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Em 1875 o agente comercial Antônio Teixeira Marinho trouxe do Rio de Janeiro, a capital do império, um comboio de escravos para ser vendido no município paulista de Campinas. Numa casa, os escravos dormiram juntos na sala, enquanto Marinho e duas escravas permaneceram em um quarto. Ao amanhecer, o agente comercial foi chamado por dois cativos para verificar um escravo que estaria enfermo a um canto do dormitório. Ali, os dois escravos armaram uma tocaia e mataram o agente comercial a golpes de machadadas.

Em sua pesquisa, Letícia Lemes historia, a partir de documentos da época como o processo criminal sobre a morte do comerciante Marinho, as múltiplas experiências, escolhas e estratégias vividas pelos cativos trazidos a Campinas. A historiadora discute as implicações entre a intensificação do comércio interno de escravos no Império do Brasil, após o fechamento do tráfico atlântico em 1850, e a crescente mobilização escrava ocorrida entre 1860 e 1888.

“Um detalhe interessante presente na denúncia do promotor sobre o caso envolvendo o agente comercial é a indicação de que o objetivo último do crime era pegar os papéis de Marinho que comprovavam a propriedade dos cativos e inutilizá-los, a fim de conferir liberdade aos escravos. No comboio estavam presentes cativos de diversas localidades do Império, como Maranhão, Bahia, Sergipe, Rio de Janeiro e Ceará. Consta também que pelo menos um dos escravos teria resistido ao embarque no Rio de Janeiro e acabara sendo colocado no navio à força”, relata.

Além dos processos criminais, Letícia Lemes examinou processos cíveis para a aquisição de alforria, anúncios de fuga de cativos no jornal campineiro Gazeta de Campinas e registros do pagamento do imposto sobre as transações de compra e venda de escravos. As análises tiveram foco especial no município de Campinas, cuja intensificação da produção cafeeira “demandava” mão de obra escrava.

“Este tráfico interno que se intensificou após o fechamento do transatlântico pela Lei Eusébio de Queirós, em 1850, interferiu nas trajetórias de vida dos cativos, estimulando, em alguma medida, as fugas, crimes, insurreições e recursos à justiça para obtenção da liberdade. Quando analiso, por exemplo, alguns crimes contra senhores ou contra feitores, como o envolvendo o agente comercial Marinho, observo que estes escravos não aceitavam essas novas políticas de domínio existentes nos seus novos locais de trabalho”, aponta a historiadora graduada pela Unicamp.

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Ela acrescenta que, mesmo como escravos, antes do tráfico interno, havia uma relação mais estável entre os cativos e os seus senhores. Além disso, os escravos possuíam famílias, estavam com redes de solidariedade e vínculos de amizades constituídos nas localidades de origens, que foram rompidos com a mudança de território.

“Nascidos em geral em pequenas propriedades escravistas e em áreas urbanas, esses homens e mulheres escravizados encontraram realidades bastante diferentes em Campinas. Se nos locais de origem podiam ter uma relação mais próxima com seus senhores e negociar formas de trabalho com maior autonomia ou até mesmo possibilidades de aquisição da liberdade, nas grandes fazendas cafeeiras do Sudeste tinham que lidar com o trabalho pesado e constantemente fiscalizado pelo feitor, com escassas chances de obter alforria. Além disso, os laços familiares e redes de solidariedade que constituíram nos lugares onde nasceram eram rompidos ao serem vendidos para longe”, descreve.

Em alguns casos, antes do tráfico interno, já havia acordos prévios com os senhores visando à liberdade, indica a autora da pesquisa. “Mas nessas grandes fazendas as possibilidades de alforrias são muito menores porque estes senhores acabaram de comprar os escravos, portanto, eles não tinham interesse em conceder liberdade para eles. Além disso, estes escravos trazidos pelo tráfico ainda eram preteridos dos escravos da casa pelos senhores de Campinas.”

Tudo isso, conforme a historiadora, pode ter contribuído para as insurreições contra as novas formas de domínios encontradas em Campinas.  Para Letícia Lemes, mais do que uma reação ao tráfico interno e aos novos “desafios” de trabalho, as atitudes dos cativos foram fruto de uma reelaboração de sua luta contra a escravidão em uma situação ainda mais desfavorável.

