Tese amalgama códigos e referências, da ancestralidade aos sentimentos, para reconstituir a história do movimento que ganhou as ruas da Grande SP nos anos 1970 e 1980
Entranhados no tecido urbano, os punks que transitavam pela região metropolitana de São Paulo entre fins de 1970 e os anos 1980 deixaram rastros. Documentos analisados pelo historiador João Neves traçam uma cartografia urbana que extrapola a materialidade dos mapas e incorpora elementos que vão da ancestralidade aos sentimentos. Sua tese de doutorado, “Ruídos na Metrópole Fragmentada: Performances Punks, Ressentimentos & Revoltas em Terras Tupiniquins”, evidencia a diversidade política e o intercâmbio entre jovens de classes socioeconômicas distintas. Além disso, refuta estudos que reduzem a identidade e atuação do movimento às periferias. Neves elabora, também, o conceito de “ressentimento em revolta” para traduzir o conjunto de pulsões experimentadas por aqueles jovens, que se cruzavam em encontros não raro conflituosos.
Integrada ao Programa de Pós-Graduação em História e ao Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade (Ciec) da Unicamp, a pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “É preciso um olhar interdisciplinar para entender o urbano, que corresponde a 80% do modo de vida das pessoas no Brasil. Sozinhos, o urbanismo, a história e a antropologia não dão conta disso. A tese do João, nesse sentido, é um lugar de encontro”, avalia a professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) Josianne Cerasoli, coordenadora do Ciec e orientadora do doutorado de Neves.
Para mapear as dimensões urbana, sensível, artística e política do movimento, o autor se fundamenta nos conceitos de “paixões políticas”, de Pierre Ansart, e de “errâncias urbanas”, de Paola Berenstein, além de lançar mão das obras de José Miguel Wisnik e Marcos Napolitano sobre música e história. Seu trabalho foi desenvolvido com base na análise de centenas de documentos, como fanzines, jornais, revistas, panfle- tos, pôsteres e cartas da Coleção Movimento Punk da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC- SP) – um acervo organizado por Antônio Carlos de Oliveira, ex-integrante do movimento punk. Ofícios protocolados na Divisão de Censura de Diversões Públicas e, claro, discos e fitas cassetes produzidos na época também foram consultados.
Já a (est)ética punk do “faça você mesmo” não só norteou a elaboração do trabalho como também possibilitoua circulação dele. Além da tese, permeada por uma série de QR codes que conduzem a materiais complementares para ver e ouvir, Neves criou um fanzine e construiu um acervo digital no qual está disponibilizado todo o material que consultou. Em sua escrita, o pesquisador abre mão do estilo acadêmico para permitir a liberdade de percurso de leitura, assumindo a errância como estilo e método. Inspirado na matriz contestatória do movimento, revela, por fim, seu passado punk e sua ancestralidade indígena e transfronteiriça (Paraguai-Brasil). Com isso, Neves mostra, segundo sua orientadora, que “não há história sem corpo que possa estar fora das paixões. Tudo o que está ali dialoga com sua existência”.
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Diálogos, debates e embates
A pesquisa evidencia um período profícuo nas vivências punks, cuja origem complexa contradiz teorias sobre sua natureza essencialmente periférica. “O punk, aqui, foi fruto de um diálogo do suburbano com as galerias, os arranha-céus, o mainstream e a indústria cultural”, aponta Neves.
Partindo de uma leitura interseccional, o autor destaca a influência das relações interclasses estabelecidas na produção da música, dos eventos e de registros musicais que atravessaram fronteiras. Suas trocas se davam em uma metrópole fragmentada e cercada por muros, envolvendo moradores oriundos dos mais diferentes cantos, de Santo André a Pirituba, do Capão Redondo à Freguesia do Ó, passando pelo Centro. Além de discos, shows, festivais e fanzines, esses encontros também potencializavam o surgimento de tensões. “O punk é conflito”, defende o historiador.
