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Ailton Krenak, filósofo e ativista, analisa transtorno ambiental e reivindica o agora como o momento de agir

Ailton Krenak é aplaudido depois de conferência realizada na Unicamp no início de março; abaixo, o intelectual em sequência de fotos feitas durante a entrevista
Ailton Krenak é aplaudido depois de conferência realizada na Unicamp no início de março; abaixo, o intelectual em sequência de fotos feitas durante a entrevista

O ativista e intelectual Ailton Krenak reivindica o agora como o momento de ação para salvar a vida do planeta. “A gente não tem um parâmetro sobre o que pode movimentar como mercadoria e o que precisa ser preservado como patrimônio natural, como bem comum”, afirma um dos maiores protagonistas do atual debate sobre as mudanças climáticas, a sobrevivência da vida na Terra e os direitos dos povos originários. Crítico da maneira como os seres humanos se descolaram de todas as outras formas de vida, Krenak prevê que os eventos extremos do clima resultarão na criação de um novo modo de habitar as cidades. Ele esteve no começo deste mês na Universidade para uma conferência e concedeu entrevista ao Jornal da Unicamp e à TV Unicamp.

A partir de eventos locais, regionais e internacionais, como a queda e o corte de árvores de parques públicos em Campinas, o deslizamento na Serra do Mar e o terremoto na Turquia e na Síria, o filósofo provoca a reflexão sobre a inviabilidade das nossas cidades e a grave situação, enfrentada hoje, de transtorno ambiental. “Se você vai viver ao seu gosto, vai ter que aguentar as intempéries depois”, alerta.

Ainda comenta sobre a tensão política entre a pauta econômica e a pauta socioambiental, criticando planos como o da bioeconomia na Amazônia, em sua visão uma possível forma de “recolonização” da região. Krenak também discorre sobre a geração de yuppies, donos das grandes corporações de tecnologia, que foram “bitolados e acelerados para ter sucesso” e tornaram-se os donos do mundo. “Ainda bem que nem todos conseguiram [ter sucesso]. Se todos tivessem conseguido, a gente estava frito”, diz ele.

Confira, abaixo, trechos da entrevista.

Eventos extremos

Essa situação local, em que as árvores começam a tombar e de repente a prefeitura decide que “ah, é só fazer a poda das árvores que o problema está resolvido”, está sendo naturalizada como quase todos os outros eventos, [entre os quais] um terremoto na Turquia, o desmoronamento na Serra do Mar. Mas o que ficou bem demonstrado é que as nossas cidades, o jeito de habitar as nossas cidades, as metrópoles, são cada vez mais instáveis. Uma hora é um prédio caindo, outra hora são as árvores caindo. E nós achamos que podemos resolver isso e continuar ignorando que estamos vivendo dentro de uma experiência em que as chuvas e as situações extremas ligadas ao clima vão nos obrigar a repensar como habitar, como morar.

Quando a gente consegue atinar com o pensamento sistêmico, o fato de uma árvore despencar sobre automóveis e sobre as pessoas nas chuvas, o que é explicado com uma platitude – “as árvores estão velhas” –, [mostra] que estamos vivendo mesmo uma situação de transtorno ambiental. O tempo inteiro a gente deveria estar prevendo novas formas de nos adequar. Se não, a gente vai continuar tendo surpresas, que vão desde cair uma parte da Serra do Mar em cima de São Sebastião até cair árvores aqui em cima de uma casa, de uma via pública, e matar pessoas. A gente não pode naturalizar isso e dizer que não tem mudança climática.

Cidades inviáveis

Eu penso que a gente não pode fazer uma transferência de um modo de viver sustentável, de habitar a Terra com cuidado, se reproduzir para outro ambiente onde o descuido já está presente. As nossas cidades são inviáveis. E nós não queremos pensar nisso. A gente quer deixá-las continuar existindo e se expandindo. Primeiro é uma cidade, depois vira o entorno da cidade, depois vira uma área contígua. Daqui a pouco, São Paulo e Campinas vão ser uma megalópole. E o que nós estamos fazendo para isso não acontecer?

