Cientistas do Instituto de Física desenvolvem nova geração de detectores de neutrinos
Uma peça fundamental para o futuro da física está sendo criada na Universidade Estadual de Campinas. É do trabalho de professores e estudantes do Instituto de Física Gleb Wathagin (IFGW) que nasce a tecnologia para captar os sinais luminosos que serão produzidos na nova geração de detectores de neutrinos, em construção nos Estados Unidos. Verdadeiras armadilhas criadas para aprisionar partículas de luz, as arapucas – como são oficialmente chamadas por seus criadores – devem ser testadas na Europa em 2017 e entrar em ação nos EUA em 2018.
O neutrino é uma partícula subatômica sem carga elétrica e de massa muito pequena. Sua existência foi proposta, como hipótese, em 1930, para explicar o aparente “desaparecimento” de parte da energia envolvida no processo radioativo conhecido como decaimento beta. Em vez de aceitar uma violação do princípio de que a energia não pode ser destruída, Wolfgang Pauli (1900-1958) sugeriu que a energia perdida na verdade estaria sendo transportada por uma partícula neutra até então não observada. A confirmação da ideia de Pauli veio num experimento descrito em 1956, cujos autores foram agraciados com um Nobel de Física em 1995.
O estudo dos neutrinos produziu um segundo Nobel vinte anos mais tarde, em 2015, pela descoberta da oscilação dessa partícula: os neutrinos conhecidos existem em três tipos, chamados pelos físicos de “sabores” – neutrino-tau, neutrino-múon e neutrino-elétron. A oscilação é a transformação de um tipo de neutrino em outro, algo não previsto pelo Modelo Padrão da Física de Partículas, a grande teoria que explica a composição da matéria, o eletromagnetismo e as forças nucleares.
Além do modelo
“Por que tantos pesquisadores estão interessados nos neutrinos? Porque é uma partícula que abre um mundo além do Modelo Padrão”, disse o pesquisador Ettore Segreto, do IFGW, um dos coordenadores do projeto arapuca. “Descobriu-se que neutrinos têm a propriedade de oscilação. A descoberta da oscilação implica que ele tem massa. Mas o Modelo Padrão prevê que o neutrino não tem massa. Pelo Modelo, a massa do neutrino deveria ser zero”.
Ele prossegue: “Então, isso significa que o modelo é incompleto, e que tem que ter alguma física além dele. É esta física nova que a gente está pesquisando, e dela o neutrino é o que a gente conhece melhor. Porque tem outras coisas que estamos pesquisando e que vão além do modelo padrão, como a matéria escura”.
A descoberta da oscilação do neutrino foi feita num detector instalado no Japão, chamado Super Kamiokande, formado por um tanque cilíndrico contendo 50 mil toneladas de água extremamente pura, localizado a uma profundidade de um quilômetro no subsolo. Como o neutrino praticamente não interage com a matéria em geral, o gigantismo do detector é necessário para oferecer o maior número possível de oportunidades de colisão entre os átomos da água e as partículas. Já a grande profundidade funciona como blindagem contra interações espúrias, provocadas por partículas mais comuns. O Super Kamikande começou a operar no início dos anos 90.
As arapucas da Unicamp serão usadas na nova geração de detectores de neutrinos, que não usarão mais água, e sim um gás nobre, o argônio, em estado líquido.
Foto da interação
“A tecnologia padrão, até agora é a água”, disse Segreto. “Quando o neutrino chega e faz uma interação na água, isso gera partículas que produzem luz, no chamado Efeito Cherenkov. E há um monte de sensores ao redor do tanque que detecta isso”, explicou. “A técnica do argônio líquido nasceu depois, e tem uma qualidade muito superior. Quando se compara uma imagem Cherenkov com uma imagem do argônio líquido, a imagem Cherenlov é apenas um anel luminoso. Já no argônio líquido é possível ver a trajetória das partículas deslocadas pelo neutrino”.
“O neutrino não dá para ver”, relata. “Você só consegue detectar partículas que têm carga elétrica: do que não tem carga elétrica, a gente detecta o produto da interação. No argônio líquido dá para detectar todas as partículas que foram produzidas pela chegada do neutrino”.
Além de buscar uma explicação para a oscilação do neutrino, os detectores de argônio líquido também devem oferecer janelas para outros mistérios na fronteira da física, como a natureza da matéria escura que mantém as galáxias coesas, que também se encontra além do Modelo Padrão, o possível – mas extremamente raro – decaimento do próton e a assimetria observada entre matéria e antimatéria no universo.
