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O valor social dos dados

E as projeções apontam para um volume global de dados com crescimento exponencial, que será de aproximadamente 394 zettabytes em 2028

Vocês têm ideia da quantidade de dados gerados e usados no mundo de hoje? É isso que o artigo How Much Data is Used and Stored in the World? (2025) tenta responder, chegando a cifras que a maioria de nós nem consegue imaginar. Só em 2022, o mundo gerou mais de 100 zettabytes de dados, ou seja, mais de 100,000,000,000,000,000,000,000 bytes (O byte é uma das menores unidades de memória usadas nos computadores e celulares, a unidade mais básica para representar um caractere). Para se ter uma ideia da grandeza dessa quantidade, um zettabyte equivale a, aproximadamente, 77 bilhões de censos brasileiros de 2010.

E as projeções apontam para um volume global de dados com crescimento exponencial, que será de aproximadamente 394 zettabytes em 2028, ou seja, a cada ano o volume mais que duplica, e nada indica que isso mudará. O único gargalo poderá ser o poder de armazenamento, que vem aumentando ao longo dos anos, mas sem acompanhar o ritmo de produção de dados. Estamos cada vez mais imersos em um mundo de dados. No dia a dia, cada interação digital produz uma pegada de dados: seja na compra online, no like social, na leitura de notícias ou na transferência bancária. Essa produção massiva não é mais uma particularidade das empresas de tecnologia, mas sim a estrutura de fundo que permeia todos os aspectos da vida humana.

E como chegamos a esse ponto? Como diriam os economistas e, coincidentemente, muito em linha com os prêmios Nobel em Economia deste ano (2025), os avanços econômicos guiados pela própria evolução da humanidade, da inovação e dos avanços tecnológicos resultantes viabilizaram nosso atual poder de processamento e armazenamento de dados.

Mas a História mostra como diversas civilizações se valiam de mecanismos materiais disponíveis à época para registrar quantidades e, portanto, dados. Os incas faziam uso dos quipus, artefatos têxteis de lã ou algodão, compostos por um cordão principal e cordões pendentes, codificando as quantidades de itens (como produção agrícola ou o tamanho do exército) por meio de nós e cores dos cordões (Schmidt; Santos, 2017). Na Mesopotâmia, os registros contábeis eram feitos em artefatos de argila, começando por bolas, que quando marcadas e agrupadas representavam um contrato e seu respectivo valor monetário (Universidade Federal De Minas Gerais, 2020).

Com a passagem do tempo, chegamos à época em que o material se confunde com o imaterial, e quantidades, assim como atributos diversos sobre um objeto ou problema, inclusive sobre nós mesmos, não são mais sequer registrados em papel, e sim por bytes em sistemas de armazenamento de dados, de computadores pessoais e corporativos a datacenters. Trata-se da famosa datificação ou transformação de todos os aspectos da nossa vida em dados, que nos permitem quantificar, mensurar e analisar o que até pouco tempo atrás era inimaginável, possibilitando entender padrões e comportamento como nunca.

O valor multidimensional dos dados

A evolução da humanidade e os avanços tecnológicos também promoveram a emergência de instituições para a regulação desses contratos de valor, assim como do reconhecimento do que esse dado (ou artefato, material ou imaterial) representa. Atualmente, chegamos ao ponto em que até um clique (um like) tem um determinado valor. Mas para quem? E como se chega a esse valor?

Para isso, teríamos que definir o que é um dado. Fiz esse exercício mental que me levou até searas filosóficas onde mal via uma saída. Como entusiasta de dados, senti-me um tanto indignada por nunca ter me detido a pensar a respeito, até me deparar com um artigo de 1989 do brilhante Russell Ackoff, pioneiro na aplicação de abordagens sistêmicas à gestão. Ackoff propõe o que se conhece como a Hierarquia Data, Information, Knowledge and Wisdom (ou Understanding), ou hierárquica DIKW, usualmente representada por uma pirâmide.

Ackoff propõe o que se conhece como a Hierarquia Data, Information, Knowledge and Wisdom (ou Understanding), ou hierárquica DIKW, usualmente representada por uma pirâmide.

A base da pirâmide é formada por dados, símbolos brutos que representam propriedades de um objeto ou evento. A informação, que é o dado processado, está um pouco acima e ganha valor e significado pela sua organização e contexto, respondendo a questões como quem, o quê, quando, onde e quantos. Um pouco mais acima está o conhecimento, aplicado de maneira a fornecer instruções e respostas a questões de como fazer, gerando um entendimento mais profundo sobre um tema. Finalmente, a sabedoria figura no topo da hierarquia, referindo-se à decisões tomadas a partir da ética e de julgamentos de valor, definindo o que deve ser feito para alcançar a efetividade. É a sabedoria e/ou compreensão que fornece as explicações, sendo a resposta às questões que indagam o “porquê”.

Pensemos, por exemplo, no salário-mínimo atual, equivalente a R$1518 reais. Sem contexto algum, é apenas um dado. Mas se analisamos os valores desse salário-mínimo ao longo da última década e sua variação no tempo temos uma informação. Se esta for colocada no contexto econômico da época, entre crises, políticas salariais etc., teremos a compreensão desse valor para os brasileiros e suas famílias, gerando conhecimento sobre o tema. Um gestor público pode utilizar esse conhecimento (a análise de impacto) para avaliar a necessidade de novos ajustes salariais na base. Assim, a sabedoria é o julgamento ético e social do gestor, que decide se e como a intervenção será feita, transformando o conhecimento em uma decisão justa e efetiva. Ou seja, se dados e informações são como um olhar para o passado, conhecimento e sabedoria estão associados ao que se faz hoje e ao que se quer alcançar no futuro.