Eu me lembro que uma das coisas que mais me impactou foi uma vez em que eu fui de carro de Washington para a Pensilvânia. Eu falei: “Ué, mas essa cidade não acaba nunca? A gente entrou no meio de uma cidade que nunca acaba?”. O tempo inteiro aquela coisa urbana. Para mim, foi uma claustrofobia. E eu tenho muita dificuldade de viver em um mundo de concreto. E as nossas cidades estão produzindo o mundo de concreto, onde as árvores não têm mais lugar.

Quando eu falo do modo de habitar dos Guaranis que estão ali na Serra do Mar, nesse bioma da Mata Atlântica que os Guaranis chamam de Nhe’ery, a compreensão daquele ecossistema em si, [esse] é o lugar que produz oxigênio, umidade, floresta. Quando você começar a erguer prédios ali dentro, você vai começar a criar confusão. Não adianta botar culpa no prédio. Somos nós que escolhemos: ou habitamos um lugar saudável ou criamos ambientes artificiais para a gente continuar imune. Sem chuva, sem perturbação… um ambiente controlado. Isso são as nossas cidades. Viver na cidade é isso. Quase que é um contraponto entre viver ao gosto da natureza e querer viver ao seu gosto. Se você vai viver ao seu gosto, vai ter que aguentar as intempéries depois.

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Água enquanto recurso

Há um tempo, nós passamos a observar a água como recurso. Os nossos avós, os nossos antepassados, e não precisa ir muito longe, o seu bisavô ou seu avô, o meu, eles não imaginavam que o rio era um recurso. Eles entendiam o rio como um organismo. Ele tem dinâmica, ele tem enchente, ele tem vazante. Aí, eles descobriram que poderiam fazer barragens para controlar a dinâmica das águas. Depois, descobriram que poderiam explorar essa dinâmica, desde fazer hidrelétricas, [até] outros usos. Ultimamente, [tem havido] um uso intensivo na atividade industrial e na atividade da agricultura, tam- bém comercial.

Se nós estamos precisando dos rios e do uso da água de uma maneira intensiva, vai chegar uma hora em que a água vai acabar de ser um bem disponível comum para nós todos e vai passar a ser uma commodity, vai passar a ser uma coisa privada. Eu já participei de um movimento, há mais de 20 anos, contra a privatização da água. Mas é uma tendência e de vez em quando volta. Eu me lembro que, no governo passado, houve uma movimentação da Coca-Cola, da Nestlé e de outras corporações para conseguir se apropriar do Aquífero Guarani, um dos últimos reservatórios de água significativos que ainda não estava sendo apropriado. No meio do caminho, eu fiquei sabendo que estão fazendo retirada de água do Aquífero de maneira clandestina, construindo poços artesianos. Já estão contaminando a água do Aquífero.

Quer dizer, nós estamos contaminando as águas de superfície, as águas dos córregos, de nascentes. Muitas nascentes já desapareceram. Além da violência de tapar os córregos e tapar as águas no perímetro urbano, porque os rios estão todos debaixo da pista, nós também estamos atacando agora as águas subterrâneas. Isso é muito grave. Quer dizer, a gente não tem limite.

A gente não tem um parâmetro sobre o que nós po- demos movimentar como mercadoria e o que precisa ser preservado como patrimônio natural, um bem comum. A própria ideia de bem comum está cada vez mais esmaecida porque a ideia proprietária e particular de tudo pega as águas, o solo, os espaços todos e vai reduzindo muito o nosso próprio contato com aquilo que a gente chamava de natureza. Agora, a gente está produzindo uma outra natureza, impregnada da nossa própria enge- nharia, da nossa mexida na Terra.

Ideologia da mercadoria

Quem tem menos de 50 anos passou por uma experiência formativa, seja na escola pública ou na escola privada, para instituir uma personalidade do indivíduo e se equipar com conhecimento para competir. Ali pelos anos 1990, todo jovem que estava saindo das universidades era estimulado a concorrer e a subir no pódio. Ficar lá em cima. Tinha, inclusive, a produção daqueles yuppies – jovens de 30 anos que ficaram ricos. É dessa turma que vieram esses donos do Facebook. É dessa turma que vieram esses caras tipo o dono da Tesla.

Esses caras foram bitolados e acelerados para ter sucesso. Alguns conseguiram se sobressair e são donos do mundo. Mas a grande maioria deles só ficou com a ideologia da mercadoria. São eles que vendem planos de vida, planos de seguro, planos de tudo. Mas, se [todos] eles tivessem sido bem-sucedidos, eles nem estavam vendendo isso; eles estariam vendendo o planeta. Ain- da bem que nem todos conseguiram. Se todos tivessem conseguido, a gente estava frito.