Um dos pilares fundamentais da ética punk, a circulação de sua arte e de sua mensagem impulsionava a produção e difusão de fanzines e a gravação de coletâneas musicais em fita cassete. O intercâmbio cultural, derivado da intensa circulação desse material, espalhou sua música pelos Estados Unidos e países nórdicos, entre os quais a Finlândia. Assim nasceu uma admiração mútua entre os punks finlandeses e os paulistanos. “Para eles, o punk daqui era uma referência, pois vinha de um país periférico. Já os daqui acreditavam que o verdadeiro punk era o finlandês, porque [os finlandeses] cantavam de forma gutural e conseguiam uma harmonização com a guitarra que [os brasileiros] não conseguiam reproduzir.”
No que diz respeito à questão racial, a leitura interseccional de Neves revela semelhanças entre o movimento e o rock’n’roll. “Houve um embranquecimento também da narrativa do punk”, revela o historiador. Apesar disso, o racismo era um tema presente em seus debates. “Havia um diálogo, evidenciado nas composições de jovens brancos que cantavam sobre a experiência de vida do jovem negro na metrópole”, observa. Também pouco valorizada, a participação das mulheres no movimento recebeu destaque na tese do pesquisador. “A pauta feminista problematizava sua presença no espaço urbano. A potencialidade com que [as mulheres] se colocavam dentro daquele universo é evidente.”
Atores políticos
Encarados como ameaça tanto pela mídia como pelos órgãos de controle e repressão – encabeçados pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops) –, os adeptos do movimento passaram a ser recebidos invariavelmente com violência. Em notícias publicadas na época, é possível perceber “as heranças coloniais nos modernos aparelhos de repressão e seu aperfeiçoamento no decorrer dos tempos militares”, analisa Neves.
No campo político, a pesquisa revela uma complexa movimentação que se opõe ao estereótipo do punk desinteressado. Fragmentados em subgrupos forjados por afinidades ideológicas, o tema estava presente nas discussões travadas à época. Alguns participaram de greves no ABC e se ligaram ao PT (Partido dos Trabalhadores), que então surgia. Outra parcela se vinculou ao movimento anarquista, enquanto outros se definiam como niilistas.
Na outra ponta do espectro ideológico, a identificação com o nacionalismo conservador aproximou os punks carecas dos partidos derivados da Arena (Aliança Renovadora Nacional), fundada um ano após o golpe de 1964 para dar sustentação política à ditadura. Para essa parcela, o desemprego, o arrocho salarial e a insatisfação com a migração de nordestinos traduziram-se em uma postura xenófoba.
Dinâmicas plurais
A conturbação política, o agravamento da miserabilidade e os embates violentos com a polícia e com grupos rivais moldavam dinâmicas plurais interpostas a realidades opressivas. Assim, o movimento punk se tornou um meio no qual essas pessoas podiam extravasar suas pulsões de vida e morte – condensadas no que Neves definiu como “ressentimentos em revolta”. “São sensibilidades pendulares que condensam todas as outras pulsões, formando a dimensão mais urgente do punk”, explica.
Embasado nos trabalhos de Pierre Ansart e de Michèle Ansart-Dourien sobre a dimensão afetiva e emocional dos fatos históricos, o autor descreve um entrelaçamento entre essas duas sensações e também uma ambivalência intrínseca. “Quando se fala em ressentimento, fala-se em revolta. O sujeito, quando olha para sua revolta, depara-se com o ressentimento.”
Embora sua pesquisa revele que um elemento não existiria sem o outro, o autor nota que o papel do ressentimento no punk ainda não havia sido destacado na bibliografia que trata do movimento. “Sua expressão poderia ser herança de um passado imemorial e de um processo de colonização violento”, diz, sugerindo um elo entre as vivências punk e indígena no mesmo território, separadas por quatro séculos. Assim como os povos originários, os punks paulistas, além do hábito de andar em grupos, ficaram conhecidos por sua arte, sua indumentária e suas disputas territoriais – e ambos deixaram rastros.