Cientista social desvela relações que fluem junto ao curso de água
Quantas histórias e vivências surgem e se entrelaçam ao curso de um rio? Na tese “Vida, escrita e transbordamentos: biografias e etnografia do rio Piracicaba”, desenvolvida por Fernando Camargo no doutorado em Ciências Sociais na Unicamp, são exploradas as interações e histórias que fluem em diálogo com o curso da água. Para biografar o Piracicaba, Camargo compôs um trabalho textual e imagético que resultou também em um site, o Atlas biografia do rio Piracicaba.
A tese do cientista social foi orientada pela professora Daniela Manica e explora 14 eixos em torno do rio, que foram organizados como verbetes. A cada um deles foi associada uma imagem, produzida com sobreposições de técnicas de fotografia, desenho e ilustrações, e usada na confecção de cartões postais. Quatro constelações de imagens compõem o trabalho. “Tentei encontrar quais os tipos de relações que o rio tem com as diferentes vidas que se entrelaçam com a dele. Busquei fazer isso a partir das constelações e de verbetes, relacionando-os”, explica Camargo.
Os verbetes desvelam relações como de troca, de diálogo e de negociação. “Há também relações que se distanciam mais do rio e o veem apenas como um recurso hídrico. Por conta da falta de água, do problema de abastecimento de São Paulo e das cidades da região metropolitana, há uma relação de utilização das águas enquanto recurso”, exemplifica o pesquisador, ao comentar o verbete Sistema Cantareira.
As interações, conforme Camargo, indicam também a complexidade das relações. Os verbetes Enchentes e Secas, por exemplo, expõem a relação polivalente de ribeirinhos e pescadores com o ciclo do rio. “Eles se preparam, mas também são surpreendidos algumas vezes e até agradecem [pelas enchentes]. Quando está muito seco, muitos peixes morrem e acaba vindo um cheiro ruim, já que é um rio poluído. Quando ele transborda, o pessoal fala que o rio está vivo.”
O rio como protagonista
O vínculo do pesquisador com rios teve início em sua infância, quando acompanhava o pai, biólogo e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em pesquisas de campo. Na graduação, estudou a Festa do Divino, que acontece no Piracicaba há quase 200 anos e é considerada patrimônio imaterial da cidade. Na especialização, deteve-se sobre o projeto de requalificação da orla do rio. Já no mestrado, fez mapeamento dos grupos de pescadores da região. “Estava rodeando o rio, e faltava entrar nele, assumir o rio enquanto elemento central da pesquisa”, afirma, referindo-se ao trabalho de doutorado, que traz as observações e reflexões dessa imersão.
A ideia de biografar um rio, segundo a orientadora do trabalho, foi um desafio. “Somos da antropologia e das ciências sociais. Geralmente, trabalhamos com humanos. A perspectiva de trabalhar com não humanos é contemporânea e tem rendido pesquisas muito interessantes. A do Fernando é uma delas.” Manica lembra, trazendo reflexões do ativista e intelectual Ailton Krenak, que entidades não humanas, como os rios, também portam vida e podem morrer. “E, se elas morrem, também morremos, porque há uma relação de complementaridade. Fernando foi tentando, por meio das imagens, das fotografias, das histórias e dos verbetes, contar um pouco dessa vida, entrecruzada também com a vida dele.”
Sem considerar a defesa da tese como um término do trabalho, Camargo convida os admiradores e navegadores do rio a contarem suas histórias.