Ex-alunos falam sobre o legado, a trajetória e a dedicação de uma vida do professor Marcos Müller ao pensamento hegeliano
“Continuar a pensar é a forma de resistência que por enquanto nos resta”: essa foi uma das reflexões escritas pelo professor Marcos Müller a um orientando de pós–doutorado. Era maio de 2020, período de rápida expansão da covid-19 no Brasil, à qual se somava o “pandemônio político”, como definiu no mesmo email o docente, cujos alunos admiravam-se com as reflexões escritas nas correspondências.
Quatro meses depois, Marcos, um dos primeiros professores do Departamento de Filosofia da Unicamp, viria a falecer repentinamente. Referência nos estudos de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, ele se dedicou por cerca de três décadas à tradução de Linhas fundamentais da filosofia do direito, uma das obras mais consagradas do filósofo e lançada neste ano. O rigor e a dedicação intelectual aos estudos filosóficos, além da personalidade gentil, são lembrados com carinho por ex-alunos e pela companheira.
Nascido em 1943 em Porto Alegre (RS), Marcos Müller ingressou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1961, aos 18 anos. Cursou Filosofia por vontade própria e Direito a pedido do pai e graduou-se com louvor em ambos os cursos em 1965. Chamou atenção de professores e estava prestes a iniciar sua carreira acadêmica na universidade, quando o golpe instaurou a ditadura militar no país e as portas acadêmicas foram fechadas para ele.
“Ele fazia trabalhos de base com um movimento católico, com uma perspectiva socialista da Teologia da Libertação. Sabiam que ele estava envolvido e bloquearam o acesso à universidade”, conta o professor de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB) Fábio Nolasco, ex-aluno e amigo de Marcos.
Com o cerco dos militares, o jovem recém-formado foi para a Alemanha, onde prosseguiu com os estudos em Filosofia. Aprofundou-se em Jean-Paul Sartre, He- gel, Karl Marx e outros nomes da filosofia clássica francesa e alemã, bagagem que levou à Unicamp, onde começou a lecionar em 1978. “Ele participou ativamente da inauguração do Departamento de Filosofia, formou muita gente e sem dúvida foi uma espinha dorsal do departamento por 40 anos”, diz Nolasco.
Foi na Alemanha, onde morou por 12 anos, que Marcos conheceu Jeanne Marie Gagnebin, com quem se casou [apenas em 2019] e teve duas filhas, Rafaela e Cristina. “[Nos conhecemos] Não tanto em cursos sobre Hegel, mas muito mais em concertos com obras de Bach ou de Mahler. Marcos amava a música e me convidou a escutar com ele”, conta Jeanne, que é suíça, também filósofa e professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. (Leia a íntegra do depoimento de Jeanne Marie Gagnebin na página 8).
A música, que aproximou o casal, esteve presente desde a infância de Marcos. Ele chegou a vencer uma competição nacional de piano e, como prêmio, foi ao Rio de Janeiro gravar o “Adágio da Sonata nº 17” de Beethoven na Rádio Nacional. Até o fim da vida, o docente ia com frequência assistir aos concertos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Por ter tido uma per- da de audição repentina e total de um ouvido em 1982, lembra Nolasco, comprou um lugar cativo onde podia posicionar o ouvido saudável para o lado do palco, já que não queria perder o hábito de ir a concertos.
O retorno ao Brasil
De volta ao Brasil, Marcos aprofundou os estudos que vinha realizando na Alemanha. Rapidamente conquistou a admiração dos alunos, que destacam a qualidade das aulas, meticulosamente preparadas e escritas a lápis em uma folha. Nolasco começou a frequentar os cursos de Marcos ainda na graduação e, admirado pela didática do professor, fez cinco disciplinas com ele nesse período. “Apesar de dar aulas para os ingressantes, ele não as facilitava, ele não rebaixava o nível. Não tinha a crença de que para ser didático precisa simplificar. A didática constituía justamente em mostrar as complexidades”, avalia.
Ele relata que mais tarde, em 2016, descobriu outra paixão à qual o professor se dedicava: o tai chi chuan, que Marcos começou a praticar na década de 1970, ainda em Berlim, e depois no Brasil, tendo sido aluno do primeiro mestre da prática no Brasil: Liu Pai Lin. O filósofo praticava no quintal de casa, ao raiar do sol. Quando se mudou para um apartamento e ficou sem o espaço adequado, Nolasco deu a sugestão de ele praticar num bosque.
