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A Fundação Nacional de Artes (Funarte) teve, no passado, um importante papel na criação de políticas para as artes visuais, mas nas últimas décadas foi esvaziada e transformada, gradativamente, numa espécie de agência financiadora, por onde passam os recursos das leis de incentivo à cultura, entre as quais a Lei Rouanet. A história do órgão, desde a sua criação em 1975, é recuperada na tese de doutorado “Funarte e a Arte Brasileira Contemporânea: Políticas Culturais Públicas do Inap e Ceav”, por André Guilles, apresentada ao Instituto de Artes (IA) da Unicamp, com orientação do professor e escultor Marco do Valle.

A tese demonstra a relevância do Instituto Nacional de Artes Plásticas (Inap), no desenvolvimento de políticas culturais. O Inap foi o primeiro instituto ligado à Funarte e voltado exclusivamente às artes plásticas. Atualmente é denominado Centro de Artes Visuais (Ceav). Em sua história, estiveram à frente, como gestores culturais, artistas reconhecidos como Aloísio Magalhães, Paulo Sérgio Duarte, Paulo Herkenhoff, Maria Edméa Saldanha de Arruda Falcão, entre outros, que praticaram uma política cultural democrática e educativa, no contexto do regime militar, conforme a tese.

“Embora a Funarte tenha sido criada pelos militares, ela tinha uma hegemonia de esquerda. Todos os principais dirigentes eram reconhecidos por sua cultura e capacidade técnica”, explica o autor. O trabalho de pesquisa sobre a fundação começou no mestrado de Guilles. Na ocasião ele focalizou o papel da instituição até o governo de Fernando Collor, quando foi extinta e transformada em Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (Ibac).

Na investigação, André realizou diversas viagens ao Rio de Janeiro, onde foram feitos levantamentos de documentos tanto do Centro de Documentação (Cedoc) da Funarte como em arquivos particulares e jornais e revistas do período. A tese ainda traz entrevistas que incluem o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar, ex-presidente da Funarte (1992-1995), ex-diretores do Inap, gestores antigos e atuais do Ceav, ex-presidentes da Abapp (Associação Brasileira de Artistas Plásticos Profissionais) e artistas visuais.

No período inicial, a Funarte dialogava muito com a Abapp para a criação das políticas culturais que o autor chama de “exemplares”. Um exemplo foi o Espaço ABC (Projeto Arte Brasileira Contemporânea), criado em 1979 e implantado em 1980, no Parque da Catacumba, na Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro. Foram realizados neste local diversos eventos envolvendo música, arquitetura e filosofia. O autor da tese destaca as participações de Antonio Manuel, Tunga, Lygia Clark, José Resende, entre outros importantes artistas experimentais dos anos 70 e 80 que ali mostraram seus trabalhos e que fazem parte dos desdobramentos da arte contemporânea brasileira iniciada nos anos 50 e 60.

Foi a fundação que abriu espaço e deu nova visibilidade para a obra de artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark por meio de publicações e outros eventos que encaminharam estes artistas como espinha dorsal de nossa arte contemporânea. “A Funarte foi um local de acesso para os artistas que não se enquadravam no mercado, isso foi uma conquista lá de trás, do corpo de funcionários que era muito aberto a escutar os artistas, principalmente representados pela Abap”.

André e seu orientador Marco do Valle consideram que a fundação contribuiu inclusive para o reconhecimento do papel do artista como o de um trabalhador, um profissional. “Houve uma época, na ditadura militar, que a pessoa poderia ir presa se dissesse que era artista” conta o orientador.

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Engessamento
A realidade mudou nas últimas décadas para a Funarte e para os artistas visuais, principalmente os novos. Mesmo tendo voltado ao nome original, pouco tempo depois de extinta no governo Collor, o processo de desmonte foi acelerado. “Com a extinção da primeira Funarte, em 1990, também foram fechadas as suas galerias: Macunaíma, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Sérgio Milliet, e o Salão Nacional de Artes Plásticas, o que representa um descaso com as nossas tradicionais instituições e a saída do Estado como propositor principal na criação de políticas exemplares”.

