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Pesquisa aponta importância do papel das populações
tradicionais nas ações de combate à erosão genética vegetal

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No Brasil, assim como no restante do mundo, os bancos de germoplasma, unidades que armazenam recursos genéticos de plantas, não constituem instrumentos de conservação da agrobiodiversidade se não estiverem associados a outras ações de preservação que levem em conta o papel das populações tradicionais e os seus sistemas de cultivo. A constatação faz parte da tese de doutorado da antropóloga Laura Rodrigues Santonieri, defendida em 2015 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, sob a orientação do professor Mauro William Barbosa de Almeida. De acordo com o trabalho, a circulação do material genético contido nessas coleções obedece principalmente à lógica comercial, que produz mais homogeneidade que diversidade. A pesquisa foi contemplada recentemente com o Prêmio Capes de Tese, na Área de Antropologia e Arqueologia.

A conquista do Prêmio Capes, conforme Laura, foi um importante reconhecimento ao trabalho. “Fiquei muito feliz com a premiação, visto que o desenvolvimento da pesquisa foi muito desafiador”, relata. A antropóloga procurou identificar a interface entre os sistemas agrícolas tradicionais, as instituições públicas de pesquisa e as políticas científicas que operam sobre a diversidade agrícola do país. Ela queria entender qual era o papel desempenhado por esses atores no combate ao crescente processo de erosão genética vegetal. “Um aspecto que pude constatar é que a relação entre esses segmentos frequentemente é marcada pelo conflito”, revela.

A falta de entendimento ocorre, acredita a antropóloga, pela própria tradição da ciência agrícola, que foi criada sob os auspícios do conceito do desenvolvimentismo e do discurso do combate à fome mundial. “Isso vem desde a criação da FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura], em 1945. Os pesquisadores que atuam na área têm compromisso com metas e resultados que contribuam para o cumprimento de objetivos como o desenvolvimento de cultivares melhoradas de alto rendimento capazes de aumentar a escala de produção. Desse modo, poucos pesquisadores possuem interesse em conhecer e investigar mais profundamente os sistemas agrícolas tradicionais. Normalmente, eles se limitam a coletar material e só”, explica.

Do lado dos agricultores familiares e tradicionais e grupos de pesquisa parceiros, acrescenta Laura, também há resistência em relação aos cientistas de instituições de pesquisa agrícola como a Embrapa, que normalmente são classificados numa única categoria: a de prepostos dos interesses do agronegócio. “Existe uma clara falta de diálogo entre os atores envolvidos com o tema da agrobiodiversidade. Penso que é preciso construir pontes que permitam uma interlocução mais efetiva entre eles, tendo a conservação da agrobiodiversidade como um objetivo comum e possível”, considera a autora da tese.

Em seu trabalho, Laura desenvolveu uma pesquisa etnográfica na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, instalada em Brasília. Lá, ela entrevistou pesquisadores e conheceu alguns dos estudos desenvolvidos na unidade. Além disso, a antropóloga também realizou uma ampla revisão bibliográfica sobre o tema “Aquela unidade da Embrapa é muito fechada e muito permeável a questões políticas porque dispõe da coleção de base do país e é responsável por coordenar as atividades de todos os bancos de germoplasma do Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária, que é bastante diversificado. É a partir dos bancos de germoplasma (só a Embrapa tem 46 unidades) que são desenvolvidas novas variedades e cultivares lançadas no país. Ocorre que as tecnologias geradas a partir das sementes armazenadas estão voltadas principalmente às necessidades da indústria da agricultura. As pesquisas são, em boa medida, orientadas por um interesse marcadamente comercial”, aponta.

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Esse interesse comercial se revela, com frequência, na cooperação com empresas nacionais e estrangeiras que investem recursos no desenvolvimento de sementes mais resistentes e produtivas, mas que são inférteis [híbridas]. “Ou seja, as plantas originárias dessas sementes não geram sementes que possam ser utilizadas para a produção de outra safra. Isso obriga o agricultor a comprar mais sementes para fazer um novo plantio. Por outro lado, ao favorecer a monocultura em escala industrial, esse processo gera homogeneidade. É por isso que um banco de germoplasma não pode ser considerado, por si só, um recurso contra a erosão genética”, reforça.

Ao questionar os pesquisadores da Embrapa sobre esse ponto, a autora da tese ouviu de boa parte deles que o principal compromisso da estatal é garantir a segurança alimentar e combater a fome no Brasil. “Não duvido que isso esteja sendo feito e nem da importância desse posicionamento. Ocorre, porém, que esses objetivos não estão sendo alcançados. Dados recentes revelam que 3/4 das pessoas que passam fome no mundo vivem no campo, o que é uma imensa contradição, visto que essas pessoas são agricultores”, destaca.

