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Grupo de pesquisa do Instituto de Artes analisa o papel do instrumento na música popular brasileira

Marcha contra a guitarra elétrica organizada pela Frente Única da MPB, em 1967, em São Paulo: protesto reuniu grandes nomes da música brasileira
Marcha contra a guitarra elétrica organizada pela Frente Única da MPB, em 1967, em São Paulo: protesto reuniu grandes nomes da música brasileira

Chegava ao fim a tarde do dia 17 de julho de 1967, no centro de São Paulo, quando um verdadeiro panteão da música brasileira saiu em marcha do Largo São Francisco em direção ao antigo Teatro Paramount, hoje Teatro Renault. Elis Regina, Jair Rodrigues, Gilberto Gil, Edu Lobo e outras grandes vozes iam à frente, empunhando faixas e proferindo palavras de ordem. O que unia os artistas, no percurso até a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, não era um protesto contra a ditadura militar ou o repúdio à censura. O grupo, autodenominado Frente Única da MPB, foi às ruas para se opor à presença das guitarras elétricas na música brasileira, um suposto símbolo do ataque estrangeiro à cultura nacional.

Insólita, a manifestação terminou com um show no Paramount, transmitido pela TV Record. Conforme noticiou o jornal O Estado de S. Paulo, ao fim da apresentação, os artistas entoaram o hino do movimento, que resumia bem os conflitos presentes na música popular da época: “Moçada querida / cantar é a pedida / cantando a canção / da Pátria querida / cantando o que é nosso / com o coração”.

A visão da guitarra elétrica como uma vilã não durou muito tempo. No fim de setembro de 1967, no mesmo teatro e transmitido pela mesma TV Record, teve início o 3º Festival de Música Popular Brasileira, que marcou a história por revelar os artífices da Tropicália, entre os quais Caetano Veloso, Gil e Os Mutantes. Eles e vários outros deram à MPB um ar de renovação, uma nova sonoridade que se apoiava, em muito, na própria guitarra elétrica. De inimigo, o instrumento passou a aliado, tornando-se um legítimo equipamento de nossa cultura musical.

Investigar a trajetória da guitarra elétrica na música brasileira, desde sua origem como mero produto da modernização industrial até as contendas com os que consideravam apenas o violão um legítimo representante nacional, é o trabalho do GuitarScope, grupo de pesquisa do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Com a colaboração de pesquisadores de outras universidades brasileiras, o grupo busca identificar o quanto a música popular reverbera aspectos da nossa história e do nosso desenvolvimento econômico, social e cultural.

“Há uma série de disciplinas que, nas últimas décadas, têm dialogado com nossa área e têm nos fornecido meios de valorizar nossas discussões. Não ficamos isolados em nosso próprio universo”, explica Hermilson Nascimento, professor do IA e integrante do GuitarScope. Conhecimentos da História, da Sociologia, da Economia e mesmo das áreas de exatas e de tecnologia, como a Acústica e a Computação, são associados sob a perspectiva da musicologia, que olha para fatores intrínsecos da sonoridade e criação artística produzidas com a guitarra. “Entendemos que esse quadro cultural mais amplo tem uma série de questões que ainda estão por ser exploradas pela música, mas que podem chacoalhar conceitos, noções e dinâmicas que ainda não contam com uma abordagem científica fincada na própria compreensão musical”, propõe.

O professor Hermilson Nascimento, integrante do GuitarScope, grupo de pesquisa do IA: diálogo com outras áreas do conhecimento
O professor Hermilson Nascimento, integrante do GuitarScope, grupo de pesquisa do IA: diálogo com outras áreas do conhecimento

Uma gringa nos trópicos

Não existe um consenso sobre quem inventou a guitarra elétrica. O instrumento surgiu graças ao avanço da eletrificação proporcionada pelo desenvolvimento tecnológico do início do século XX. Até então, o som dos instrumentos de corda era exclusivamente acústico, amplificado graças aos seus corpos ocos, como ocorre no caso do violão. A inovação veio quando esse som pôde ser convertido em sinais elétricos e amplificado por meio de caixas de som. Para isso, a invenção do captador de som, em 1923, pelo norte-americano Lloyd Loar, foi essencial.

Ao longo do tempo, vários personagens contribuíram com a história da guitarra elétrica, seja desenvolvendo novas técnicas e dispositivos de extração de som, seja conferindo a elas designs responsáveis por torná-las símbolos de estilos musicais que ainda estavam por vir (até hoje o estilo consagrado pelas guitarras Fender, por exemplo, está intrinsicamente associado ao rock’n’roll). Entre esses nomes, destacam-se os de Leo Fender, o primeiro a desenvolver guitarras de corpo maciço e totalmente elétricas, e de Les Paul, nome artístico de Lester William Polsfuss, que criou instrumentos para a marca Gibson.