A meu ver, em termos de gestão pública, a relevância está em todos os níveis dessa hierarquia: como tomar decisões a partir de informações e de conhecimento extraídos de dados pouco confiáveis? Alguns dizem que os dados são o novo petróleo, o que gera controvérsias, mas não há como negar o papel que eles exercem em todas as esferas sociais e econômicas e, portanto, seu valor como bens intangíveis do ponto de vista comercial, social e geopolítico. Pode ser que um like para mim não tenha valor, mas para a Meta certamente o terá, produzindo lucros extraordinários com sua exploração e, consequentemente, contribuindo para o PIB de determinados países. O dado possui, portanto, um valor multidimensional, manifestando-se de formas distintas nos âmbitos comercial, social, político e econômico.

O desafio social dos dados

É importante destacar que o valor do dado não está no seu volume, mas na sua capacidade de contribuir para a geração de conhecimento e de compreensão, ainda mais na gestão pública, em que é fundamental a capacidade de mitigar vieses que levem à injustiça social.

Assim, o dado, como base do processo de geração de conhecimento e sabedoria, é essencial para a redução de desigualdades ao nos levar à tomada de decisão baseada em evidências, mostrando onde se localizam as vulnerabilidades sociais e econômicas. E, nesse sentido, é fundamental não parar de aprender, como a hierarquia DIKW mostra.

Sob esse ponto de vista, e trazendo essas ideias para o campo da tomada de decisão com sistemas de suporte baseadas na IA, as predições por ela geradas constituiriam o conhecimento extraído a partir do processamento dos dados brutos. Mas não há como parar por aí. A IA pode predizer eventuais regiões de maior risco climático, mas o que fazer com isso? E por quê? Sem respostas a essas perguntas, o risco de perpetuar nossos próprios vieses embutidos nos dados é alto, pois o conhecimento sem julgamento ignora o valor social. Eis que vem a sabedoria: quando o julgamento de valor e a ética são aplicados ao conhecimento adquirido, transformando a previsão, de uma ação guiada pela eficiência, em uma ação justa, ao decidir não apenas guiados pelo quanto ou onde, mas pelo porquê. E isso exige transparência para não apenas mensurar e informar, mas transformar a sociedade, guiados pela justiça social.

O ciclo circular

A hierarquia de Ackoff é de extrema importância para entender o processo de geração de conhecimento e de tomada de decisão pela compreensão de um problema baseada em dados. Porém, a meu ver, essa proposta tem um caráter circular implícito.

A hierarquia de Ackoff é de extrema importância para entender o processo de geração de conhecimento e de tomada de decisão pela compreensão de um problema baseada em dados. Porém, a meu ver, essa proposta tem um caráter circular implícito.

A humanidade continua a evoluir. As tecnologias também. Logo, essas mudanças se capturam mediante os dados, e, com isso, os dados em si também mudam. Ainda que seja difícil de imaginá-las, a história nos mostra que, no futuro, surgirão outras formas de capturar dados de forma mais precisa ou até de aspectos diferentes, impossíveis agora. E, com novos dados de qualidade, novas informações serão geradas, novos conhecimentos serão extraídos e uma nova compreensão de um determinado problema pode surgir. Nesse sentido, a sabedoria em si não é um fim, é uma etapa desse processo circular, que gera um feedback que pode revelar a necessidade de novas formas de coleta de dados, por exemplo, dando início a uma nova rodada.

Assim, o mundo orientado por dados estará sempre conectado, sempre rastreando, sempre monitorando, sempre ouvindo e sempre observando – porque estará sempre aprendendo. E na gestão pública não será diferente.

Finalmente, notemos que, por mais que a IA avance a passos acelerados, ela pode muito bem auxiliar com a coleta e o processamento dos dados, gerando informação e conhecimento, mas a sabedoria e a compreensão têm, ao menos por ora, um caráter 100% humano, pois são guiadas por ideais, como o de alcançar uma sociedade mais justa e equitativa. Em suma, a sabedoria tem caráter humano e é o que uma máquina não tem como adquirir.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


Referências bibliográficas

SCHMIDT, P.; SANTOS, J. L. dos. O uso dos quipus como ferramenta de controle tributário e de accountability dos incas. Revista Brasileira de Gestão de Negócios, São Paulo, v. 19, n. 66, p. 613-626, out./dez. 2017. Acesso em: 17 out. 2025.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. História da escrita. In: ESPAÇO DO CONHECIMENTO UFMG. Belo Horizonte, 2020. Acesso em: 16 out. 2025.

ACKOFF, Russell L. From data to wisdom. Journal of Applied Systems Analysis, Lancaster, v. 16, n. 1, p. 3-9, 1989.


Foto de capa:

Só em 2022, o mundo gerou mais de 100 zettabytes de dados, ou seja, mais de 100,000,000,000,000,000,000,000 bytesMan_ED732-Chris-Yang-Unsplash
Só em 2022, o mundo gerou mais de 100 zettabytes de dados, ou seja, mais de 100,000,000,000,000,000,000,000 bytes
29 set 25

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