“Marcos disse que não queria ir sozinho e eu me comprometi a ir junto. Ele fazia os movimentos e eu ia copiando. Nós fizemos isso durante um ano e meio. Duas vezes por semana a gente se encontrava às 7h30 no Bosque dos Italianos [no bairro Guanabara, em Campinas]. Era uma coisa mágica, o cuidado com os movimentos é lindo.”
Para Nolasco, a prática ajudou na saúde de Marcos, que vinha adiando uma cirurgia cardíaca, realizada finalmente em 2017. Além disso, o tai chi chuan também tem relação com a dedicação do professor à filosofia chinesa, zen-budista e japonesa, que fez com que ele consolidasse um grupo de estudos na área.
As generosas orientações
Após a cirurgia cardíaca, de recuperação delicada, Marcos se restabeleceu. “O último contato pessoal que tive com ele foi em janeiro de 2020, quando passei uma semana em Campinas. Ele estava com uma saúde boa, feliz, cheio de planos, tomamos vinho, que era outra paixão dele, bem moderada, é claro. Lembro até hoje do momento em que saí do apartamento e entrei no elevador. Nunca imaginei que seria nosso último momento. Ele se tornou um grande amigo, uma figura paterna quase, foi o pai filosófico”, relembra Nolasco.
Em agosto do mesmo ano, Marcos sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Ele orientava três alunos quando faleceu. Um deles era Emmanuel Nakamura, que fez o mestrado com o professor e atualmente realiza o pós-doutorado na Unicamp, que também era supervisionado por Marcos.
Nakamura considera que houve uma grande colaboração do docente em sua formação, mesmo no doutorado, realizado na Alemanha sob outra orientação. Em certa ocasião, antes da defesa, ele enviou a tese a Marcos e, em visita ao Brasil, os dois combinaram de tomar um café, que a princípio seria apenas um encontro informal.
“Eu achava que a gente ia só tomar o café e saber como ele estava, mas ele chegou até a mesa, tirou a minha tese toda anotada e fez algo que nem meus orientadores na Alemanha fizeram. Fomos conversando ponto a ponto do trabalho, mesmo ele não sendo meu orientador oficial. Sem a ajuda dele, eu não teria conseguido concluir. Depois ele me abrigou no pós-doutorado e estava sendo ótimo trabalhar de novo com ele, até que veio a falecer”, diz Nakamura, que também ressalta os cuidadosos emails que Marcos escrevia.
A dedicação do Marcos orientador é ratificada pela professora da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Verrah Chamma, que estava sendo orientada pelo professor, no doutorado, na ocasião do seu faleci- mento. “Quando ele disse sim [para a orientação], foi um dos dias mais felizes da minha vida porque sabia que nós teríamos um contato mais próximo e eu poderia aprender com esse grande ser humano que era o Mar- cos, com o que ele conhecia de política, de filosofia. Ele me fez uma pessoa melhor e uma orientadora melhor. Eu o tinha como um mentor intelectual e um mestre.”
Nas orientações, outra faceta meticulosa de Marcos chamava atenção dos alunos: o preparo do chá. “Ele geralmente nos chamava na casa dele no final de tarde, aí fazia um chá, e tinha todo um ritual. Nunca tomei um chá tão gostoso quanto o que ele fazia. Ele sabia exatamente a temperatura da água, a hora que se coloca o chá, quantos minutos tinha que ficar decantando. Fui percebendo esse outro lado, do ser humano que tinha um cuidado com os detalhes, do email ao aluno ao chá para uma conversa”, diz Nolasco.
A tradução
Durante as aulas, os alunos de Marcos puderam acompanhar a sua dedicação para a tradução do livro Filosofia do Direito. O professor lia trechos da obra, discutia os conceitos e pensava na melhor forma de traduzi-los para o português naqueles momentos. Dessa forma, oferecia uma formação não só em filosofia, mas também em tradução.
“Nos cursos, trabalhávamos com esses textos. Isso gerava uma admiração muito grande por ele, pelo fato de estarmos lendo textos que eram traduzidos pelo próprio professor, que conhecia cada detalhe e cada palavra do original”, aponta Nolasco. Para ele, nesses momentos, era possível entrar “na casa de máquinas do tradutor”.
A tradução da obra, que havia iniciado na década de 1990, já estava bem adiantada no início dos anos 2000 e trechos dela foram sendo publicados nos Cadernos de Tradução do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. “Lembro que assisti a um curso dele em 2003, na pós-graduação, e ele havia acabado de publicar uma dessas partes. Ele falava para a gente: ‘Vamos ler esse texto e se vocês tiverem sugestões e acharem que está ruim a gente vai discutindo’, como se a gente tivesse a capacidade de fazer alguma crítica incisiva, porque já estava muito bem elaborada a tradução”, aponta Luiz Fernando Martin, ex-aluno e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Apesar de estar com o trabalho adiantado, Marcos realizava revisões constantes e, a cada novo achado, aperfeiçoava o texto. Quando ele descobriu mais um caderno de anotações de um aluno de Hegel, por exemplo, quis tomar conhecimento do material para incorporá-lo à versão em português, já que não queria publicar algo defasado.
