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Livro demonstra que brasileiros enfrentaram a pandemia de forma coesa, a despeito das diferenças ideológicas e das fake news

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Docente analisa como o uso de metáforas influenciou a percepção da pandemia de covid-19 no Brasil, contribuindo para fortalecer os mecanismos de defesa da população contra o vírus (Foto: Agência Brasil)

Em Doença como Metáfora, de 1978, a escritora norte-americana Susan Sontag recorre aos exemplos do câncer e da tuberculose para propor o abandono dos “ornamentos da metáforas” ao se referir às doenças. A autora argumenta que desmistificar essas condições seria uma melhor solução para lidar com a morte e que o uso da figura de linguagem contribui para transformar a enfermidade em um “inimigo satânico”, estigmatizando os pacientes. Embora tal argumentação tenha validade, para o linguista Heronides Moura, uma alternativa mais razoável seria entender os contextos em que as metáforas surgem, uma vez que, em determinadas situações, seu uso pode favorecer o combate às doenças.

Esse é o ponto central de Moura no livro O vírus bandido: linguagem e política na pandemia, que acaba de ser lançado pela Editora da Unicamp. Professor  da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutor em linguística pela Unicamp, o autor sempre se interessou pela forma como as pessoas usam metáforas para interpretar elementos do dia a dia, o que o levou a escrever os livros Vamos pensar em metáforas Uma breve história da linguística, este último em parceria com a linguista Morgana Cambrussi. Em sua obra mais recente, o docente analisa como o uso de metáforas influenciou a percepção da pandemia de covid-19 no Brasil, contribuindo para fortalecer os mecanismos de defesa da população contra o vírus.

Como explica o pesquisador, os seres humanos filtram basicamente toda a informação que recebem a partir da verbalização do pensamento, ou seja, da estrutura linguística, e as metáforas compõem esse conjunto porque são um dos mecanismos empregados para entender o mundo e estruturar a mente. “As metáforas organizam muito a forma como a gente pensa. Eu não diria que elas exerceram um papel determinante no combate ao coronavírus, mas acredito que entraram no ‘caldo de cultura’ e ajudaram a constituir uma imagem da pandemia como algo que deveria ser enfrentado, pois não havia alternativa”, comenta o docente.

Com o uso de exemplos históricos e literários, além da análise de estudos realizados em várias partes do mundo, o pesquisador aborda aspectos como identitarismo, conservadorismo e dicotomias ideológicas, demonstrando que os brasileiros responderam à pandemia de forma muito mais coesa do que a população de outros países. Apesar da intensa disseminação de fake news e de teorias da conspiração, a política anticiência de Jair Bolsonaro fracassou, algo perceptível em vista dos índices de vacinação alcançados. Por aqui, 87% da população recebeu a primeira dose do imunizante, enquanto 78% receberam as duas primeiras doses. Tais números indicam que até mesmo uma significativa parcela dos apoiadores do ex-presidente se vacinou.

De acordo com o especialista, preponderante para as altas taxas de vacinação no Brasil foi a confiança no Sistema Único de Saúde (SUS) mesmo em grupos de direita, tradicionalmente anti-institucionais. Isso  é o oposto do que acontece nos Estados Unidos, por exemplo, onde não existe um sistema público de saúde e onde há grande desconfiança em relação ao poder institucionalizado. “O SUS é uma entidade essencialmente comunitária e que atende a todos sem divisão por ideologia ou classe social. No nosso país, a ideia de destruir instituições não funcionou porque seria necessário destruir a crença na ONU [Organização das Nações Unidas], no Ministério da Saúde, no postinho… A gente tinha esses elementos históricos e institucionais, e a linguagem utilizada refletiu isso”, pontua.

