Trabalho conjunto da Unicamp e da Universidade Johns Hopkins avalia efeitos da doença no sistema cardiovascular
Graças ao esforço coordenado da comunidade científica de todo o mundo e ao consequente avanço da vacinação, hoje, a covid-19 está longe de impactar a vida das pessoas como fez nos piores momentos da pandemia. A história de sucesso, porém, não significa que a doença dispensa cuidados, nem que deixa de intrigar médicos e pesquisadores. Depois da grande preocupação com os sintomas respiratórios agudos provocados pela infecção viral, são os efeitos crônicos prolongados do vírus que, hoje, chamam a atenção. Um estudo de revisão sistemática de artigos científicos realizado pela Unicamp e pela Universidade Johns Hopkins (EUA) debruça-se sobre uma das implicações de longo prazo da doença: seus efeitos no sistema cardiovascular.
O artigo, publicado em 2021, foi um dos dez mais citados da revista Atherosclerosis naquele ano e mostra a importância de estudos de revisão sistemática para melhorar a qualidade da produção científica. O trabalho tem autoria de Thiago Quinaglia, pesquisador de pós-doutorado no Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, e Andrei Sposito, professor da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e coordenador do Centro de Pesquisas Clínicas (CPC) da Unicamp. Na época, Quinaglia era pesquisador da Johns Hopkins e propôs unir esforços com a Unicamp na busca por respostas sobre a covid-19. “A Unicamp foi fundamental para que isso fosse possível. Graças à Universidade e a uma bolsa da Sociedade Brasileira de Cardiologia, pude estar em um local que foi referência em pesquisas sobre a covid-19”, recorda Quinaglia.
No Brasil, entre os dias 23 e 29 de janeiro de 2022, mais de 1,3 milhão de novos casos da doença foram registrados e, entre os dias 4 e 10 de abril de 2021, 21 mil mortes, fazendo desses dois períodos os piores da pandemia no país, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Em abril de 2023, houve uma média de 50 mil novos casos da doença, com cerca de 300 mortes por semana.
Uma bola de neve
Com o passar do tempo, é possível concluir que os efeitos da covid-19 se manifestam em ondas. Primeiro, é preciso tratar a infecção viral e seus sintomas respiratórios. Casos mais graves envolvem uma resposta inflamatória exagerada do organismo, razão de grande parte das mortes causadas pela doença. A partir de uma terceira onda de sintomas cardiovasculares ligados à covid-19, começou-se a investigar a relação entre a doença e o aumento no número de pacientes com problemas vasculares, como infartos e acidentes vasculares cerebrais (AVCs).
Quinaglia menciona o caso de um levantamento feito no Reino Unido pelo UK Biobank, que monitorou a saúde de vários pacientes por um ano e constatou a incidência dez vezes maior de infartos e 17 vezes maior de AVCs entre pessoas que já haviam contraído o coronavírus. “Com as vacinas e o relativo controle da doença, havia mais tempo para avaliarmos os pacientes e os efeitos crônicos da doença. O infarto não era esperado como uma das manifestações da covid-19. As pessoas eram internadas e, nos exames, não eram encontradas doenças coronarianas”, explica Sposito.
O estudo buscou sintetizar as pesquisas já desenvolvidas que associavam a covid-19 com doenças vasculares. No total, 318 artigos foram encontrados nas plataformas MedRxiv e LitCovid (PubMed). Desses, 66,4% foram ex- cluídos por não serem estudos sólidos ou não apresentarem bases confiáveis. A análise dos 107 artigos restantes mostrou que a infecção pelo SARS-CoV-2 compromete as células do endotélio, camada celular que reveste os vasos sanguíneos e é responsável pela regulação do sistema vascular. Isso prejudica funções importantes, como o transporte de oxigênio e o controle da pressão arterial, além de facilitar a formação de coágulos.