“Mesmo diante desta situação eles não perderam as esperanças de influenciar no seu próprio destino, formulando novas redes de solidariedade e cumplicidade para exigir condições melhores de vida e trabalho nas novas escravarias, bem como para lutar por sua liberdade. Os crimes, fugas e enfrentamentos judiciais pela liberdade colocavam em xeque as tentativas senhoriais de controle da população escravizada e generalizavam uma luta contra a escravidão que emergia das áreas de maior concentração cativa nesse período, isto é, o Sudeste cafeeiro.”

A pesquisa de Letícia Lemes foi conduzida como parte de sua dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). O trabalho foi orientado pela professora Silvia Hunold Lara, que atua no Departamento de História da unidade. Houve financiamento, na forma de bolsa à pesquisadora, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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Forasteiros
A autora do estudo observa que, ao analisar os documentos, constatou que a grande maioria dos escravos envolvidos nos atos de fuga, crimes e demandas judiciais pela liberdade, havia sido trazida para Campinas por meio do tráfico interno, seja entre cidades da mesma província ou entre províncias diferentes. “Há uma enorme proporção dos escravos nascidos em outros locais do Império entre os envolvidos em processos criminais ou de liberdade, ou que fugiram de seus senhores em Campinas nesse período”, ressalta. 

De acordo com a pesquisadora, apenas 9% dos cativos crioulos (nascidos no Brasil) presentes nessas fontes documentais nasceram no município paulista. “Isto posto, podemos considerar que 91% dos brasileiros escravizados que se envolveram em crimes, ações de liberdade ou fugas nesse período eram ‘forasteiros’ que haviam chegado a Campinas através do comércio interno. Apesar de haver a possibilidade de que parte desses cativos tenha chegado ao Sudeste junto com senhores que migraram para Campinas no século XIX, não deixa de se tratar de indivíduos submetidos à migração forçada.”

Ainda conforme a historiadora, a proporção dos não nascidos em Campinas aumenta para 92,6% se forem contabilizados os cativos africanos e os crioulos sem especificação de localidade de origem que estão presentes na documentação. O percentual de cativos nascidos no Norte, Sul ou Centro do Império chega a 61,8% de todos os nascidos no Brasil. “Essa gente certamente viveu experiências de grande afastamento de familiares e outras redes de solidariedade constituídas na terra natal”, considera.

Campinas 
Nos anos de 1870, o município de Campinas chegou a contar com a maior população escrava entre os municípios da província de São Paulo, totalizando 14 mil cativos, conforme historiografia sobre a época. Letícia Lemes pondera que o comércio interno de escravos sempre aconteceu no Brasil desde a Colônia.

Após 1850 este comércio interno ganhou força principalmente porque os grandes fazendeiros do Sudeste já não tinham mais como comprar escravos diretamente da África. Primeiro, eles buscaram dentro das próprias províncias no Sudeste na década de 1850 e 1860 e, depois da década de 1870, estes escravos começaram a vir de lugares mais distantes, como Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul. Campinas teve papel de destaque neste comércio, já que o município contava com grandes fazendas de café, situa a pesquisadora.

“A história desses homens e mulheres submetidos à migração forçada deu origem à muitas das famílias negras que habitam Campinas e, em vista de uma tendência latente de apagamento das memórias negras na cidade, a recuperação das múltiplas experiências dessa gente que construiu a cidade precisa ser feita constantemente pelo historiador. Além disso, trata-se de histórias da luta do povo negro contra a instituição escravista, a qual se viu profundamente abalada pela publicização de crimes, fugas épicas e demandas judiciais pela liberdade na segunda metade do século XIX.”

Publicação

Dissertação: “Vivendo um ‘espetáculo de misérias’: a experiência dos escravos traficados para Campinas, 1860-1888”
Autora: Letícia Graziele de Freitas Lemes
Orientadora: Silvia Hunold Lara
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Financiamento: Fapesp e Capes

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