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A exploração da força de trabalho na expansão industrial brasileira é uma das abordagens de tese defendida no IG

Mulheres na colheita de algodão (acima) e tecelãs na Indústria Matarazzo (abaixo): pesquisa mostra a relação entre marcos da industrialização e a exploração da força de trabalho
Mulheres na colheita de algodão: pesquisa mostra a relação entre marcos da industrialização e a exploração da força de trabalho

Tivesse nascido noutro momento histórico, existiria em distintas condições e bem distante dos espaços da univers(al)idade burguesa: por volta dos anos 1870, trabalharia sob condições servis em algum campo situado no Ribeirão das Minas, centro da província das Minas Gerais, onde subvivemos na condição de escravizados ou em qualquer outro espaço de escravização para onde os muitos de nós que sobrevivemos a travessia para as Américas fomos endereçados. Até pelo menos 1940, estaria, ainda, mesmo depois da alforria institucional, atrelado aos grilhões do cativeiro da terra, trabalhando nas fazendas de café ou nas minarias. Nos idos de 1950, teria feito parte do mesmo fluxo de povoamento que impulsionou os ciclos de expansão do café pela porção norte paranaense, fluxo que muitos de nós, subvivendo em condições de reprodução precária nas Minas Gerais, fomos seduzidos a realizar com a promessa de uma vida mais digna. E, na condição de migrante sem terras, teria sido submetido aos trabalhos nas colheitas de algodão e café num trimestre do ano, de cana-de-açúcar ou de mandioca nos outros dois. Assim, continuaria até o final dos anos 1980, quando, ao ter sido substituído por colheitadeiras automáticas dessas culturas e expulso das moradas construídas para boia-fria no campo, rumaria às cidades, para subexistir em condições ainda mais indignas, em suas margens. Daí, trabalharia por conta própria, vendendo mercadorias e alimentos ou realizando serviços diversos em suas ruas, e lidaria com a saudade daquelas de nós que, pelo imperativo da sobrevivência, foram existir “em casas de família”, trabalhando em troca de um prato de comida e lidando com violências de múltiplas ordens. Tivesse continuado por esse rumo, estaria (re)existindo, até nossos dias. (Trecho do prólogo de Flávio Lima na tese “Sobre o processo de industrialização na formação socioespacial brasileira: uma interpretação crítica com ênfase na indústria têxtil, de 1930 aos dias atuais”.)

Realizando o exercício de pensar em que condição social e em que espaço estaria ao longo da história, do século XIX até os dias atuais, o geógrafo Flávio Lima abre sua tese de doutorado, recentemente defendida no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. A pesquisa enfatiza os marcos históricos da industrialização, a partir de 1930, e sua relação com a exploração da força de trabalho. O pesquisador questionou os elementos que constituíram a industrialização brasileira. Para tanto, apoiou-se na noção de formação socioespacial, do geógrafo Milton Santos, que leva em consideração questões sociais e sua relação com o espaço.

O pesquisador fez da exclusão de uma parcela de trabalhadores – a maioria negros – da regulação imposta pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943, uma questão-chave de sua tese, que avança até a institucionalização de relações precárias do trabalho, expressas na Contrarreforma Trabalhista de 2017 e na alteração dos marcos regulatórios do trabalho realizada no mesmo ano e instrumentalizada pela Lei 13.467.

A indústria têxtil mereceu especial ênfase na tese por sua relevância histórica, espacial e econômica. Um dos embriões da industrialização no país, essa indústria tem sua origem ligada às fábricas instaladas no século XIX, no Nordeste, onde se concentrava a maioria das plantações de algodão. Nessa região, destaca Lima, a mão de obra escravizada sustentou inicialmente a produção. Mais tarde, acabou preterida em nome do trabalho assalariado, em meio a um projeto político eugenista. Em 1912, 60% dos trabalhadores do setor têxtil eram migrantes europeus.

Houve nova exclusão da parcela marginalizada da população também no caso dos marcos regulatórios do trabalho de 1943. “A sistematização desses marcos ocorreu de maneira peculiar: excluiu do quadro institucional o conjunto de trabalhadores disponíveis para vender sua força de trabalho no contexto exploratório do meio urbano-industrial, ao mesmo tempo que os incluiu nos processos de produção – parcela deles realizada fora dos espaços fabris tipicamente industriais e sem direitos trabalhistas”, explica o pesquisador.

Flávio Lima, autor da tese, e a professora Arlete Moysés Rodrigues, orientadora do estudo
Flávio Lima, autor da tese, e a professora Arlete Moysés Rodrigues, orientadora do estudo

Flexibilização de marcos regulatórios

Apesar de a flexibilização do trabalho ter chegado ao ápice com a contrarreforma do governo Michel Temer, Lima enfatiza que uma importante mudança nesse sentido ocorreu na ditadura, por meio de um ataque sistematizado ao trabalho, apontando a criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), em 1966, como um exemplo desse processo.

Segundo o pesquisador, a constituição desse fundo, associado ao trabalho, foi paradigmática pois desempenhou duas funções na expansão da industrialização brasileira: por um lado, modificou as relações de trabalho ao alterar a importante estabilidade decenal; por outro, arrecadou e, posteriormente, transferiu recursos provenientes do trabalho para o Estado e, por extensão, para o desenvolvimento do capital.

Para Lima, essa questão e a exclusão de trabalhadores da CLT “indicaram que as políticas industriais – e as políticas econômicas associadas – estão intrinsecamente ligadas às políticas do trabalho e que todas condicionam e moldam a produção realizada no território brasileiro”.

Para a orientadora da tese, professora Arlete Moysés Rodrigues, a análise sobre a relação entre a legislação do trabalho e a industrialização, com ênfase no FGTS, na CLT e nas modificações por que passaram, está entre as principais contribuições da tese de Lima. Além disso, Rodrigues chama atenção para a questão das relações de trabalho cada vez mais informais – em especial no ramo das confecções – e sua conexão com o avanço do neoliberalismo.

Na medida em que a tese também buscou enfatizar uma lacuna da questão da industrialização e do trabalho no que se refere a especificidades do Brasil, a professora também indica que a pesquisa “resgata como as análises em geral, calcando-se no processo de industrialização ocorrido em outros países, deixam de revelar as condições internas do processo de industrialização brasileiro”.

Tecelãs na Indústria Matarazzo
Tecelãs na Indústria Matarazzo

Da concentração à pulverização

Em relação à formação socioespacial brasileira, tema abordado na pesquisa, valendo-se de uma categoria elaborada por Milton Santos, o geógrafo buscou questionar como a industrialização se desdobra no espaço.

Percorrendo os períodos históricos da expansão industrial, Lima discute a reorganização dos espaços fabris a partir de 1985. Se entre as décadas de 1930 e 1980 houve uma política de concentração industrial, tal característica começa a mudar no final do século XX, quando surge o modelo das microproduções regionais vigente hoje em dia.

Criticando a tese de uma suposta desindustrialização do Brasil, principalmente pelo fato de esse viés analítico levar em consideração apenas sua dimensão econômica, o pesquisador indica que o que está em curso atualmente é um processo de transformação da própria lógica da produção industrial, algo que se revela, por exemplo, na pulverização da produção, que vem ocorrendo em todo o território brasileiro.

“Desse modo, a casa – que era unicamente a morada das classes trabalhadoras – aparece, também, enquanto espaço de produção e trabalho adicionais, necessários aos processos produtivos, mas onde se trabalha por baixas remunerações e, quase sempre, sem direitos. Isso repercute diretamente nas condições de reprodução da vida das classes trabalhadoras”, finaliza Lima.

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