“Há doenças dentro dos vasos e em torno deles, causando uma constrição, e também nos receptores envolvidos na regulação da pressão arterial, o que prejudica a oxigenação de tecidos e órgãos”, detalha Quinaglia. Ele lembra que esses não são efeitos isolados, mas que se combinam com as demais inflamações provocadas pela infecção. “É uma tempestade perfeita.” Além das doenças vasculares, a desregulação desse sistema desencadeia uma série de outros problemas, como disfunções renais, gastrointestinais e até manchas na pele. “Quando o sistema [vascular] não funciona, começam a surgir proble- mas em todo o corpo”, aponta Sposito.
Organizando o conhecimento
Estudos de revisão sistemática, como o empreendido por Quinaglia e Sposito, cumprem uma função valiosa no desenvolvimento científico ao estruturar o conhecimento global obtido por pesquisas isoladas. Segundo os pesquisadores, a pandemia foi um contexto em que a união de esforços e a necessidade de soluções rápidas propiciaram uma intensa produção de dados, ainda que nem todos sejam confiáveis.
“A revisão sistemática, associada a uma meta-aná- lise, fornece dados confiáveis e serve para compilar o que se conhece até o momento ou consolidar o conhecimento em uma direção, excluindo dúvidas que possam surgir no caminho, permitindo avanços consistentes”, afirma Quinaglia.
A conclusão de que o comprometimento do sistema vascular decorre da infecção pelo SARS-CoV-2 abre caminhos para tratamentos mais eficientes. “No início, não pensamos que fosse um problema relacionado aos vasos sanguíneos, mas à coagulação. Por isso, foi comum a prescrição de anticoagulantes antes de descobrirmos que os medicamentos não funcionavam”, lembra Sposito.
O pesquisador comenta que, atualmente, parte do desafio é compreender os efeitos metabólicos da doença – como o aumento na incidência de diabetes – e neurológicos, como a perda de memória relatada por pacientes. O especialista menciona, ainda, os problemas socioeconômicos existentes no país e no mundo, intensificados pela pandemia, e o estresse psicossocial coletivo. “Esses fatores contribuem para o aumento no número das doenças car- díacas que temos observado”, conclui o médico.
TWEETS PODEM AJUDAR NO CONTROLE DE EPIDEMIAS EMERGENTES
É possível explicar e prever a evolução de uma pandemia em determinada localidade a partir do que as pessoas escrevem no Twitter. Essa é a principal conclusão de uma pesquisa conduzida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp, em parceria com a Universidade do Texas (Estados Unidos), que identificou a relação entre palavras contidas em tweets e o aumento no número de casos de covid-19 e de mortes provocadas pela doença no Brasil entre novembro e dezembro de 2020. Os resultados sugerem que o acompanhamento em tempo real de postagens em redes sociais pode dar mais agilidade a políticas de monitoramento e controle de epidemias emergentes.
O estudo, que fez parte de uma chamada especial do Ministério da Saúde, integrou um projeto dedicado a pesquisar se a forma como os usuários interagiam nas redes sociais refletiria a dinâmica da pandemia e impactaria a saúde das pessoas. Financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o projeto foi coordenado pelo professor Alexandre Gori Maia, do IE, em parceria com a professora Leticia Marteleto, da Universidade do Texas, e contou com a colaboração dos pesquisadores José Daniel Morales Martinez e Luiz Gustavo Sereno, da Unicamp, e Cristina Guimarães Rodrigues, da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) da Universidade de São Paulo (USP).
O objetivo era investigar a relação entre a variação no número de casos e mortes relacionados à covid-19 e o comportamento dos usuários do Twitter – o que poderia auxiliar a prever novos focos da doença, pontua o professor do IE. “Na pesquisa acadêmica, sobretudo nas humanidades, o uso de big data de redes sociais é recente e tem se intensificado nos últimos anos.”