Em 2016, então, o professor retomou o processo de revisão antes da cirurgia cardíaca. Logo depois, já com a Editora 34, começou a revisão final. Ia semanalmente a São Paulo discutir com o editor Alberto Martins os detalhes do texto. Com sua morte, os detalhes finais ficaram sob a responsabilidade de três ex-alunos: Fábio Nolasco, Emmanuel Nakamura e Luiz Fernando Martin.
A atualidade da obra, 200 anos depois
A obra Filosofia do Direito foi publicada em 1821, num contexto de intensas transformações. A Europa estava passando por reformas modernizantes, dentre elas o fim da servidão. Essas reformas, observa Verrah Chamma, com a derrota de Napoleão, passam por retrocessos e refluxos a partir de 1819.
Estabeleceu-se, a partir de então, uma grande censura, que, para ela, reflete-se no texto de Hegel e na avaliação que se faz sobre o conservadorismo do pensamento do filósofo. Atualmente, os estudiosos fazem uso das transcrições de suas aulas, constantes das anotações de alunos, a fim de aprofundar o conhecimento sobre Hegel.
A obra, no entanto, não deixa de ser polêmica, já que nela há uma defesa da monarquia constitucional. “Por isso, ele foi visto pela tradição marxista como conservador. Mas, ao mesmo tempo, é uma defesa da monarquia constitucional, que é bastante republicana. Trata-se de um texto muito contraditório e o Marcos sabia que, por conta de todas essas dificuldades teóricas, a única maneira de traduzir o texto para o português seria permitir que o leitor se inteirasse de todas elas e de toda a polêmica”, comenta Nolasco.
Em razão disso, na tradução do professor Marcos, há 600 notas explicativas que, na avaliação dos seus alunos, acabam compondo uma obra à parte, que contribuirá para enriquecer, inclusive, edições em outras línguas. São comentários sobre a tradução, notas de alunos de Hegel e contextualizações que também contribuem para compreender como, mais de 200 anos depois da publicação, Filosofia do Direito traz discussões importantes para o contexto atual.
“Hegel está tentando nos fazer enxergar quais são as instituições políticas e sociais que surgiram depois da Revolução Francesa. São as instituições que, até hoje, estamos tentando entender, e salvar, porque vemos todo um processo de destruição institucional já há alguns anos”, avalia Nolasco, que também ressalta o fato de Hegel ter sido um dos primeiros a apontar as contradições do capitalismo.
Para Nakamura, uma das contribuições importantes da obra para pensar a atualidade é o conceito de plebe [Pöbel], que remete ao que está ocorrendo no Brasil e no mundo com o fenômeno do populismo. “Esse conceito diz respeito a um funcionamento da sociedade civil e às contradições da sociedade capitalista que acabam gerando necessariamente desigualdade – acumulação de riqueza em um lado e de pobreza em outro. Isso faz nascer um setor da sociedade que passa a desconfiar do Estado de Direito e de suas instituições. O curioso é que Hegel não se referia a uma plebe pobre, haveria também uma plebe rica”, aponta.
Já Luiz Martin destaca as contribuições de Hegel ao que ele denominou de vontade do arbítrio, que indicam os limites da liberdade individual. “Ele critica bastante a vontade do arbítrio, que é a liberdade de você fazer o que quiser. Diz que essa concepção não é liberdade, mas algo caprichoso e arbitrário que pode criar problemas para convivermos. Parece que hoje em dia o que se defende é esse tipo de liberdade, de ter uma arma, de não usar máscara etc. Hegel via com preocupação a ideia de liberdade individual, de fazer o que se quiser, como algo que impede viver coletivamente. Essa é uma discussão central em Filosofia do Direito e que tem muito a ver com os problemas que enfrentamos hoje quando se fala em exercer a liberdade.”
Martin, ao recuperar a memória sobre o que mais o marcou na relação com o professor, lembra-se de que, quando era estudante, foi tirar algumas dúvidas com Marcos. Ao sentar-se com ele, ouviu a seguinte pergunta: “O que você quer saber de Hegel?”.
Depois de uma vida dedicada à filosofia e ao pensamento hegeliano, Marcos, com o seu legado, oferece diversas possibilidades de resposta aos questiona- mentos que possam derivar de sua pergunta.