Contratos assinados por Machado de Assis e Baptiste-Louis Garnier revelam um autor negro em busca do controle editorial de sua obra
O ficcionista Machado de Assis (1839-1908), criador de Capitu e do metafísico personagem Brás Cubas, poderia ser, 115 anos depois de sua morte, o autor de um roteiro no qual os seus contratos — rascunhos e originais — e os seus recibos revelariam particularidades e meandros de sua trajetória de vida. No melhor estilo machadiano, essa é uma história real. Contudo, a autoria do roteiro está nas mãos da professora Lúcia Granja, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.
Documentos preservados pelas editoras que herdaram o “espólio” do principal editor de Machado de Assis, Baptiste-Louis Garnier, revelam que o consagrado escritor brasileiro, reconhecido em vida por suas obras literárias, mostrava-se profundamente engajado no processo editorial de suas publicações, constata Granja. Portanto, diz a professora, para além do seu talento criador, Machado de Assis também atuou como editor.
Desde cedo empenhado na condução de sua carreira, ele controlava as cláusulas de seus contratos editoriais, até mesmo alterando-as de próprio punho. Nos primeiros anos da sua relação com Garnier, chegou a ceder a propriedade perpétua sobre todas as edições de algumas de suas obras. Com o tempo, entretanto, mudou o teor dos contratos e passou a restringir os direitos do editor. Em agosto de 2020, tendo em mãos as fontes primárias, a professora começou a desenvolver sua pesquisa Machado de Assis: páginas escritas e papéis editoriais, apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O trabalho deriva do projeto temático “A circulação transatlântica dos impressos: a globalização da cultura no século XIX”, realizado entre 2011 e 2016.
Para a pesquisadora, ao mesmo tempo que seu trabalho se origina de um projeto temático, ele também decorre de toda a pesquisa que a docente fez ao longo de sua vida acadêmica. “Um projeto leva a outro e é assim que a pesquisa evolui”, afirma. Antes de cursar graduação em Letras na Unicamp, Granja já era leitora assídua de Machado. Aos 19 anos, fez sua primeira iniciação científica sobre o autor, e não parou mais de estudar sua obra.
“Meu trabalho não resolve a figura do escritor ou diretamente a sua obra, mas os processos pelos quais ele projetou essa imagem de gênio para a posteridade. Foi sobre isso que eu pesquisei”, diz Granja, que já publicou diversos artigos sobre sua investigação e, agora, prepara um livro cujo título já está definido, Machado de Assis: papeis editoriais.
Para a pesquisadora, já existe um consenso sobre a genialidade de Machado de Assis, mas poucos se atêm a ele como homem do seu tempo e escritor ciente das práticas de publicação da época, inclusive desejoso de ver seus livros circularem internacionalmente, o que veio a acontecer somente após sua morte. “O que ele fez para garantir esse espaço?”, questiona Granja, para, em seguida, responder. “Ele fez todos os esforços para manter o controle editorial sobre sua obra. Em meu trabalho, há uma desconstrução da imagem romântica do escritor.”
Dados cruzados
“Quando trabalhamos com fontes primárias, nunca sabemos aonde vamos chegar”, diz a professora, que fez o cruzamento do material de Garnier — disponibilizado pela Editora Martins —, com o material que permanecia em posse da família do autor e que foi selecionado a partir do catálogo de uma exposição realizada em 1939 em comemoração aos 100 anos de nascimento do escritor. Os papeis chegaram às mãos de Granja como consequência das pesquisas ligadas a projetos temáticos prévios, como o citado anteriormente e o “Memória da Leitura”.
“Percebi que existiam versões limpas e rabiscadas dos mesmos contratos, ou seja, versões que foram depois renegociadas e passadas a limpo. Isso mostra a atuação clara de Machado de Assis como editor.” Segundo a docente, nessa simbiose autor/editor, que durou cerca de 20 anos, Machado foi mudando sua forma de negociar as condições dos contratos ao longo do tempo, adquirindo o que a professora chama de crédito simbólico.
“Num primeiro momento, em um contrato de 1864, a gente vê que ele vende, para Garnier, a propriedade inteira e perpétua de duas obras, Contos Fluminenses e Falenas, de maneira que jamais o autor voltasse a ser consultado em caso de reedição dessas obras. Entretanto, em um contrato de 1869, Machado negocia três livros de ficção em condições diferentes, segundo as quais, caso houvesse reedição, o autor receberia novo pagamento.” Em 1870 foi publicado o primeiro romance de Machado de Assis, Ressurreição.