Para André, esta “segunda” Funarte “vem fazendo um trabalho intenso, com mais recursos, abarcando todas as novas linguagens da arte brasileira contemporânea, mas em contrapartida, com entraves para o desenvolvimento de políticas exemplares que estejam fora do sistema regulador de editais”. O modelo de financiamento agrada, de acordo com Guilles, boa parte da classe artística, mas “impõe limites às ações dos gestores, desagradando-os na resposta que gostariam de dar à sociedade como um todo”.

Uma característica das políticas do passado que praticamente se extinguiu foi a de dar visibilidade a artistas que não dialogam tanto com o mercado, ou mesmo para aqueles que estão longe do sudeste brasileiro. “Antigamente, para a Funarte, arte contemporânea era simplesmente a arte feita no nosso tempo. O mercado impõe uma visão errônea sobre o que é arte contemporânea, definindo-a como uma arte específica com regras específicas, criando um afastamento das outras existências de arte contemporânea com características modernas, populares e ou acadêmicas”, complementa André.

Nos últimos anos, avalia o pesquisador, as leis de incentivo têm promovido uma espécie de engessamento do trabalho dos gestores culturais. “Com as leis de incentivo, acabam sendo absorvidas outras linguagens muito atreladas ao mercado. O Ceav hoje sofre um engessamento através do excesso burocrático da prevalência de seus processos através de editais, o que interrompeu o histórico da Funarte de gerar projetos exemplares”, ressalta.

O professor Marco acrescenta que, embora o dinheiro venha da lei de incentivo, é o Ministério da Cultura quem determina que projeto poderá captar recursos. “Aqueles mais conhecidos ou com contatos em indústrias e empresas acabam conseguindo captar mais, o que não garante a qualidade de fato desses projetos. Neste sentido é que podemos falar em um projeto neoliberal para a cultura brasileira”.

A sobreposição do Ministério da Cultura à Funarte esvazia a fundação, constata André. “A Funarte deixa de ser uma parceira e passa a ser um órgão com um grupo de funcionários subservientes”. O professor Marco complementa que os funcionários que não estão mais produzindo projetos da própria Funarte, passam a ficar “sob os mandos do ministério para as mais variadas tarefas, distantes de sua especialização”.

A tese aponta que é preciso encontrar um meio termo entre o financiamento de artistas e seus projetos, e a elaboração de políticas exemplares oriundas do corpo de servidores da Funarte em conjunto com a sociedade. “Acreditamos que esta situação será possivelmente revertida com uma ampla participação da parte da sociedade interessada e com os investimentos que venham com observações das novas tecnologias de informação e comunicação, agilizando e modernizando a instituição”.

Da mesma forma que no passado, o diálogo e a participação dos artistas foram primordiais. Sem esse canal hoje, será muito difícil retomar ações “exemplares”. “Nossa compreensão é a de que é muito bom absorver o artista no campo de funcionários”.

Atualmente o diretor do Ceav é o artista Xico Chaves, que já atuou na primeira Funarte e ficou conhecido pela intervenção “Olhos na Justiça”, de 1992, em Brasília, quando colou olhos de papel na estátua “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti. Xico é considerado um gestor bastante atuante, segundo Gilles e Marco do Valle. Porém, afirmam, é preciso aproveitar melhor o corpo de funcionários da instituição, abrindo oportunidades de trabalho em projetos específicos da própria Funarte e melhorando suas carreiras para que estes cargos públicos sejam disputados e representem maior qualidade.

“A tese não apenas registra diferentes momentos históricos como também aponta e analisa as políticas culturais da Funarte. Trata-se de uma das últimas instituições na área cultural que sempre teve projetos exemplares”, observou o orientador.

Publicação

Tese: “Funarte e a Arte Brasileira Contemporânea: Políticas culturais públicas do Inap e Ceav”
Autor: André Guilles
Orientador: Marco Antonio Alves do Valle
Unidade: Instituto de Artes (IA)

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