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Pesquisa investiga se e como as escolas estão capacitando alunos a lidarem com a desinformação

O estudo concluiu que, embora os alunos se informem majoritariamente pelas redes sociais, eles dão mais credibilidade à mídia tradicional
O estudo concluiu que, embora os alunos se informem majoritariamente pelas redes sociais, eles dão mais credibilidade à mídia tradicional

Em 1802, o artista inglês James Gillray publicou uma caricatura satirizando a preocupação da época com os supostos efeitos colaterais da vacina contra a varíola. Na imagem, Edward Jenner, criador da tecnologia, inocula uma jovem amedrontada enquanto pessoas ao redor, já imunizadas, são acometidas pela erupção de figuras bovinas em seus corpos. Qualquer semelhança com quem diz que vacinados vão virar jacaré não é mera coincidência. A obra, inspirada nas teorias do médico Benjamin Moseley, um dos primeiros oponentes da vacinação na Inglaterra, mostra que o movimento antivacina é tão antigo quanto o próprio imunizante e levanta o questionamento: é possível superar a desinformação e o negacionismo científico?

Para o educador Cesar Gomes, a resposta é: sim. Pondera, entretanto, que as chamadas fake news estão quase vencendo a guerra porque “estamos brincando de combate à desinformação”. Professor de Português em uma escola estadual, Gomes defendeu recentemente sua dissertação sobre letramento midiático e informacional no programa de mestrado em Divulgação Científica e Cultural do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Na pesquisa, voltada à análise da desinformação sobre vacinas nas escolas, ele conclui que o enfrentamento do problema não pode se restringir a refutar mentiras, devendo iniciar-se com a educação midiática na sala de aula.

De forma geral, a educação midiática visa capacitar estudantes a lidarem com os diversos tipos de mídia, o que inclui a habilidade de analisar criticamente o conteúdo que recebem e de construir conhecimento, criando seus próprios produtos midiáticos. “O problema é complexo e não existe uma ‘bala de prata’, mas a educação midiática é um dos fatores que vão ajudar, no longo prazo, a superarmos o fenômeno da desinformação. Temos que começar a investir hoje no aluno que vai se formar daqui a cinco anos, ou continuaremos ‘enxugando gelo’”, destaca Gomes, que também é coordenador de Educomunicação na Secretaria Municipal de Educação de Valinhos.

Para chegar a essa conclusão, o autor investigou se e como alunos e professores de ensino médio estão enfrentando a desinformação e se e como os alunos estão sendo preparados para a leitura crítica de mídia. Por meio de testes objetivos, estudantes de duas escolas de Campinas – uma pública e outra privada – avaliaram informações sobre vacinas e temas correlatos, respondendo se elas eram “verdadeiras”, “insustentáveis”, “imprecisas”, “impostoras”, “sátiras”, “falsas” ou “patrocinadas”. Além disso, foram realizadas entrevistas com alguns alunos e professores participantes da pesquisa, visando compreender melhor a realidade das escolas avaliadas.

O estudo revelou que, embora os adolescentes se informem, majoritariamente, por redes sociais – 56% dos alunos da pública por WhatsApp e 40% dos estudantes da escola privada por Twitter –, eles dão mais credibilidade à mídia tradicional. Por outro lado, há maior probabilidade de eles acreditarem em mentiras publicadas em mídias alternativas, como blogs apócrifos, quando essas se apresentam no formato de notícia. Além disso, 75% não foram capazes de identificar quando a “notícia” era conteúdo patrocinado – ainda que essa informação estivesse sinalizada no texto. “Isso é muito sério porque todos esses youtubers são patrocinados, por exemplo. Se você não tiver a referência de que quem paga a banda e escolhe a música, você vai acreditar sem questionar”, ressalta.

O educador Cesar Gomes, autor da dissertação: “Temos que começar a investir hoje no aluno que vai se formar daqui a cinco anos”
O educador Cesar Gomes, autor da dissertação: “Temos que começar a investir hoje no aluno que vai se formar daqui a cinco anos”

Proposta para o futuro

O interesse de Gomes pelo tema surgiu em 2016, quando um aluno o questionou sobre uma fake news acerca da ex-presidenta Dilma Rousseff. Inicialmente, sua intenção era abordar as eleições presidenciais na sua pesquisa de mestrado. O fato de o educador ter substituído esse tópico pela questão da vacina acabou ganhando uma carga irônica. Quando o pesquisador foi aprovado no programa de mestrado, Jair Bolsonaro havia acabado de ser eleito presidente, a polarização ideológica estava acirrada e vários colegas do meio universitário vinham sendo perseguidos por conta de suas pesquisas. Com isso, ele decidiu evitar a clivagem ideológica.

Naquela época, o Datasus (Departamento de Infor- mática do Sistema Único de Saúde) apontou uma queda de 50% nos índices de vacinação contra a gripe e a febre amarela no país. Ainda assim, as teorias antivax permaneciam um tema de nicho, o que levou o mestrando a acreditar que esse seria um assunto “tranquilo”. “Já existia o negacionismo sobre vacinas, mas ele se acentuou quando líderes de direita trouxeram a pauta para a institucionalidade. Tanto que, quando eu comecei, quase não havia material para usar nos testes e eu precisei acrescentar perguntas sobre o SUS [Sistema Único de Saúde]. No fim das contas, acabei no olho do furacão. A vacinação se tornou o centro do problema.”

A desinformação sobre a vacina converteu-se em um tema complexo no Brasil, não só por conta da postura do governo federal à época, mas também porque os professores não receberam orientações sobre como lidar com o problema. As escolas – especialmente as públicas – não possuem projetos específicos sobre desinformação ou educação midiática, as disciplinas do “Itinerário Formativo” proposto pelo Novo Ensino Médio não encontram professores para direcioná-las e matérias tradicionais perderam carga horária. No caso das escolas analisadas, havia um projeto sobre vacina na instituição privada, mas o tema da desinformação somente foi abordado por indicação constante do material didático ou por iniciativa dos professores.

A jornalista Graça Caldas, orientadora do estudo: projetos voltados à educação midiática têm apresentado bons resultados
A jornalista Graça Caldas, orientadora do estudo: projetos voltados à educação midiática têm apresentado bons resultados

Por isso, uma das propostas de Gomes é que universidades criem espaços para professores e comunicadores se especializarem em educação midiática e se prepararem para atuar em disciplinas específicas sobre o tema, algo já preconizado pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). De acordo com a orientadora do mestrado, Graça Caldas, projetos voltados à educação midiática têm apresentado bons resultados na formação dos alunos, como é o caso do Educom, criado em 2005 na cidade de São Paulo. “Foi muito interessante porque estudantes que faziam jornal e atuavam como repórteres melhoravam muito o desempenho em outros conteúdos, porque eles se tornavam pessoas mais críticas e proativas”, revela a pesquisadora, que também é jornalista.

O atual governo federal teve a iniciativa de criar a Secretaria de Políticas Digitais, que deve contar com um departamento de educação midiática. Gomes e Caldas consideram a iniciativa um avanço, mas alertam que é preciso estar atento à importância da disciplina para que o setor não foque apenas o combate à desinformação. “Nós, que estamos na universidade e temos alguma voz e espaço na mídia, precisamos colocar isso em pauta. Para que a educação midiática siga esse caminho de criar uma linha de formação para professores e de colocar o tema na grade [curricular] das escolas”, finaliza Gomes.

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