Conduzido à ficção
A interação entre Machado e Garnier foi determinante para traçar os caminhos da produção literária do escritor. Inicialmente, Machado fazia poesias e contos, mas sua obra foi se encaminhando para a prosa de ficção, que notoriamente era o grande interesse editorial de Garnier naquele momento. “Em 1864, ele estava publicando poesia. Depois, devagarzinho, vai sendo encaminhado para o conto, especificamente no Jornal das Famílias, publicado pelo próprio Garnier, que começa a publicar coletâneas desses contos. Em seguida, Machado começa a escrever as obras mais longas, que são os romances, até ocupar o lugar de ficcionista”, descreve Granja.
De acordo com a pesquisadora, Machado começa a publicar poesias em 1855, ainda muito jovem, aos 16 anos. Nessa fase, e por cerca de 20 anos, sua produção é mais variada. “Tem realmente alguma coisa que acontece nas duas primeiras décadas quando ele está procurando um espaço, ou seu estilo, que viria a ser original e inovador.” Ele batalhava no jornalismo, como cronista e como crítico; em 1865, já era crítico consagrado e chegaria a comentar, de forma polêmica, a obra O primo Basílio, de Eça de Queirós. Acumulava, ainda, as funções de contista no Jornal das Famílias, poeta, dramaturgo e tradutor – verteu, por exemplo, Victor Hugo. “Há um processo de construção desse artista, até chegar à originalidade de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que é de 1880”, diz Granja.
Nessa época, Garnier – que também tinha contratos com outros autores – conquistava espaço no mercado de livros, inclusive os didáticos, obtendo apoio do governo e uma espécie de subvenção imperial para investir em livros que construíssem a imagem nacional. A Livraria Garnier funcionou de 1844 a 1934. Depois que encerrou as atividades no Brasil, foi vendida para a Ferdinand Briguiet, que abriu a Livraria Briguiet-Garnier. Grande parte do acervo terminou nas mãos da Editora Itatiaia, em 1973, para depois chegar à Editora Martins, que, por fim, destinou parte desse material à pesquisa.
Propriedade literária
Machado tinha consciência de que era necessário o próprio autor proteger sua propriedade literária. Um dos indicativos disso é que ele era detentor, no Brasil, da propriedade literária do português Faustino Xavier de Novais (seu cunhado, irmão de sua esposa, Carolina Augusta Xavier de Novais).
A pesquisadora observa que, embora não houvesse legislação sobre propriedade literária ou intelectual à época, os debates sobre os temas vinham ganhando espaço. “É importante registrar que o processo de produção do livro no Brasil era bastante internacionalizado.” Um livro poderia ser escrito no Brasil, depois ser composto numa tipografia francesa e publicado em outra tipografia em Viena, na Áustria, como aconteceu, em 1862, com um dos livros de poesia de Gonçalves Dias, exemplifica a professora.
Garnier era um francês que editava livros no Brasil, mas os imprimia em Paris ou em Viena. Machado se esforçou para conseguir circulação internacional, mas ele só rompeu as fronteiras nacionais dois anos após sua morte, destaca a professora. O escritor foi traduzido para o francês em 1910. “Hoje em dia, há um grande interesse internacional pela obra machadiana, mas isso começou a se construir a partir da segunda metade do século XX. Não foi algo alcançado em vida, apesar das tentativas e do controle editorial que tentou manter.”
Desromantização
De acordo com Granja, quase sempre a crítica sobre Machado de Assis é muito romântica. “A pesquisa está colocando os traços materiais do homem na trajetória do artista genial.” Ou seja, o efeito é revelar um Machado de Assis mais humano, desmistificando a imagem do gênio que ele conseguiu projetar no Brasil para a posteridade. “Isso não afeta a genialidade dele, mas o desromantiza”, afirma a professora.
A docente entende que a imagem construída do escritor tem muito do homem e de uma série de outros fatores: o seu papel como editor, a circulação, o meio intelectual e a própria intervenção na atividade editorial. “Isso não era exclusividade da época. Hoje em dia ainda existe essa luta dos escritores na busca pela editora que vai melhor representar sua obra.” Granja acredita que o papel da sua pesquisa é inserir o trabalho de Machado em seu contexto e no seu tempo.