Pesquisador que integra o Centro de Pesquisas Aplicada em Inteligência Artificial BIOS (Brazilian Institute of Data Science, na sigla em inglês), que fomenta estudos sobre o uso de big data e está alocado na Unicamp, Maia argumenta que o principal foco do projeto era entender o comportamento das pessoas nas redes sociais e sua relação com o agravamento da pandemia. Para tanto, os pesquisadores selecionaram mais de 510 mil tweets de acesso público, publicados em novembro de 2020 em 3.599 municípios brasileiros. O grupo organizou os dados em 557 microrregiões e levantou informações sobre casos confirmados de contaminação e mortes por covid-19 junto ao Ministério da Saúde, ocorridas em dezembro de 2020, nas mesmas microrregiões.
Caça-palavras
Para detectar quais vocábulos melhor expressariam a percepção de risco das pessoas e o seu comportamento quando o assunto era saúde, o grupo realizou uma análise lexical do conteúdo levantado e monitorou a incidência de palavras associadas aos temas mais debatidos no Twitter. Assim, foi possível definir quais palavras-chave melhor traduziram a relação entre os tweets e a disseminação do vírus.
Os pesquisadores chegaram a 14 palavras, que agruparam em cinco categorias: pandemia; medidas de segurança; vacinação; política; e saúde. Entre os termos identificados, estavam “quarentena”, “isolamento”, “máscara”, “vacinação”, “Coronavac” e “comunismo”. Para não mencionar as previsíveis “covid-19”, “morte”, “pandemia” e “saúde”. Incorporar ao estudo termos associados ao comportamento social e político, além dos relacionados apenas à saúde, avalia Maia, constituiu um caráter inovador do estudo, pois permitiu explicar como o comportamento social, bem como em relação à saúde, ajuda a entender a evolução no número de casos e mortes.
Para relacionar as palavras-chave selecionadas aos dados do Ministério da Saúde, o grupo aplicou uma série de modelos de econometria espacial, que consideram a interdependência entre os casos e as postagens registradas em microrregiões vizinhas. A metodologia controlou ainda variáveis refletindo as desigualdades regionais, especificamente no que se refere às características da população e do sistema de saúde. A análise descobriu que postagens publicadas em determinada microrregião estavam associadas aos casos e mortes registrados nesse local e também aos de áreas vizinhas. “Os resultados foram consistentes tanto para os casos confirmados como para as mortes, apontando a mesma forma de relacionamento entre as variáveis.”
Dessa forma, o estudo sinaliza que políticas de saúde criadas para monitorar e controlar epidemias emergentes podem utilizar dados, em tempo real, sobre o comportamento das pessoas nas redes sociais. Podem, ainda, complementar as informações relativas às questões de saúde, fornecendo uma alternativa rápida para o controle de epidemias localmente enquanto não houver dados apurados segundo os métodos tradicionais.
O professor do IE acredita que um dos principais desafios acabou se revelando também um dos principais ganhos da pesquisa. “Conseguimos provar que a rede social pode fornecer informações relevantes para a compreensão do comportamento e da reação da população diante de uma pandemia. A despeito de utilizarmos diferentes estratégias metodológicas, obtivemos resultados semelhantes, o que evidencia a relevância e robustez das conclusões”, aponta.
PERCEPÇÃO DE RISCO
As menções selecionadas que sugeriam preocupação com a saúde e respeito às medidas de segurança, segundo o professor, poderiam indicar uma percepção de risco que se traduziria, depois de um período, em índices menores de casos confirmados e mortes. “É como se eu estivesse tirando uma foto do sentimento das pessoas, mostrando que se preocupam mais com a saúde ali naquele espaço e naquele momento.” Por outro lado, uma grande quantidade de menções à covid-19 estaria associada a um aumento no número de casos e mortes relacionados à doença, mostrando uma reação das pessoas diante do avanço da pandemia em suas respectivas regiões.
Após testarem diferentes intervalos de tempo, os pesquisadores concluíram que as associações mais fortes foram obtidas entre as postagens no Twitter e os números de casos e mortes regis- trados um mês depois daquelas postagens. Isso revela que a estratégia de análise permitiria um tempo hábil para o desenvolvimento de políticas de combate local à epidemia.