Ainda em relação ao banco de germoplasma, Laura lembra que as coleções nele contidas estão disponíveis somente às instituições pesquisa e empresas. “As comunidades e populações tradicionais dificilmente conseguem ter acesso às sementes. Esse acesso seria importante e ajudaria a conservar a agrobiodiversidade, uma vez que essas comunidades fazem as variedades circular. Em algumas comunidades do Rio Negro, por exemplo, quando a mulher se casa e muda de localidade, ela ‘ganha uma roça de mandioca da sogra’. Só depois de um tempo ela busca a ‘sua roça’. As dinâmicas locais são importantes porque a circulação ajuda a gerar diversidade e assim garantir a sobrevivência de muitas espécies”.

Ademais, as variedades melhoradas a partir das plantas e sementes coletadas em determinadas regiões há dez ou quinze anos nem sempre apresentam bom desempenho em relação às condições locais quando são reinseridas, como alerta Laura. De acordo com ela, assim que uma planta é coletada, ela cessa sua evolução. “Essa planta deixa de dar seguimento, por exemplo, ao processo de adaptação às mudanças climáticas, ao contrário do que ocorre quando ela está sob cultivo. É esse processo evolutivo que assegura a sua adaptabilidade e resistência. Nada garante que uma semente melhorada a partir de uma planta que não passou por esse processo terá condições de sobreviver na região da coleta daqui a dez anos”, compara.

A lógica desenvolvimentista que influenciou ciência agronômica, contínua a autora da tese, tende a encarar o mundo como se ele fosse uma máquina. “O que a comunidade científica afirma é que sem a tecnologia agrícola não seria possível garantir a segurança alimentar e o combate à fome. Entretanto, caminhos alternativos jamais foram testados em larga escala. O discurso que defende unicamente essa visão, no meu entender, deixa de fazer uma reflexão crítica sobre os processos que estão sendo gerados por esse modelo de pesquisa. Uma coisa é usar a ciência para fazer o melhoramento genético de uma variedade de milho, de modo que ela se adapte às características de uma colhedeira. Outra é usar a ciência para fazer o melhoramento do milho com o objetivo de aumentar o seu valor nutritivo com vistas ao incremento da alimentação humana, sem inferir na sua fertilidade”, pondera.

Apesar de criticar na tese a visão utilitarista da ciência, Laura volta a ressalvar que nem todos os pesquisadores da Embrapa defendem uma mesma posição. “Muitos deles estão de fato preocupados com a conservação da agrobiodiversidade e reconhecem a importância do papel dos sistemas agrícolas tradicionais. Da mesma forma, temos muitas ONGs, como o ISA [Instituto Socioambiental] e o CAA/NM [Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas], que atuam igualmente nessa frente. O grande obstáculo ao avanço dessa visão, vale reafirmar, está na combinação da forte tradição da ciência agrícola, da qual é muito difícil se desvencilhar, com a falta de conexões que permitam um diálogo profícuo entre os setores envolvidos com a conservação da agrobiodiversidade”, diz.

Ainda no que toca à questão mercadológica da ciência agronômica, Laura cita que no interior das próprias instituições de pesquisa agrícola há diferentes valorações relativas ao tipo de investigação realizada. “Quem trabalha com biotecnologia e melhoramento costuma ter mais prestígio do que quem faz pesquisa básica. O cientista que faz pesquisa básica não tem, por exemplo, contato direto com fontes de financiamento privado. Ele está na outra ponta, coletando semente, fazendo caracterização, acompanhando o ciclo de desenvolvimento da planta. Institucionalmente, ele não tem tanto reconhecimento. Isso também é paradoxal, dado que não é possível ter pesquisa aplicada sem antes ter a pesquisa básica”, observa a antropóloga, que contou com bolsa de estudo concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e com apoio financeiro da Fondation pour la Recherche sur la Biodiversité, da França. Atualmente, a antropóloga integra o grupo de pesquisa Populações Locais, Agrobiodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados, registrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Publicação

Tese: “Agrobiodiversidade e conservação ex situ: reflexões sobre conceitos e práticas a partir do caso da Embrapa/Brasil”
Autora: Laura Rodrigues Santonieri
Orientador: Mauro William Barbosa de Almeida
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Financiamento: Fapesp e Fondation pour la Recherche sur la Biodiversité (França)

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