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Pela primeira vez, cerâmicas indígenas da região são analisadas no acelerador de partículas

Artefatos indígenas encontrados na região de Campinas pelo húngaro Desidério Aytai; em primeiro plano, ficha com anotações feitas pelo engenheiro
Artefatos indígenas encontrados na região de Campinas pelo húngaro Desidério Aytai; em primeiro plano, ficha com anotações feitas pelo engenheiro (Foto: Felipe Bezerra)

Um estudo inédito, realizado pela Unicamp, em parceria com o Museu da Cidade de Campinas e o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), utiliza pela primeira vez essa radiação para analisar fragmentos de cerâmica indígena e os elementos que os compõem, levantando novas questões e novos desafios para a Arqueologia. “É muito simbólico que materiais tão antigos da história da cidade sejam analisados pelo acelerador de partículas Sirius, a tecnologia mais moderna de Campinas. É o futuro abraçando o passado.” As palavras breves da paleontóloga Flavia Callefo, do LNLS, dão a dimensão do trabalho.

A pesquisa é coordenada pelos professores Pedro Paulo Funari e Filipe Noé da Silva, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, e partiu da iniciativa de Sofia Rodrigues, à época estudante do curso de História e estagiária do Museu da Cidade. No Sirius, o projeto tem a participação de Callefo, integrante da equipe científica da linha de luz Carnaúba, estação experimental onde os testes foram realizados.

O estudo compreendeu a análise de quatro fragmentos de peças de cerâmica indígena Tupi-Guarani pré-históricas, anteriores, portanto, à colonização portuguesa. Os artefatos foram encontrados nos anos 1960 por Desidério Aytai, engenheiro húngaro radicado no Brasil, que se dedicou ao estudo antropológico e arqueológico dos povos indígenas que habitavam a região de Campinas (leia texto abaixo). Hoje, os fragmentos compõem os acervos do Museu da Cidade de Campinas e do Museu Municipal Elisabeth Aytai, localizado em Monte Mor.

Em busca de origens

As peças de cerâmica são objetos tradicionais de estudo na Arqueologia pois conservam suas características originais por longos períodos. Com a análise realizada por meio da luz síncrotron, foi possível identificar elementos químicos que as compõem e os pigmentos utilizados em sua confecção. “A grande originalidade é podermos fazer uma análise técnica de micropartículas dos objetos e determinar as origens desses materiais”, explica Funari.

Batizadas com nomes da fauna e flora brasileiras, as linhas de luz são as estações de pesquisa. A Carnaúba (Coherent X-ray Nanoprobe Beamline) é a mais longa delas, possuindo aproximadamente 145 metros de distância entre a fonte de luz e o ambiente onde são realizados os experimentos − foi a utilizada para a análise dos fragmentos de cerâmica. No experimento, o feixe de luz que incide sobre as amostras abrange áreas muito pequenas, no caso das cerâmicas, de 250 por 250 micrômetros, unidade que equivale à milésima parte do milímetro. Os exames foram feitos em sequência, gerando imagens que indicam os elementos químicos presentes nas áreas selecionadas.

Para além do ferro e outros metais — como manganês, cromo e titânio — encontrados nas amostras, alguns elementos chamaram a atenção dos pesquisadores. Foram identificados traços de rubídio, metal alcalino incomum em cerâmicas, além da presença de cálcio, existente em fragmentos de ossos e conchas. Esses fatores evidenciam a necessidade de que as análises continuem, agora, comparando a composição das amostras com o solo onde elas teriam sido encontradas, considerando os registros deixados por Desidério Aytai. “Queremos fazer a mesma análise com os pigmentos”, detalha Funari.

Segundo os pesquisadores, várias hipóteses podem aparecer ao se fazer esse tipo de paralelo. A presença de cálcio, por exemplo, pode indicar que o material teria sido extraído de sambaquis — depósitos de conchas e material orgânico feitos por índigenas —, que são importantes sítios arqueológicos localizados em regiões litorâneas. Isso seria um indício de que havia indígenas de passagem pela região, possibilidade reforçada pela proximidade da área com o antigo Caminho do Peabiru, trilha que ligava o atual litoral paulista à região de Cusco, no Peru.

