Livro reconstitui trajetória e reúne obras de compositores do grupo Música Nova
Fundado em 1961 pelos compositores Gilberto Mendes, Willy Corrêa de Oliveira, Rogério Duprat e Damiano Cozzella, o grupo Música Nova trouxe a vanguarda da música erudita para o Brasil. No livro Grupo Música Nova e a Música Eletroacústica (Editora da Unicamp), Denise Garcia, coordenadora de pesquisa do Instituto de Artes (IA) da Universidade, resgata, contextualiza, analisa e atualiza o legado desses criadores que, influenciados pelo experimentalismo europeu e pela poesia concreta paulistana, renovaram uma linguagem e disseminaram a música eletroacústica no país.
Voltado para músicos, o livro é resultado de 17 anos de uma pesquisa realizada por Garcia com vistas à produção da tese de livre-docência que defendeu no IA em 2021. O livro reúne obras de todos os integrantes do Música Nova. E inclui, ainda, um trabalho inédito de atualização para mídia eletroacústica de obras desses compositores, trabalho esse financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e no qual peças, que haviam sido escritas originalmente para serem executadas com toca-discos, gravadores de rolo e outros aparelhos obsoletos, foram adaptadas para o computador. “Atualizar permite que grupos corais possam dar vida a esse repertório. Sem intérprete, a música não existe”, explica a pesquisadora.
Professora de composição musical na Unicamp, Garcia idealizou o livro na década de 1990, enquanto morava na França. “Fiz parte do meu doutorado lá e todo o repertório que analisei era francês, então me senti em dívida com a música eletroacústica brasileira. Prometi que corrigiria isso nos meus pós-doutorados”, lembra. Em 2005, quando procurou os quatro fundadores do grupo Música Nova para iniciar seu projeto de pós-doutorado, sua promessa começou a se cumprir. “Convivi muito com o Willy e o Gilberto. O Willy foi meu professor de graduação, na USP [Universidade de São Paulo], e me deu todo o seu material quando eu nem sonhava com o livro. Já o Gilberto estava sempre de portas abertas para os estudantes. Ele organizava o festival Música Nova, que ajudei a produzir na juventude”, lembra. Com Cozzella e Duprat, completa, o contato não foi possível. O primeiro, recorda-se, preferiu não participar do projeto. “E Duprat morreu em 2006, quando eu estava no meio da pesquisa”, lamenta.
Além de examinar os acervos pessoais dos compositores, Garcia consultou os arquivos dos principais intérpretes do repertório do Música Nova: a Orquestra de Câmara de São Paulo e o grupo de coral Madrigal Ars Viva. Com essa investigação, conseguiu levantar um material que considerou bastante vasto: partituras originais de peças, programas de concertos, catálogos de obras e matérias publicadas na imprensa. “Ainda fiz uma varredura de tudo o que aconteceu no século 20, partindo de Mário de Andrade”, acrescenta.
Em seu livro, Garcia contextualiza o ambiente e as influências que possibilitaram o surgimento do Música Nova pelas mãos do maestro Hans-Joachim Koellreutter – figura central da música erudita brasileira do século XX. Em seu resgate, destaca a participação do grupo nos Cursos Internacionais de Verão de Música Nova Darmstadt (Alemanha), defendendo a importância do contato do grupo com a vanguarda europeia do pós-guerra para a radicalização da sua linguagem musical.
“Duprat e Cozzella foram estudar programação na Escola Politécnica da USP assim que voltaram. Todos eles começaram a fazer música experimental, usando o que tinham à mão, porque aqui não existia um estúdio adequado para esse tipo de criação. Por isso, a saída era improvisar, ‘gambiarriar’. Willy, por exemplo, construiu um instrumento usando um elástico, um microfone, uma caixa de som e um amplificador”, relata a musicóloga.
A relação estabelecida entre os compositores e o grupo Noigrandes, fundado pelos poetas concretistas Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos, também é considerada essencial para o desenvolvimento da música do quarteto. Além de publicar o manifesto “Música Nova” em sua revista, os concretistas cederam diversos poemas para serem musicados, como Beba Coca-Cola (Pignatari-Mendes), ícone da música coral contemporânea brasileira. Em seu livro, a pesquisadora aponta Mendes e Oliveira como os principais entusiastas da parceria, na maioria das vezes trabalhando sob encomenda para o Madrigal Ars Viva – fundado por eles mesmos e pelo maestro Klaus-Dieter Wolff.
Em busca de respostas
Único livro a reunir obras dos quatro integrantes do grupo e uma das poucas pesquisas acadêmicas dedicadas à musicologia do século 20, Garcia pontua que seu trabalho teve como objetivo esclarecer uma dúvida histórica: é possível considerar as composições do Música Nova música eletroacústica? Questionamento alimentado pela distância tecnológica existente entre os equipamentos sonoros disponíveis no Brasil e na Europa, essa dúvida era compartilhada, revela, inclusive pelos fundadores do conjunto.
Em sua busca por uma resposta definitiva, a musicóloga comparou 18 definições, cunhadas por teóricos diferentes – um processo detalhado no livro. Ao constatar a falta de um consenso entre esses 18 autores, concluiu que não existe um conceito fechado e que, portanto, o grupo Música Nova produziu de fato música eletroacústica. “O que importa é que eles usaram mídias eletroacústicas, experimentaram a não hierarquia entre os sons e aboliram o sistema tonal, por exemplo. Além disso, exploraram sonoridades e timbres diferentes, buscaram novas formas de tocar os instrumentos musicais, incluíram elementos cênicos e musicalizaram poemas”, enumera.
Para ilustrar a inventividade e a diversidade dessa produção, Garcia pinçou uma série de exemplos. Como o pioneirismo de Duprat e Cozzella com KLAVIBM II, peça musical assistida por computador, contemporânea das produções feitas nos mesmos moldes na Europa. Outro destaque é a composição Santos Football Music, que foi executada pela Orquestra Sinfônica da Unicamp no lançamento do livro, dia 15 de junho, na Universidade. Escrita por Mendes, a peça inova ao incorporar à partitura instruções para a reprodução de um áudio de partida de futebol e a regência de um coro de plateia. “Resgatei outra partitura de Duprat e Cozzella, também assistida por computador, e pedi a ajuda do professor Jonatas Manzolli, que tem formação em matemática e é daqui do IA. Ele conseguiu deduzir qual o programa utilizado para a composição da obra a partir da análise que fiz e do nome do computador, que estava registrado na partitura original”, revela.