Se isso foi ensinado, se isso foi objeto de treino por três gerações de pessoas para que pensassem desse jeito, imaginar uma manobra de saída do mundo da mercadoria, respirar e pensar: “Vou buscar outra maneira de me realizar”, seria apostar numa alternativa que ainda é muito residual, de pessoas que foram bem-sucedidas no mundo da mercadoria e, por isso, inclusive, criaram base financeira para sair dos grandes empregões em Washington, em outros países e lugares e ir morar na Serra da Mantiqueira.

Eu conheço um punhado. Outros que foram morar no litoral sul da Bahia, no Nordeste, na Amazônia, porque agora querem viver outro tipo de experiência que não a da mercadoria. Mas você está vendo que eles tiveram que se capitalizar para fazer isso? Eles continuam cumprindo aquilo que Conceição Evaristo falou. Eles também acham mais fácil acabar o mundo do que acabar com o capitalismo. Eles se beneficiam disso.

Público presente no Auditório da Faculdade de Ciências Médicas
Público presente no Auditório da Faculdade de Ciências Médicas

O ambiente e a economia

Parece que nós estamos, agora, dentro de um dilema, que é o de viabilizar a governança num sentido político e os compromissos que essa viabilidade implica na própria composição do governo. O presidente Lula [Luiz Inácio Lula da Silva] teve que fazer uma aliança de amplo espectro, na qual uma grande parte do apoio vem do setor econômico. E estão o tempo inteiro em negociação. A área econômica e a área social sempre negociando.

O trauma do último período político que a gente viveu é uma constante naquilo que a gente poderia imaginar como um equilíbrio entre os termos socioambiental e econômico. Essa disputa vai continuar o tempo inteiro. A gente saúda a experiência de [Lula] ter conseguido criar uma proposta alternativa ao passado recente, mas ela não é ideal, ela vai ter que conjugar os prejuízos com as soluções. É assim que eu estou vendo [a situação atual].

[O atual governo pretende], ao mesmo tempo, embalar uma narrativa de compromisso socioambiental e implementar os interesses econômicos, que são contraditórios com a proposta, por exemplo, de uma economia mais equilibrada, de baixo carbono. Se a ministra [do Meio Ambiente e Mudança do Clima] Marina Silva quer uma economia de baixo carbono, ela vai ter que convencer os colegas ministros dela que querem bombar o agronegócio. Ou os outros setores que querem que a mineração seja regulamentada. Nessa história de re- gulamentar a mineração, tem gente que quer, inclusive, regulamentar o garimpo. São coisas incompatíveis. Os rios estão poluídos com mercúrio. E o garimpo deveria ser banido da Amazônia.

O presidente disse que não vai ter garimpo em Terra Indígena, mas o garimpo em qualquer lugar deveria ser posto em questão. Não tinha que ter licenciamento para garimpo nenhum, pelo contrário, tinha que suspender as licenças, que já são muitas, para abrir novas frentes de garimpeiros da Amazônia. Isso já é uma contradição de cara, já está posta. E outras vão aparecer ao longo dos próximos anos. Vai ser um desafio muito grande para esse governo, composto de várias frentes, para que possa seguir até concluir o mandato com o mínimo de cumprimento das promessas feitas para eleger o governo.

Pensando o Brasil no contexto amplo da América Latina e global, o Brasil não tem opção. Ele é um país megadiverso. Ele tem muita água, tem muita floresta, muito território. E são todos acervos que vão sofrer assédio para virar mercadoria, para entrar no mercado. Eu já ouvi mais de um especialista dizendo que agora é hora de o Brasil se inserir com relevância no mercado de carbono, nos serviços ambientais.

A própria ministra Marina Silva diz que é favorável a pensar em um programa amplo para a Amazônia, [programa esse] que ela chama de bioeconomia. Articular tecnologia e investimento em uma espécie de nova colonização da Amazônia, com novos instrumentos. Quando você pensa em bioeconomia para desenvolver a Amazônia, você está propondo recolonizar a Amazônia. Será que daqui a 20 ou 30 anos a gente não vai ser julgado por isso?

Acesse entrevista com Ailton Krenak publicada no Youtube: 

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