A equipe também pretende estabelecer relações entre as amostras encontradas em Campinas com as achadas em Monte Mor. “Queremos identificar as diferenças e o que permanece igual na história da região, comparando as cerâmicas encontradas a uma distância de cerca de 30 a 40 quilômetros”, comenta Rodrigues. Noções sobre como eram as práticas de manufatura dos indígenas e o processo de cozimento das peças de cerâmica podem ser obtidas comparando a camada externa com a porção interior dos fragmentos.

Detalhe de cerâmica analisada no acelerador de partículas Sirius
Detalhe de cerâmica analisada no acelerador de partículas Sirius (Foto: Felipe Bezerra)

Arqueologia que une

Foi durante o estágio de Rodrigues no Museu da Cidade de Campinas que surgiu a ideia de levar a Arqueologia para o Sirius. A jovem conheceu essa possibilidade de aplicação da luz síncrotron durante uma visita ao LNLS e concluiu que classificar as peças do acervo do museu cumpriria a demanda do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de garantir a difusão dos acervos.

“Pensei em uma forma de promover a difusão dessas peças e, ao mesmo tempo, inseri-las em uma narrativa histórica. Dessa forma, entenderíamos os grupos que as produziram”, conta Rodrigues. A iniciativa resultou em um trabalho no qual a interdisciplinaridade exerce um papel fundamental, servindo não apenas para agregar conhecimentos entre diferentes áreas, como a História, a Física e a Geologia, mas também para dar conta de novas questões que, até então, a Arqueologia, por si só, não havia conseguido responder. “Quem pode analisar essas novas informações não somos nós, que temos um conhecimento das Ciências Humanas. O trabalho da Arqueologia, em sua essência, implica juntar pessoas de áreas diferentes para analisar uma mesma coisa”, pontua Funari.

Além do conhecimento histórico obtido com o estudo, o projeto também dá visibilidade à história dos povos indígenas que habitavam a região, missão na qual a Arqueologia cumpre um papel decisivo. “Não raro, em muitos livros de História, os povos indígenas ainda aparecem como apêndices da história dos colonizadores europeus”, ressalta Silva, destacando a importância dessa abordagem na formação de novos historiadores e arqueólogos. “À medida que conhecemos os objetos que eles produziam e caracterizamos sua cultura material, podemos lançar luz sobre uma história que foi deixada no escuro por séculos.”

Pesquisa é inédita no país

Os professores Pedro Paulo Funari e Felipe Noé da Silva e a historiadora Sofia Rodrigues
Os professores Pedro Paulo Funari e Felipe Noé da Silva e a historiadora Sofia Rodrigues  (Fotos: Felipe Bezerra)

O uso da luz síncrotron em análises arqueológicas ainda é uma novidade no Brasil, embora experiências similares já ocorram em outros países com estudos de objetos que vão de fósseis a obras de arte. A tecnologia funciona como um grande microscópio, de altíssima precisão, permitindo a análise da estrutura interna de materiais em níveis subatômicos, revelando aspectos importantes do arranjo e comportamento das partículas que compõem as coisas que conhecemos.

“A luz síncrotron tem maior sensibilidade, nos dá informações referentes a componentes em nível traço. Com ela, temos uma resolução espacial e espectral muito maior. Em obras de arte, por exemplo, é possível ver o que o artista pintou primeiro na tela e depois apagou. São detalhes muito sutis”, exemplifica Callefo.

Para a realização do estudo, foram aplicadas duas técnicas de análise: a fluorescência de raios X, que possibilita a realização de mapeamentos elementares, ou seja, o desenho de quais elementos químicos compõem uma área da amostra e como eles se distribuem nela; e a absorção de raios X, que indica a especiação química dos elementos, o que corresponde às formas físico-químicas com que um determinado componente se apresenta. “Por exemplo, é possível encontrar ferro no pigmento das cerâmicas, mas que tipo de ferro é esse? A análise pela absorção de raios X nos dá essa informação e isso pode nos ajudar a ter pistas sobre a origem e a modificação dos componentes originais”, explica.