Até meados dos anos 1950, a guitarra ainda não possuía uma identidade própria que justificasse sua oposição ao violão. Tanto é que, em muitas línguas, ao contrário do que ocorre no português falado no Brasil, não existem dois termos para designar os instrumentos – todos ficam sob o guarda-chuva das derivações do termo “guitarra”. Além disso, naquela época, o instrumento era visto como um símbolo de modernidade e viria a ser incorporado a estilos como o jazz, o blues e, no Brasil, o samba e o choro.

“Conseguir ser ouvido dentro de grupos numerosos era o grande sonho de alguns violonistas. O violão não tem muita projeção sonora, sobretudo em uma roda de samba”, argumenta Eduardo Lobo, pesquisador da Universidade Estadual do Paraná (Unespar) e membro do GuitarScope. Segundo ele, com os amplificadores, o violão passou a ter mais destaque nas execuções em grupo, das big bands aos regionais de choro.

No Brasil, a guitarra começa a ganhar espaço a partir dos anos 1930 e há figuras emblemáticas nessa trajetória, como Henrique Brito, violonista do Bando de Tangarás, grupo do qual faziam parte Braguinha e Noel Rosa. Em 1932, após um período nos Estados Unidos, o instrumentista retornou com um tipo de violão provido de captação e amplificação elétricas. Foi por meio de sua influência que a guitarra entrou também na música erudita, marcando presença, por exemplo, em concertos do maestro Radamés Gnatalli.

Outros dois nomes decisivos na disseminação da guitarra no Brasil foram os de José do Patrocínio Oliveira, conhecido como Zé Carioca – que teria inspirado Walt Disney a criar o personagem homônimo para o filme Alô, Amigos, inclusive dublando o papagaio no cinema –, e Djalma de Andrade, o Bola Sete, que costumava expor suas guitarras nas capas de seus discos. O instrumento, então, apareceu em músicas de diversos artistas: Dick Farney, Lúcio Alves, Dalva de Oliveira, Ângela Maria. Até uma das primeiras gravações de “Beijinho Doce” conta com a guitarra de Carlos Matos. “E não tinha problema nenhum ter guitarra na música caipira ou no choro”, lembra Lobo.

Esses são exemplos do quanto o instrumento já estava presente na música brasileira antes dos anos 1950 e 1960, período de grandes mudanças na cultura popular impulsionadas pela crescente influência norte-americana na indústria cultural e pela chegada ao país da televisão. “Há muita coisa a ser revirada nesse baú que nos ajuda a ressignificar a guitarra na música brasileira”, pontua Nascimento. Entretanto, os sons da mudança já ecoavam no país e, se, em 1940, a opinião pública criticou Carmen Miranda por ter voltado dos Estados Unidos supostamente “americanizada”, o tratamento dado a uma estrangeira como a guitarra não poderia ser dos mais gentis.

Bruno Mangueira, docente da UnB: “A guitarra possui um diferencial comum na música popular que é mexer com os processos criativos”
Bruno Mangueira, docente da UnB: “A guitarra possui um diferencial comum na música popular que é mexer com os processos criativos”

A guitarra é a Geni?

“Do ponto de vista musical, a juventude brasileira que atravessou as décadas de 1950 e 1960 foi uma casta privilegiada.” As palavras do crítico musical Zuza Homem de Mello resumem o cenário da música popular no período: de um lado, as festas realizadas na casa de Nara Leão reuniam Carlos Lyra, Tom Jobim, Roberto Menescal e João Gilberto na criação da Bossa Nova.

De outro, a ascensão do rock’n’roll e seus ídolos, como Elvis Presley e os Beatles, faziam os adeptos do iê-iê-iê se unirem em torno da Jovem Guarda. Com o golpe militar de 1964, uma terceira vertente despontou, a da música engajada e de protesto, cujo maior expoente era Geraldo Vandré. Os estilos divergiam, mas os três foram responsáveis pelo surgimento de uma cultura jovem no país.

Esse foi também um período no qual houve uma redescoberta do Brasil pelos brasileiros. O governo JK (Juscelino Kubitschek), a construção de Brasília, o Cinema Novo, a conquista da Copa do Mundo de 1958, todos esses elementos compuseram as elocubrações sobre qual país seria o desejado para o futuro. “Talvez por uma questão de identidade cultural mal resolvida, ao longo do processo de modernização da sociedade brasileira, tivemos a necessidade de encontrar símbolos que nos representassem, que tivessem uma voz autenticamente brasileira. E o violão caía como uma luva nessa construção”, explica Nascimento. A guitarra elétrica ganhou a pecha de cópia do que vinha de fora, de representante do imperialismo norte-americano, de alienação. O estigma acompanhou o instrumento e as manifestações culturais que se valiam dele de forma mais constante, entre as quais, e principalmente, a Jovem Guarda.

