Pesquisa analisa processos de nomeação que podem impactar e limitar a experiência humana
“Aqui era uma zona de guerra.” Assim, uma das vítimas do rompimento da barragem de rejeitos de mineração da empresa Vale S.A., em Brumadinho (MG), descreve o cenário da cidade após o desastre de janeiro de 2019. Essa vítima perdeu filho, parentes e bens materiais. Um ano depois, ainda sem indenização, ela se reconhecia como refugiada, tanto quanto as pessoas que ela via na TV atravessando mares e fronteiras para fugir da guerra.
O que configura e como se constrói a situação de refugiado? Quem além do estrangeiro pode ser nomeado refugiado? Quais as implicações dessa nomeação no que diz respeito aos direitos humanos dessa pessoa? Giulia Mendes Gambassi estudou essas questões em seu doutorado, sob a perspectiva discursivo-desconstrutiva.
Em sua tese, “Nomear o humano: A migração como acontecimento discursivo”, orientada pela professora Maria José Rodrigues Faria Coracini, a pesquisadora afirma que os processos de nomeação relativos à migração se dão como acontecimentos discursivos que tentam normatizar, categorizar e limitar a experiência humana. O estudo recebeu o Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp – Instituto Vladimir Herzog, que neste ano está em sua terceira edição. As pesquisas contempladas serão publicadas no Jornal da Unicamp.
Desenvolvida entre 2019 e 2022, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, a investigação foi motivada pelo trabalho Refugiados de Belo Monte, idealizado pela jornalista Eliane Brum, que consistia em uma clínica estabelecida em Altamira (PA), em 2017, operada por um coletivo de profissionais para atender a população ribeirinha do Xingu (Amazônia), afetada pela hidrelétrica de Belo Monte. O trabalho chamou a atenção de Gambassi por seus autores nomearem aquelas pessoas refugiados. “Isso ficou na minha cabeça”, recorda a pesquisadora.
A primeira preocupação de Gambassi foi definir o que é refugiado. “Fiz muitas leituras e, antes de ir para Brumadinho, entrevistei, em Campinas, um refugiado haitiano e uma venezuelana.” Já nas primeiras entrevistas veio à tona a dúvida sobre a condição da nomeação dessas pessoas. “O primeiro entrevistado, o haitiano, por exemplo, disse que não sabia se era refugiado ou não, porque ele dizia que, quando via a situação dos sírios, questionava se poderia se valer dessa palavra”, exemplifica.
Em sua viagem a Brumadinho, Gambassi percebeu que a questão não era sobre o significante “refugiado” ou sobre como ele é mobilizado. “A questão era sobre o que é considerado humano. Esse movimento de nomeação do migrante, na verdade, é mais uma das ficções a que a gente se filia para poder viver com segurança”, explica.
O caso do artista plástico Igor Vidor, brasileiro refugiado na Alemanha, trouxe também outros fluxos de sentido. Vidor, que, diferentemente de outros entrevistados, deu permissão para que o seu nome verdadeiro aparecesse, foi perseguido por uma milícia no Rio de Janeiro logo após o assassinato de Marielle Franco, em 2018. Ele foi ameaçado de morte inúmeras vezes e obteve acolhimento como refugiado junto a um instituto de artes alemão. “Pode parecer esquisito a gente pensar que o Brasil também produz refugiados”, diz a pesquisadora.
Direito à vida
A partir de dois corpora — um corpus formado por cinco refugiados (Haiti, Venezuela, Moçambique, Síria e Brasil) e outro, por cinco deslocados internos (Brumadinho) –, ela analisou dez relatos por meio dos quais questionou os processos de nomeação relativos à migração.
Em janeiro de 2020, pouco antes da pandemia de covid-19, a pesquisadora estava em campo para ouvir os relatos dos sobreviventes do desastre ambiental de Brumadinho, que matou 270 pessoas. Nesse momento, as entrevistas foram presenciais e Gambassi esteve sempre acompanhada. “[As entrevistas] eram com membros da comunidade ou com a família ou algum representante. Uma vereadora e um líder político comunitário me ajudaram a entrar nas casas das pessoas.” A pesquisadora relembra, emocionada, a forte impressão que a dimensão da dor daquelas pessoas lhe causou. Uma semana depois de ela ter retornado de Brumadinho, teve início o lockdown e as entrevistas passaram a ser online.
Alguns dizeres, segundo Gambassi, foram mais impactantes, como o da mãe que descreveu um cenário de guerra em Brumadinho. “Ela contou que todas as noites lavavam os contêineres onde colocavam os corpos encontrados na lama e a água passava em frente à casa dela. Sempre que via um contêiner, ela pensava se era o filho dela que estava ali…”
Os símbolos da guerra mencionada por aquela mãe eram os helicópteros que levavam os corpos, os sons, a devastação da cidade soterrada após o rompimento da barragem de rejeitos, a “invasão” pela imprensa e, até mesmo, a presença dos pesquisadores. “Eles não aguentavam mais esse assédio. Viviam um esvaziamento constante. Eu tive pesadelos enquanto eu estive lá. Sonhei, por exemplo, que estava sendo soterrada. Foi horrível, muito intenso, a ponto de eu demorar para conseguir escrever a respeito”, relembra Gambassi.
Foi em Brumadinho que a pesquisadora afirma ter tido a certeza de que o termo refugiado não era apenas um dispositivo legal para garantir acesso a políticas públicas, mas uma espécie de destino. Nesse sentido, a pesquisa coloca em xeque as definições do que seja a condição humana. “Se essa ideia de estrangeiridade é ficção, a cidadania também é. A conclusão [da tese] caminhou mais para a percepção das questões dos direitos humanos e da vida”, conclui Gambassi.
Gambassi fazia parte, em 2020, do grupo multidisciplinar de pesquisa e ação Conflitos, Riscos e Impactos Associados a Barragens (Criab), da Unicamp, cujo coordenador geral é o professor Jefferson Picanço, do Instituto de Geociências (IG).
Sob a orientação da professora Coracini, Gambassi embasou suas análises na perspectiva da psicanálise de Sigmund Freud e Jacques Lacan, dos estudos discursivos de Michel Foucault e do movimento desconstrutivo de Jacques Derrida. “Para eu poder ser cidadão, tenho que definir o que é o outro, porque eu me identifico a partir da minha relação com o outro”, explica a pesquisadora, que fez toda a sua formação na Unicamp – graduação, mestrado e doutorado. A expectativa da pesquisadora é que a tese sirva como um suporte para oferecer outras formas de representação das pessoas refugiadas.