Esse quadro ficou evidente no uso intenso de palavras como “tsunami”, “furacão”, “avalanche”, “bandido”, “viajante” e “ladrão” em relação ao SARS-CoV-2, caracterizando o vírus como uma força da natureza ou um indivíduo com más intenções. Encontrados em artigos e reportagens publicados no portal da Folha de S.Paulo – um veículo situado no centro do espectro político e que conta com colaboradores de todas as ideologias –, esses termos estão reunidos no corpus Metáforas sobre o Coronavírus na Mídia, elaborado por Alice Dionízio, orientanda de Moura na UFSC.

Foram, ao todo, 468 metáforas, coletadas a partir de uma busca exaustiva em materiais publicados entre 10 de maio e 10 de junho dos anos de 2020 e 2021. Esse conjunto de informações revelou que, na prática, tanto a esquerda como a direita viram no vírus um inimigo em comum a ser contido. “A alta incidência de metáforas, em si, já é algo bastante revelador. Mas isso era previsível porque a fala sobre doenças, tradicionalmente, é metafórica, e eu tentei demonstrar que não há como você pedir às pessoas que não falem metaforicamente sobre um assunto tão traumático”, comenta o professor.

Representação gráfica do SARS-CoV-2: linguista constatou o uso de palavras como “tsunami”, “furacão”, “avalanche”, “bandido”, “viajante” e “ladrão” para classificar o vírus
Representação gráfica do SARS-CoV-2: linguista constatou o uso de palavras como “tsunami”, “furacão”, “avalanche”, “bandido”, “viajante” e “ladrão” para classificar o vírus (Foto: Fusion Medical Animation/Unsplash)

Identitarismo

O uso dessas metáforas deixou claro que a visão criada em todos os grupos políticos foi a de um confronto do qual não se podia escapar – o que explica os altos índices de vacinação. De acordo com o livro, para que o discurso negacionista tivesse um sucesso maior, seria necessário “um processo extremado de criação de uma comunidade imaginária” que se afastaria e se isolaria do corpo social mais amplo e que, portanto, se consideraria mais forte e menos vulnerável ao vírus. Apesar das tentativas do então presidente para criar essa comunidade, o docente argumenta que tal visão não fez sucesso no Brasil porque a divisão entre progressistas e conservadores não se mostrou tão forte.

Essa constatação, porém, não permite dizer que o discurso do ex-presidente tenha deixado de influenciar parte da população. Bolsonaro possui uma base grande de seguidores e os índices de vacinação estão hoje abaixo do que se verificava décadas atrás. Moura, no entanto, não acredita que o país tenha chegado a um ponto irreversível como nos Estados Unidos, onde as brigas identitárias entre direita e esquerda são constantes. “Lá, os chamados rednecks, os caipiras do interior, acreditam veementemente que o país esteja sendo invadido e roubado deles. A radicalização é maior porque teve um efeito prático no comportamento vital das pessoas, que é a vacinação. Já o bolsonarista, por mais que falasse contra a vacina, foi lá e se imunizou quietinho”, pondera.

Se tanto progressistas como conservadores viam no vírus um inimigo, por que grande parcela de brasileiros apoiou a gestão da pandemia no governo Jair Bolsonaro? De acordo com o livro, isso ocorreu porque o conflito entre ambos os grupos não resultou de visões distintas sobre a gravidade do problema, mas sobre os princípios que deveriam nortear o seu combate. Enquanto os primeiros se guiam por princípios universalistas, que justificariam as medidas sanitárias, os segundos se caracterizam por defender um ideal particularista e por possuírem um forte sentido de pertencimento a uma “identidade social conservadora”, que tradicionalmente vê a obrigatoriedade da vacinação como um ataque à liberdade.

Por esse motivo, Moura discorda do uso da palavra necropolítica para caracterizar a atuação de Jair Bolsonaro – um fanático da ideologia conservadora – durante a pandemia. Criado pelo teórico camaronês Achille Mbembe, esse termo se refere ao uso do poder do Estado para determinar quem pode viver ou morrer, com o objetivo de eliminar adversários políticos. Segundo o especialista, não há sentido em fazer essa afirmação sobre o governo do ex-presidente porque as maiores taxas de mortalidade ocorreram entre seus correligionários. Então, ao se opor às medidas sanitárias, ele estaria matando seus próprios apoiadores.