Olhando para o cenário da música popular e a saraivada de ataques que culminou na marcha de 1967, uma questão se faz premente: teria sido a guitarra elétrica um bode expiatório para as insatisfações com o contexto político e social e com a busca por uma arte que traduzisse nossa brasilidade? Os pesquisadores preferem não bater o martelo a respeito, mas concordam que, por trás da rejeição ao insrumento, havia a ânsia por repelir os estrangeirismos. “Os próprios artistas que participaram da marcha, como Elis e Gil, gravaram com guitarra elétrica depois. O caso da Elis é muito emblemático. O disco Elis e Tom, de 1974, tem uma abertura com guitarra elétrica”, observa Lobo.

O que parece ter facilitado a virada de chave quanto à presença da guitarra foi a iniciativa de artistas de incorporar o instrumento às expressões musicais brasileiras, de forma a criar algo novo. “A guitarra possui um diferencial comum na música popular que é mexer com os processos criativos”, argumenta Bruno Mangueira, docente da Universidade de Brasília (UnB) e integrante do grupo de pesquisa. Assim, ela se tornou protagonista da antropofagia defendida pela Tropicália e que acompanha a busca por uma identidade nacional desde o Modernismo de 1922: foi deglutida por nossos músicos, gerando novos ritmos e padrões que passaram a influenciar todo o mundo.

Eduardo Lobo, pesquisador da Unespar: “Conseguir ser ouvido dentro de grupos numerosos era o grande sonho de alguns violonistas”
Eduardo Lobo, pesquisador da Unespar: “Conseguir ser ouvido dentro de grupos numerosos era o grande sonho de alguns violonistas”

ACORDES TIPO EXPORTAÇÃO 

É curioso que um dos focos de pesquisa do GuitarScope seja o emblema maior da expressão “um banquinho e um violão”: João Gilberto, um dos pilares da Bossa Nova. Violonista e cantor de renome internacional, o músico tem grande importância no desenvolvimento de padrões rítmicos e harmônicos que influenciaram violonistas e guitarristas de todo o mundo. Aqui vale lembrar uma das premissas do grupo de pesquisa: a quebra das barreiras existentes entre o violão e a guitarra. Na concepção dos estudiosos, os dois instrumentos se complementam e seus grandes mestres influenciam igualmente violonistas e guitarristas.

“Existe uma aura de que João Gilberto era uma pessoa muito excêntrica, mas, quando analisamos sua produção de perto, encontramos um nível de organização e de preciosismo que, de fato, não haveria outro jeito de existir se o músico não tivesse ficado horas e horas dentro de um quarto planejando como produziria sua alquimia musical”, conta Mangueira, que atua diretamente nesse resgate.

A busca por diálogos entre a guitarra e os ritmos e expressões tipicamente nacionais também está no radar do GuitarScope. Segundo Nascimento, isso é o que diferencia os guitarristas que apenas tocam o instrumento dos artistas que produzem novos sons e, por meio de sua música, põem a cultura brasileira em evidência. O estudioso destaca vários nomes da música recente que trilham esse caminho, desde Pepeu Gomes, com os Novos Baianos, até a banda Sepultura e seu álbum Roots, que incorporou ao heavy metal a percussão da Timbalada e de grupos indígenas.

Outra pesquisa do grupo que rende frutos trata da trajetória musical de Heraldo do Monte, compositor e instrumentista brasileiro. Ao longo de sua carreira, o artista desenvolveu arranjos e firmou parcerias com artistas de diferentes vertentes musicais, de Geraldo Vandré a Hermeto Pascoal, produzindo uma sonoridade que dialoga com ritmos nordestinos, o jazz e a MPB.

Esse estudo rendeu um songbook, elaborado com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e que reúne em partituras toda sua obra, além de vários ensaios críticos sobre suas composições. Outros projetos renderam ainda gravações e concertos, como as montagens dos Concertos Cariocas, de Radamé Gnatalli, executados pelo grupo Quatro a Zero — do qual Eduardo Lobo é integrante — e pela Orquestra Sinfônica de Campinas. São produtos que ampliam o escopo da investigação científica dedicada à música. 

“Conseguimos sair um pouco do formato acadêmico, mais restrito, um tanto hermético, para ganharmos um público mais amplo e ajudarmos a transformar as novas gerações de pesquisadores de música popular”, reflete Nascimento. 

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