas de trabalhadores em busca de seus direitos também se ampliaram. É o que mostram os seis capítulos da terceira parte do livro, “Icebergs em confronto: regulamentação, resistência e rebelião”. Desde as primeiras resistências, na Inglaterra, até o Breque dos Apps, mobilização grevista organizada por entregadores brasileiros em meio à pandemia, os artigos evidenciam a consolidação de iniciativas para frear os chamados icebergs. “Aqui no Brasil, há tentativas diferentes de organização dos trabalhadores, como a Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos [Anea], associação recém-criada”, exemplifica o docente.

A discussão jurídica também avançou, conforme indicam estudos de casos na Espanha (Ley Rider) e na Califórnia, onde uma campanha publicitária financiada por empresas de aplicativo de motoristas frustrou uma tentativa de enquadrar como trabalhadores regularizados quem utiliza suas plataformas. “Esse é um exemplo de luta de classes: o predador se utilizando da manipulação para criar consciências favoráveis à predação. Quando os trabalhadores e as trabalhadoras estavam com a causa praticamente ganha na Justiça da Califórnia, os icebergs gastaram milhões de dólares em um plebiscito, de modo que a população consumidora decidisse se aceitava ou não mudar a legislação, que, diziam, iria aumentar o preço do serviço de transporte”, observa.

O professor Ricardo Antunes, organizador do livro: “Os cultores da devastação de hoje serão objetos da devastação amanhã”
O professor Ricardo Antunes, organizador do livro: “Os cultores da devastação de hoje serão objetos da devastação amanhã”

Três teses

Antunes abre o novo livro com um artigo em que apresenta suas três teses mais recentes. Na primeira, constata que a pandemia foi transformada, pelas grandes corporações, em um laboratório de experimentos sobre o trabalho precarizado. “Não se tratou de algo maquinado, mas, já que tivemos de fazer o lockdown, a empresa transferiu o trabalho para fora, desonerando-se dos custos de manutenção do espaço físico produtivo, além da limpeza, da internet, do transporte e da alimentação. O home office e o teletrabalho se tornaram experimentos do capital”, revela. Nesse cenário, argumenta o professor, a evolução do sistema de aplicativos e a intensificação do maquinário informacional digital alimentaram a multiplicação de plataformas digitais em várias partes do mundo. O resultado, conclui, foi a aceleração da precarização, exemplificada no fato de esse contingente da classe trabalhadora ter sido completamente excluído do universo dos direitos trabalhistas.

A segunda tese diz respeito a um aparente paradoxo, já que, na era do avanço informacional-digital, as condições de trabalho existentes no capitalismo de plataforma se aproximam daquelas verificadas nos séculos 18 e 19. “Em plena protoforma do capitalismo, quando as jornadas de trabalho eram ilimitadas, os direitos inexistiam, as mulheres e crianças trabalhavam sem controle, combinando exploração, expropriação e espoliação. E tudo isso vem crescendo”, nota Antunes.

Para entender o fenômeno, é necessário voltar ao cenário de crises profundas vivenciadas pela sociedade capitalista desde 1973 e ampliadas em 2008 e na pandemia de coronavírus – e também mais recentemente com o conflito entre a Rússia e a Ucrânia. A consequência, ressalta, é o crescimento constante de uma massa de desempregados. “O exemplo mais visível está estampado em todas as partes do mundo. Em qualquer lugar que se vá, é possível encontrar imigrantes em busca de qualquer tipo de trabalho, que aceitam, mesmo sabendo que não terão nenhum direito, porque precisam sobreviver.”

Antunes defende que, para os icebergs, a combinação de crise estrutural da economia, evolução da inteligência artificial e força sobrante de trabalho se tornou um achado. “Aí é que vem o pulo do gato que as plataformas deram. Como há muita gente desesperada por qualquer tipo de trabalho, como o mundo está em crise, essas plataformas, que possuem a tecnologia necessária, mobilizam essa força sobrante de trabalho para produzir, desde que os trabalhadores sejam excluídos do universo dos direitos trabalhistas.” O trabalho em plataformas ou o trabalho uberizado, segundo o professor, engloba formas e tipos de trabalho bastante distintos, como o crowdwork, o freelance e o próprio entregador de aplicativo. Diferenças à parte, todos funcionam a partir de uma mesma lógica, ressalta Antunes. “As plataformas burlam a legislação social protetora do trabalho e só atuam quando e onde podem assim proceder. Onde os governos ou a organização da classe trabalhadora não permitem, as plataformas não entram. Por isso, as plataformas se espalharam mais ativamente pelo Sul Global e, no Norte Global, pelos países mais acentuadamente neoliberais, como os Estados Unidos e a Inglaterra, por exemplo.”

Fechando o artigo, Antunes apresenta sua terceira tese: a desantropomorfização do trabalho – que se tornou apêndice da máquina informacional, digital e algorítmica. Esse resultado, explica o docente, é consequência do fato de o maquinário digital ter reduzido a necessidade de trabalho humano ao conduzir o processo produtivo. “Sabemos que a Revolução Industrial converteu o trabalhador e a trabalhadora em autômatos, em apêndice da máquina. Agora, entregamos a nossa alma a uma máquina digital, que é muito mais infernal do que a mecânica e a eletrônica dos séculos passados. Quem sabe como funciona um algoritmo? Os próprios criadores dizem que criaram uma coisa que vira outra. É o Frankenstein digitalizado”, define.

O professor alerta que “os cultores da devastação de hoje serão objetos da devastação amanhã”. Evocando o passado, lembra que nenhum sistema durou para sempre. “Foi uma revolução burguesa que eliminou dez séculos de absolutismo, feudalismo e servidão. E, entretanto, no ideário do senhor feudal, aquele sistema era considerado eterno…”

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