Para o docente, esse tipo de argumentação supõe um grande complô de Bolsonaro com o objetivo de eliminar parte da população brasileira, o que não faz nenhum sentido e se assemelha às teorias de conspiração bolsonaristas. Segundo Moura, pesquisas já demonstraram que pessoas com personalidade conspiratória tendem a estar nos extremos políticos, independentemente de ser da direita ou da esquerda. Mesmo sendo de esquerda, o estudioso defende que uma teoria igualmente conspiracionista seria a de que Bolsonaro não teria sido vítima de uma facada em 2018, como determinado setor da esquerda afirma.

“O que eu quis mostrar no livro, e essa foi uma das motivações para eu escrevê-lo, é que a gente vai ter que aceitar que uma parcela da população brasileira é conservadora”, afirma o linguista. “Eu acho que a esquerda peca muito em achar que é moralmente superior aos conservadores. Estou convicto de que é um grande erro a gente caminhar para uma situação como a dos Estados Unidos, que vivem uma guerra aberta entre os dois grupos. Nós aqui já temos problemas demais”, afirma.

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Progressistas x conservadores

Diversos aspectos surpreenderam o autor ao longo da análise das metáforas. Em primeiro lugar, a associação frequente do vírus com termos como “bandido”, “ladrão” e “crime” revelou-se algo específico do corpus Metáforas sobre o Coronavírus na Mídia. Em dados coletados na Europa, não houve esse tipo de paralelismo, sendo muito mais comum a presença de metáforas que caracterizavam o vírus como um adversário e a pandemia como uma guerra. Esse fato revelaria bastante sobre o modo como os brasileiros viam a pandemia. “Será que isso acontece porque a gente aqui no Brasil convive muito com a criminalidade? Talvez seja algo de nossa cultura que foi refletido no uso da linguagem”, pondera

Além disso, não foram identificadas diferenças entre as formas como a esquerda e a direita se referiam ao vírus nas metáforas filtradas pelo discurso institucional da mídia. E, mesmo entre os conservadores, que tendem a ser bastante religiosos, não foram encontradas associações entre o SARS-CoV-2 e uma suposta condenação divina. Como, tradicionalmente, as pandemias que assolaram o mundo foram consideradas formas de castigo, Moura especula que, talvez, esse tipo de associação possa ser encontrado caso se investiguem as metáforas empregadas em cultos evangélicos, algo que não fez parte do escopo do estudo.

Atualmente, junto com seu grupo de pesquisa, Moura está investigando quais metáforas são usadas pela extrema direita. A hipótese do pesquisador é que esse movimento político ainda não foi capaz de articular um conjunto consistente de metáforas, o que explicaria parte das dificuldades da política bolsonarista. Enquanto nos Estados Unidos, eles conseguem se manter ideologicamente fechados e convencer-se de que o país está cercado, isso ainda não foi replicado no Brasil, onde o que faz sucesso são as teorias conspiracionistas e a inversão de significados. Um exemplo dessa inversão seriam os processos semânticos defendendo que o Partido dos Trabalhadores (PT) estaria tentando implantar o comunismo no país, o que não condiz com a prática dos seus representantes.

Por esse motivo, Moura acredita que, no final, o que vai prevalecer no Brasil não é a extrema direita, mas a direita conservadora e evangélica, que defende os “valores tradicionais e da família”. O autor lembra, ainda, que parte da esquerda odeia os evangélicos, muitos oriundos das camadas mais baixas da população. “O que a direita e a esquerda querem? Eliminar a outra metade da população? Não tem jeito: em uma democracia, é o voto que decide. A gente não pode querer excluir todo mundo que pensa de forma diferente. Temos que dialogar”, finaliza.

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