Grupo de pesquisa reproduz o metabolismo de organismos vivos para sintetizar compostos orgânicos oxigenados
A natureza tem seus próprios mecanismos de produção de substâncias para as mais diversas finalidades. Desde o metabolismo de plantas e fungos até o trabalho de nossos fígados, os organismos vivos metabolizam produtos diversos, o que leva à síntese de novos compostos orgânicos a todo momento. Isso ocorre por meio de vários tipos de reações químicas, que obedecem diferentes tempos e dinâmicas. Compreender e reproduzir essas reações em laboratório é o foco do trabalho de um grupo de pesquisa do Instituto de Química (IQ) da Unicamp.
Coordenados pelo professor Emilio de Lucca Júnior, os pesquisadores analisam compostos orgânicos e desenvolvem novas reações químicas capazes de imitar os processos que ocorrem nos organismos vivos que os produzem, principalmente vegetais e fungos, de forma a chegarem às mesmas substâncias que seriam obtidas pela via natural. “Nossa primeira inspiração é verificar os compostos que a natureza produz e tentar chegar ao mesmo resultado. O segundo objetivo é fazermos isso da mesma maneira”, aponta o coordenador.
Para isso, exploram técnicas de oxidação seletiva em laboratório. A oxidação é um tipo de reação que pode acontecer entre compostos orgânicos — formados, principalmente, por carbono (C) — e outra substância que atua como agente oxidante. Ela envolve a perda e o ganho de elétrons entre os átomos: o agente oxidante ganha elétrons, enquanto o composto orgânico os perde. Uma das características dos compostos oxidados obtidos nesses estudos é a presença do oxigênio, que passa a integrar sua estrutura molecular.
Nos experimentos realizados pelo grupo, há um componente de inovação nos processos de oxidação executado envolvendo ligações de átomos de carbono com átomos de hidrogênio (H). Isso porque a oxidação de ligações C–H, comuns nos compostos orgânicos, é um tipo de reação que, apesar de ocorrer na nature- za, só a partir de meados dos anos 2000, começou a ser realizada em laboratório de maneira mais eficiente. Lucca Júnior explica que, segundo os métodos químicos tradicionais, seria necessária a presença de algum outro tipo de grupo funcional nas moléculas para que a oxidação ocorresse neles, inserindo ali átomos de oxigênio. Porém, com a técnica explorada pelo grupo, isso pode ser feito diretamente nas ligações C–H. “Não conhecíamos essas reações. Antes, eram necessários muitos procedimentos até que chegássemos ao resultado. Hoje, atingimos o mesmo objetivo com apenas cinco ou seis reações”, detalha.
Nesses casos, os pesquisadores trabalham com o que denominam oxidações seletivas: a depender da região da molécula em que querem inserir átomos de oxigê- nios, visando à formação de um novo composto oxidado, um tipo de agente oxidante será mais adequado. “É uma operação cirúrgica que fazemos nas moléculas”, compara Lucca Júnior. Ele pontua que o domínio dessas reações em laboratório torna a produção de compostos orgânicos mais rápida, barata e limpa, por gerar menos resíduos.
“Dependendo do composto e da quantidade que gostaríamos de preparar, precisaríamos de uma floresta inteira para obter o mesmo resultado que conseguimos em laboratório.” Por isso, o foco das pesquisas não está tão relacionado com o tipo de molécula que será obtida a partir das reações, mas nos processos de laboratório para chegar até ela.
Oxidação na fronteira do conhecimento
Um dos experimentos recentes feitos pelo grupo foi destaque de capa do Journal of Organic Chemistry, um dos principais periódicos da área. O artigo descreve a síntese, em laboratório, de compostos orgânicos oxigenados a partir da oxidação do ácido caurenóico, obtido a partir da Mikania glomerata, planta conhecida como guaco, e do isoesteviol, componente da Stevia rebaudiana utilizado na fabricação de adoçantes do tipo stevia. A realização dos dois processos em laboratório foi inédita. Além de Lucca Júnior, são responsáveis pelo trabalho Victor Santana e Eduardo Rocha, orientandos do laboratório, e Julian Pavan e Vladimir Heleno, pesquisadores da Universidade de Franca, parceira nas pesquisas realizadas pelo grupo.
No caso do ácido caurenóico, as reações foram realizadas utilizando agentes oxidantes à base de selênio e de ósmio, e os resultados foram compostos da classe dos ent-cauranos. Já os processos com o isoesteviol tiveram início com a oxidação feita pelo paládio, resultando em um metabólito — espécie de produto intermediário — que, na natureza, é produzido por um fungo. Em uma segunda etapa, foi aplicado um oxidante à base de manganês, que se destaca no processo por ser menos tóxico. O resultado foi um composto da classe dos ent-beieranos.
Os produtos obtidos nem sempre são equivalentes. Há experimentos em que o processo de oxidação resulta em outro composto, diferente do que se pretendia. Quando isso ocorre, é necessário reavaliar os procedimentos ou as características dos materiais de partida, em busca de outros caminhos para a solução. Alguns desses resultados inesperados podem ser promissores.
Além da parceria com a Universidade de Franca, os projetos contam com o auxílio de pesquisadores da região amazônica e têm apoio do Programa Jovem Pesquisador, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “O que mais me motiva é tentar fazer em laboratório o que a natureza faz de maneira eficiente há bilhões de anos”, comenta Santana.
Por se tratarem de procedimentos ainda pouco conhecidos entre os químicos, as oxidações exploradas pelo grupo ainda não contam com ampla aplicação na indústria química. Segundo Lucca Júnior, são métodos com potencial de implementação na indústria farmacêutica na busca, por exemplo, pela síntese de compostos orgânicos que demandariam um longo tempo ou uma grande quantidade de vegetais para serem obtidos. “Estamos escrevendo as regras para esse tipo de procedimento, trabalhamos na fronteira do conhecimento. Partimos de coisas conhecidas e, progressivamente, criamos coisas novas”, conclui o professor.