Livro didático rompe paradigmas ao fundir ciência, emoção e criatividade
No facho de luz que incide sobre a janela, uma partícula flutuante de poeira pode inspirar poetas e cientistas. Sob essa perspectiva poético-científica, o professor titular da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Unicamp Marco Aurélio Cremasco e sua orientanda Alessandra Suzin Bertan escreveram o livro Transferência de massa – Difusão mássica em meios convencionais, publicado recentemente pela Editora Blucher. A obra – que já é utilizada em aulas de graduação na Engenharia Química da Universidade – rompe paradigmas de livros técnico-científicos e didáticos ao inserir, na introdução de cada capítulo, textos que contêm emoção, memórias e a criatividade dos autores.
Engajados na poesia e na ciência, os dois engenheiros químicos, ambos paranaenses – o professor, de Guaraci; e a aluna, de Clevelândia –, partiram do princípio de que “a ciência permeia a existência”. Portanto, o sobe e desce da poeirinha, além de revelar a beleza da natureza, corresponde ao movimento browniano – descrição da difusão da matéria a partir do deslocamento aleatório de partículas em um fluido. “A transferência de massa acontece diante de nossos olhos”, diz Cremasco, que, além de ser autor de outros livros técnicos, também escreveu romances, crônicas, contos e poemas – o docente foi indicado duas vezes ao Prêmio Jabuti e venceu o Prêmio Sesc de Literatura.
O professor dá outros exemplos de transferência de massa que fazem parte do nosso dia a dia: na hora do chá, a dispersão dos constituintes do sachê no meio líquido (que muda de cor); na hora do banho quente, o vapor no espelho do banheiro; na hora do brinde, as bolhas de CO2 se difundindo no meio alcoólico – fenômeno que fez o monge Beneditino Pierre Pérignon, no século XVII, exclamar “estou bebendo estrelas” ao tomar o primeiro gole do primeiro champagne do mundo.
“De repente, a poesia acaba sendo uma linguagem universal. Eis, talvez, um de seus propósitos”, diz Cremasco. O livro é baseado na solução de problemas, com sólido embasamento teórico, mas o texto do enunciado estabelece uma relação dialógica com outros campos do saber, dando um caráter transdisciplinar à publicação.
Cada um dos 30 capítulos começa com a contextualização, seguida dos comentários, do formulário e da solução do problema. Uma abordagem não convencional que permite ao leitor identificar-se com alguma coisa. No segundo momento, entram a engenharia e, finalmente, a transferência de massa, numa abordagem teórica convencional.
Esperança
“Com isso, você quebra um paradigma dentro da engenharia. Será que a professora ou o professor podem humanizar o ensino? Pois devem, porque o futuro dos alunos não se resume apenas a sua atuação profissional”, adverte Cremasco. “Temos em mente que não estamos preparando só a engenheira química ou o engenheiro químico. Estamos formando cidadãs, cidadãos e, sobretudo, seres humanos.”
Para o professor, a pandemia aprofundou essa reflexão. “Estávamos à beira da falta de esperança, todavia acreditando fielmente na ciência. Pode ser paradoxal. A esperança estava em nós e precisávamos agir.”
Bertan, por exemplo, havia ingressado no ano an-terior em seu mestrado. Com a pandemia, ela foi para casa, no interior de Santa Catarina. Os dois começarama escrever o livro e, para marcar o momento, trazem já no primeiro capítulo a questão da covid-19, discorrendo sobre a difusão estocástica, uma abordagem inovadora no Brasil em se tratando de ensino de transferência de massa na engenharia química. Os autores iniciam o livro com uma questão central: o que é ser humano e o que é o ser humano?
A experiência da pandemia contribuiu para a contextualização do conhecimento, diz Cremasco. Para Bertan, além de humanizar, a abordagem do livro leva a realidade para o leitor/estudante. “Não fica só no cálculo”, avalia a pesquisadora, que desenvolve agora o seu doutorado. O resultado de seu mestrado foi inserido no capítulo “Microfiltração”, no qual ela menciona o “esperançar” de Paulo Freire.
A doutoranda ganhou o prêmio Desafio Tecnológico pela Agência de Inovação da Unicamp e teve um trabalho entre os melhores no I Congresso Brasileiro Interdisciplinar de Ciência e Tecnologia e no II Web Encontro Nacional de Engenharia Química. Em razão da aplicação tecnológica em curso, há dois depósitos de patente e um registro de software junto ao Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial). “Trazer a esperança é contribuir para uma sociedade mais justa”, diz Cremasco.
Inspiração
Bertan lembra que semanalmente se reunia, de forma remota, com o seu grupo de pesquisa da Faculdade de Engenharia Química (FEQ), para uma espécie de sarau. “Discutíamos, primeiro, sobre a parte técnica de nossos trabalhos. Depois, trazíamos leituras diversas sobre literatura, música etc. Isso me ajudou, possibilitando dar vazão à criatividade também na escrita da dissertação.”
Quando escreve “existe um mar de melancia no meu quintal, plantado por mim. Pés e pés de melancia que poderiam até se estender ao Calcanhar, um riacho que corre a cerca de 100 metros da casa dos meus pais”, a pesquisadora se refere a uma plantação que existe de fato, em um sítio do interior de Santa Catarina, onde cresceu ao lado de uma plantação de soja e da criação de vacas leiteiras. Segundo Bertan, diante da utilização do livro em sala de aula na graduação, a reação dos estudantes é positiva.
A pesquisadora tem também trabalhos publicados em capítulos de livros, revistas especializadas e anais de congresso. Devido ao fato de Bertan ter sido da primeira turma de formandos em Engenharia Química da Universidade Tecnológica do Paraná – campus Francisco Beltrão (PR), os autores fizeram questão de realizar lá o lançamento do livro, em março último. Tratou-se de um gesto de agradecimento aos colegas e professores e para lembrar e reforçar que a educação deve ser algo prioritário, além de ser a base para os progressos científicos e tecnológicos de nosso país.
Cremasco, por sua vez, começou a preparar o volume 2 de Transferência de massa. O docente é também autor dos livros Fundamentos de transferência de massa, Vale a pena estudar engenharia química, Difusão mássica e Operações unitárias em sistemas particulados e fluidomecâicos, todos adotados em várias escolas de Engenharia Química no Brasil.