A pesquisadora sugere que o reconhecimento de Machado andou junto com a sua capacidade de diversificar, em benefício próprio, os contratos estabelecidos com Garnier. “O escritor conseguiu organizar a recepção e a sua projeção, porque era um homem que tinha contato com todos os intelectuais da época e com o meio editorial. Para além disso, atuou em periódicos desde os anos 1850 até a fundação da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1897”, salienta Granja.
A CONSCIÊNCIA METAGENÉRICA EM UM MUNDO POROSO
A dissertação de mestrado “A mão visível do editor in- visível: o paradigma da edição na ficção curta machadiana”, de Guilherme de Souza Lopes, também integra o projeto da Fapesp coordenado por Granja. Enquanto a orientadora focou os papeis editoriais que Machado de Assis desempenhava, seu orientando investigou como a edição aparece – de maneira metaforizada – nos contos do autor.
“Comecei a ver traços de como apareciam dispositivos de edição em alguns contos, mas não necessariamente nos personagens”, afirma Lopes, que menciona três obras como exemplo: os contos A Igreja do diabo, que acontece em torno de um manuscrito, e Galeria póstuma, em que um sobrinho encontra o diário de um tio; e a crônica O sermão do diabo, em que o autor brinca sobre uma possível edição do texto do sermão.
Lopes explica que procurou perceber como as muitas experiências de Machado produziram efeito na sua obra. Ele analisa os contos machadianos no contexto histórico, considerando também a trajetória de vida do autor. Para o pesquisador, Machado ter trabalhado em jornais, ter sido funcionário público (no Ministério da Agricultura) e, ainda muito jovem, ter trabalhado em uma tipografia são fatos que contribuíram para a consciência do escritor de que sua obra não era tão somente um texto. “O que a dissertação do Guilherme trouxe é que Machado usa elementos de edição como assunto ou como técnica da ficção. Tudo isso constitui uma espécie de memória da cultura escrita. O trabalho dele vai mostrar uma coisa realmente nova”, diz a professora Granja.
Por muito tempo, predominava a imagem de um Machado de Assis absenteísta, reforça a orientadora. “O escritor era visto como um homem que evitou os assuntos delicados da época, como a questão da escravidão ou os conflitos políticos importantes, como os que levaram ao fim da monarquia.” Hoje, há um interesse por um Machado que finalmente foi identificado como um escritor negro, “porque houve um apagamento disso na contemporaneidade dele e por muitos anos depois”.
Lopes transcende, sem ignorá-las, as facetas pessoais do escritor para fundamentar a sua dissertação. “Machado entendia que o projeto gráfico também era importante, assim como a materialidade do livro. Com uma consciência com um pé na vanguarda, ele percebia que tudo isso produzia sentidos que contaminavam o texto e produziam uma obra. Trata-se de uma consciência metagenérica [de gênero textual discursivo]”, analisa Lopes.
Poder simbólico
Na avaliação de Lopes, Machado era um escritor negro, com longa experiência nos bastidores de jornais, que vivia em um regime imperialista e escravocrata e que negociava com seu editor tentando ter o domínio da sua obra. Essa relação, portanto, não acontecia de forma simples e natural. “Ele era um autor negro que angariava poder simbólico no século XIX, lutando pela própria obra.” O pesquisador acrescenta que Machado percebia as tensões e contradições do Brasil, ao mesmo tempo que conseguia transitar em diferentes esferas. “Ele estava no centro, mas também estava à margem. A dialética está aí, nessas contradições”, afirma Lopes.
“Ele sabe que está numa colônia que, mesmo quando deixa de ser, ainda é colônia; quando deixa de ser monarquia, ainda é monarquia; e, quando deixa de ser escravocrata, continua sendo escravocrata.” Segundo Lopes, o escritor sabia que estava numa espécie de mundo poroso, em que não havia mudança verdadeira da realidade, apenas sobreposição de contextos. “É importante entender essas camadas que me parecem estar latentes na obra de Machado. Tem uma espécie de temporalidade difusa que ele enxerga também no Brasil. As coisas não se desenvolvem necessariamente de forma linear. A escravidão não parou de acontecer e ele percebe isso”, analisa Lopes.
“Por tudo isso, Machado continua sendo uma espécie de figura central para o nosso pensamento, não só na literatura, mas no pensamento social brasileiro”, conclui o agora mestre, que pretende continuar os seus estudos sobre o ficcionista.