Pesquisa do Instituto de Estudos da Linguagem oferece ferramentas importantes para professores e pedagogos
A forma com que pronunciamos as palavras no dia a dia é diferente daquela que colocamos no papel. Chega a ser algo inconsciente, mas muito comum: verbos escritos conforme determina a ortografia, como “correr” ou “partir”, podem ter o som da letra “R” [usa-se /R/ na Linguística] omitido nas pronúncias coloquiais, que soam, respectivamente, como “corrê” e “parti”. Já frases como “pegar amora” podem se tornar “pegaramora” na fala cotidiana. Não se trata de uma questão de incorreção ou ignorância, apenas de características da língua falada, que variam conforme a região do país e as situações de fala, tais como contexto formal ou informal. É a chamada consciência metalinguística, que faz com que um falante da língua portuguesa saiba que, apesar de ouvir no cotidiano o termo “pegaramora”, sua forma escrita deve ser “pegar amora”.
Uma pesquisa de mestrado do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, desenvolvida por Amanda Freitas, sob a orientação do professor Pablo Faria, evidenciou a influência da consciência metalinguística na prática da escrita por estudantes dos anos iniciais do ensino fundamental. Aplicado em duas escolas, uma pública e uma privada, de Feira de Santana (BA), o estudo identificou a relação entre o nível de consciência metalinguística e a ausência da letra “R” no final de palavras escritas como ocorre no caso de alguns verbos no infinitivo. Formada em Letras e Pedagogia, Freitas conta que esse apagamento do “R” na escrita despertou sua atenção enquanto cursava uma especialização. Ela passou a detectá-lo em redações de estudantes do nono ano do ensino fundamental em Feira de Santana, cidade onde residia. “Se isso ocorre com alunos mais velhos, me perguntei se também aconteceria com estudantes mais novos, próximos da alfabetização”, relata.
Freitas explica que a investigação junto a crianças dessa idade também se justifica por ser essa a fase em que elas se deparam com as diferenças entre fala e escrita, o que é essencial para a formação da consciência metalinguística. “A criança chega à escola como falante da língua nativa. A partir disso, aprende uma língua escrita que não é a mesma que ela fala. A escrita não é espontânea, é aprendida no contexto escolar. É como aprender uma segunda língua”, comenta Faria. Os pesquisadores explicam que a aquisição de linguagem ocorre em processos e, por isso, a análise centrou-se em crianças do primeiro, segundo e terceiro anos.
Reflexos de desigualdades
O estudo foi aplicado em 58 estudantes das duas es- colas. Cada aluno participou de testes aplicados em três sessões/dias diferentes, que consistiam em tarefas cujo objetivo era medir a consciência metalinguística dessas crianças por meio das habilidades fonológica, lexical e sintática, além de atividades em que era testada a acurácia da escrita. Foram feitos ditados com palavras terminadas em “R” – em que as crianças tinham acesso aos termos por imagens e pelo som das palavras pronunciadas – e com frases feitas com essas palavras, casos em que poderia ocorrer a ressilabificação (como em “pegar amora”).
A pesquisadora confirmou a hipótese levantada no início da pesquisa: quanto mais avançadas as crianças estavam, maior o nível de consciência metalinguística e menor o apagamento do “R”. A surpresa foi no caso das frases em que a ressilabificação ocorria. “Tínhamos a hipótese de que, nesses casos, as crianças escreveriam o ‘R’ final porque elas estavam ouvindo aquele som. No entanto, elas também apagam a letra ‘R’ final”, descreve Freitas.
Realizados entre agosto e setembro de 2022, já em contexto de aulas presenciais, os testes trouxeram resultados que refletem o descompasso entre escolas públicas e privadas na realização das atividades didáticas durante o período de isolamento imposto pela pandemia. “A maioria das escolas particulares conseguiu manter aulas online, e os pais iam às escolas para retirar materiais e receber informações sobre atividades a serem desenvolvidas em casa. Já na escola pública, os alunos passaram um ano sem nenhum contato com as aulas”, lembra a pesquisadora. De acordo com Freitas, as turmas da escola pública apresentavam alunos em níveis diferentes quanto ao domínio da escrita, situação oposta à da escola privada, onde havia mais equiíbrio e atividades, no contraturno, específicas para os que apresentavam dificuldades.
Atualmente cursando o doutorado, Freitas se dedica à adaptação ao português brasileiro de testes de habilidades metalinguísticas elaborados no contexto europeu. Com base nas reflexões proporcionadas pela pesquisa, a doutoranda percebe o quanto essa é uma abordagem importante na formação de pedagogos e professores. “É uma demanda que muitos pesquisadores relatam. Falta essa discussão nos cursos de pedagogia e nas licenciaturas em geral.”
Segundo os pesquisadores, é necessário que professores tenham acesso a testes desse tipo para diagnosticar e solucionar problemas que podem se agravar em estágios futuros da escolarização. “Uma vez que conseguimos verificar onde estão as lacunas no desenvolvimento da consciência metalinguística, conseguimos promover alguns exercícios pensados para sedimentar essa base e, assim, promover maior aprendizagem”, afirma Faria.