Lançada pela Editora da Unicamp, obra de Shoshana Felman baseia-se em Don Juan, de Molière, para reunir teoria de Austin e ideias de Lacan
A obra O escândalo do corpo falante, lançada nos Estados Unidos e na França na década de 1980, ganha agora uma edição brasileira publicada pela Editora da Unicamp. A autora, Shoshana Felman, buscou articular a teoria do filósofo John Langshaw Austin – sobre o performativo – com as ideias do psicanalista francês Jacques Lacan, usando como base o personagem dramático Don Juan, de Molière. Reunindo literatura, filosofia e psicanálise, Felman foi além da análise linguística formal para abordar questões dessas áreas. Escreveu um livro ousado, sedutor e atual, do qual nasceu um de seus conceitos mais importantes: o de “corpo falante”. A Editora da Unicamp entrevistou ambos os tradutores, João Rocha e Lucia Castello Branco, para falar sobre a publicação da obra no Brasil.
Jornal da Unicamp – A obra promove um diálogo entre psicanálise e literatura. Para que não encontre dificuldades com a leitura, segundo os senhores, que grau de familiaridade, em especial com termos da psicanálise, o leitor precisa?
Lucia Castello Branco – Creio que mesmo os que não têm familiaridade com os conceitos da teoria lacaniana poderão se aventurar pelo livro, pois Shoshana os explora de maneira minuciosa, em articulação com os conceitos de Austin. Mas é claro que, para psicanalistas e estudiosos da psicanálise, o livro atinge camadas mais profundas.
João Rocha – Acredito que a elaboração da noção de “corpo falante”, por Shoshana Felman, mesmo em articulação com a psicanálise e a filosofia da linguagem, não é feita de forma inacessível. Embora a autora trabalhe com textos mais complexos (Lacan e Austin), sua escrita clara e poética traça um caminho não tão áspero para acompanharmos a construção do “corpo falante”. No entanto, aqueles já mais familiarizados com termos da psicanálise e da filosofia da linguagem seguirão esse caminho com mais facilidade (oumais prazer, talvez).
JU – Qual a contribuição da obra para os campos da psicanálise e dos estudos literários no Brasil?
Lucia Castello Branco – A contribuição de Shoshana Felman, em todos os seus livros, é enorme nessa área, pois é ela quem introduz, nos estudos literários, o que chamou de “psicanálise implicada” com a literatura, recusando a chamada “psicanálise aplicada”, que costuma tomar a literatura como um exemplo dos conceitos psicanalíticos. A contribuição desse livro, em especial, consiste no fato de situar um conceito de Felman que é comumente atribuído a Lacan: o conceito de “corpo falante”.
João Rocha – A leitura de Don Juan feita por Shoshana ao articular autores muito importantes – Molière, Lacan e Austin –, trabalhando a palavra poética na dimensão de uma promessa amorosa – e, portanto, impossível de ser cumprida –, é uma grande contribuição para os campos da psicanálise, dos estudos literários e da linguagem.
JU – O livro foi traduzido diretamente do francês. Considerando a constante presença de termos originários desse idioma e de noções de grandes estudiosos franceses, como Lacan, Jacques Derrida e Émile Benveniste, os senhores poderiam falar um pouco sobre o processo de tradução e dos principais obstáculos encontrados durante o trabalho?
Lucia Castello Branco – Os principais obstáculos situam-se, a meu ver, na difícil articulação que Shoshana Felman propõe entre o inglês e o francês (lembremo-nos de que o subtítulo do livro é “a sedução entre duas línguas”), mantendo o inglês quase sempre no original e muitas vezes fazendo, simultaneamente, o que ela chama de “tradução modificada” do inglês, trabalhando no ponto do significante, da tradução e da impossibilidade de tradução.
Lembremos que Shoshana Felman é israelense e sua língua materna é o hebraico, mas ela sempre escreveu em francês e, posteriormente, em inglês. Dessa maneira, o grande desafio é traduzir mantendo os pontos de opacidade do texto e a estrangeiridade de Shoshana Felman no seio dessas duas línguas. Soma-se a isso o fato de que os seminários de Lacan aos quais ela se refere foram estabelecidos posteriormente por Jacques Alain Miller. Ademais, ela trabalha com suas próprias anotações do texto de Lacan, já que seguiu presencialmente vários de seus seminários e foi sua amiga, responsável pelo convite feito a ele para ir aos Estados Unidos. Isso exige do tradutor que siga suas anotações (e não outras) e sua língua francesa (e não outra).
João Rocha – Além das particularidades apontadas pela Lucia, outro desafio para a tradução foi o texto de Molière. Embora Don Juan seja uma peça já traduzida para o português – inclusive por Millôr Fernandes –, o trabalho de Shoshana com o texto é tão singular, trabalhando sempre ao rés da letra, que fica inviável utilizar traduções da peça já estabelecidas no Brasil. É como se tivéssemos de traduzir não apenas a peça Don Juan, de Molière, mas a Don Juan, de Molière, lida por Shoshana Felman. Por isso, apontamos no prefácio que nossa tradução é amorosa, pois, mesmo sabendo da impossibilidade de traduzir com total precisão as palavras, sobretudo, de Shoshana, Molière, Lacan e Austin, apostamos na tradução como uma promessa que se sustenta justamente no seu desejo do impossível.
Título: O escândalo do corpo falante – Don Juan com Austin, ou a sedução em duas línguas
Autor: Shoshana Felman
Tradução: Lucia Castello Branco e João Rocha
Páginas: 192 Formato: 10,5 x 18cm
Editora da Unicamp