A identificação dos elementos ocorre graças à interação entre a luz síncrotron e os elétrons presentes nos elementos. Quando o feixe de luz incide sobre a amostra, a radiação excita os elementos, fazendo com que os elétrons presentes nas camadas mais internas dos átomos saltem para camadas mais externas. O processo de trânsito entre as camadas provoca a liberação de energia na forma de fluorescência. O mapeamento é possível, então, conforme ocorre a varredura da área a ser analisada, com a liberação da energia correspondente a elementos distintos na amostra e a identificação deles pelo sistema. “No fim, conseguimos um mapa elemental geral da área”, sintetiza Callefo.

O estudo das cerâmicas indígenas é a primeira pesquisa da área de humanidades realizada no Sirius. Flavia comenta que o projeto abre uma via importante para que outras iniciativas do tipo cheguem ao LNLS. Segundo a paleontóloga, além dos resultados de alta precisão, o uso de recursos como a Linha de Luz Carnaúba permite que várias análises sejam feitas ao mesmo tempo. “Enquanto uma fluorescência de raios X é feita em determinada área da amostra, posso mudar os controles da linha para fazer a absorção de raios X nessa mesma região. É algo que otimiza o uso da tecnologia e re- duz os erros espaciais que, porventura, possam surgir quando fazemos isso em etapas diferentes.”


O HOMEM QUE CRIAVA MUSEUS

Desidério e Elisabeth Aytai (acima e em trabalho de campo na imagem abaixo, à direita): parceria nas pesquisas
Desidério e Elisabeth Aytai: parceria nas pesquisas (Foto: Reprodução)

Quais as chances de um engenheiro húngaro ser o responsável por vários estudos sobre a musicalidade dos povos Xavante e Nambiquara e pela formação de um expressivo acervo arqueológico da pré-história do país? Esse foi o destino de Desidério Aytai, personagem que transformou o gosto pela Antropologia Cultural em conhecimento e criou museus que, hoje, contam a história de Campinas e região.

Aytai nasceu em Budapeste, na Hungria, em 1905, e se formou em Engenharia Mecânica pela Real Universidade Húngara. Ao final da Segunda Guerra Mundial, deixou o país, migrando, inicialmente, para os Estados Unidos, França e Itália, período em que atuou em grandes museus, como os da Smithsonian Institution e do Vaticano, até chegar ao Brasil, em 1948.

Aqui, consolidou sua carreira como antropólogo. Foi professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e responsável pela criação do Museu Histórico Municipal de Paulínia. Participou, ainda, da implantação do Museu Universitário da PUC-Campinas e do Museu Municipal Elisabeth Aytai, que leva o nome de sua esposa, também pesquisadora e responsável, por exemplo, pelo encontro de uma urna funerária indígena com idade estimada de cerca de 800 anos.

A descrição dos ritos e costumes dos povos indígenas do Brasil foi o grande foco de seu trabalho. Entre os anos 1960 e 1970, participou de expedições no Centro-Oeste e Norte do país e pôde conhecer práticas culturais dos povos Xavantes, Bororos, Parecis, Karajás e Nambiquaras, com destaque para a etnomusicologia indígena. Em diversas publicações e gravações, Aytai registrou cantos, sons e o uso de instrumentos feitos pelos Xavantes e Nambiquaras.

Desidério e Elisabeth Aytai: parceria nas pesquisas
Desidério e Elisabeth Aytai em trabalho de campo (Foto: Reprodução)

Na região de Campinas, reuniu cerâmicas, cocares e outros itens da cultura indígena local, acervo do qual fazem parte os fragmentos analisados no Sirius. Cada peça era registrada em fichas, com uma breve descrição física, um esboço do item, local e data em que foi encontrada. Assim como os artefatos, os registros também compõem os acervos dos museus.

Desidério Aytai morreu em 1998, aos 93 anos, deixando um legado valioso de artefatos e registros da cultura indígena que, hoje, são a base para a formação de novos desbravadores de nossa história.

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