“Se no começo, no Big Bang, tudo fosse simétrico, fossem produzidas as mesmas quantidades de matéria e de antimatéria, no final matéria e antimatéria se aniquilariam e não teria sobrado nada”, explica Segreto. “Na verdade a gente sabe que sobrou bastante coisa, sobrou um universo inteiro. Então, esse desequilíbrio é muito evidente. O estudo do neutrino poderia abrir, explicar essa assimetria entre matéria e antimatéria. Essas são questões muito fundamentais”.
No caso da matéria escura, o detector é sensível a um dos tipos previstos como hipótese, as chamadas “wimps” – sigla em inglês para partículas massivas de interação fraca. Assim como os neutrinos, os “wimps” só interagiriam com a matéria comum por meio da gravidade e da chamada força nuclear fraca, e por causa disso poderiam ser detectados pelo mesmo tipo de equipamento. Se a tecnologia de argônio líquido for capaz de confirmar a existência das “wimps”, a arapuca brasileira será fundamental para isso.
“No estudo do neutrino, teremos dois tipos de sensores, o de ionização, que vai rastrear as partículas carregadas produzidas pela interação, e o de cintilação, que vai captar apenas a luz. No caso da matéria escura, só teremos a cintilação”, explicou Ana Amélia Machado, que coordena o projeto na Unicamp ao lado de Segreto. “Então, tem de ter uma eficiência de visualização muito grande para poder detectar alguma coisa”.
Armadilha
A arapuca é uma caixa retangular, branca, de teflon, com um par de pequenos sensores – cada um deles de 6×6 milímetros – numa das faces menores. Uma das faces maiores é revestida por um filtro e por uma película química que, ao receberem o impacto de um fóton de ultravioleta produzido pelo choque de um neutrino (ou de um eventual “wimp”) com o argônio do tanque, tratam de convertê-lo em uma partícula de luz de menor energia, arremessando-a para o interior da caixa, de onde ela não tem como escapar. Lá o fóton ricocheteia, aprisionado, até entrar em contato com um dos dois sensores, quando então o evento é registrado pelo detector.
O principal destino das arapucas será o Dune – “Deep Underdound Neutrino Experiment”, ou “Experimento de Neutrino do Subsolo Profundo” – sediado em duas instituições americanas, a Universidade Stanford e o Fermilab. Um feixe de neutrinos gerado no Fermilab será projetado sob a terra, através de 1,3 mil quilômetros, até tanques de argônio líquido localizados em Stanford. “O Dune vai ser um experimento enorme, vai ter 40 mil toneladas de argônio líquido”, disse Segreto. A temperatura necessária para manter o gás liquefeito é próxima à do nitrogênio líquido, que ferve a cerca de 196º C negativos.
Antes disso, no entanto, o aparelho será testado, como protótipo, no Proto-Dune, uma prévia do Dune, em menor escala, que se encontra em construção no CERN, mesma instituição europeia que abriga o Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês), responsável pela descoberta do bóson de Higgs. “O proto-Dune já aceitou o protótipo lá dentro”, disse Machado.
Em casa
Segreto e Machado contam que a Unicamp prepara a construção de seu próprio laboratório de pesquisas com argônio líquido, que deve ficar pronto no primeiro semestre de 2017. A instalação será usada nos testes e no aperfeiçoamento da arapuca, e lá deverão trabalhar os estudantes envolvidos no projeto. “Esse é o nosso investimento no futuro”, disse Segreto. “Para a gente, não vale nada se não tiver eles”, acrescenta Machado, referindo-se aos alunos. “A gente quer deixar essa experiência para eles”.
Os estudantes, quando ainda na graduação – alguns já estão partindo para o doutorado –participaram de etapas cruciais do projeto, como a determinação da espessura ideal das paredes da caixa de teflon e os testes dos filtros e dos “shifters” – literalmente, “deslocadores” – químicos necessários para reduzir a energia da cintilação do argônio, antes do fóton entrar na arapuca.
“Esse é o nosso time da Unicamp, mas a gente tem a intenção de aumentar o interesse de outros pesquisadores. Entrou recentemente um pesquisador da Federal de São Carlos, e tem pessoal de Alfenas [Universidade Federal de Alfenas], da UFABC, o projeto está crescendo bastante no Brasil”, disse Machado. “E temos colaboração na América Latina, também. Nossa ideia é criar um consórcio latino-americano de pesquisa e desenvolvimento para o Dune”.