Conteúdo principal Menu principal Rodapé

A ciência como política de Estado

A dependência de produtos importados é um dos grandes entraves da ciência e da indústria brasileira

A ciência é essencial para o avanço de qualquer nação. Não apenas como produtora de conhecimento, mas como motor de inovação, competitividade e bem-estar social. No Brasil, entretanto, a ciência ainda não é uma das políticas de Estado. Assim, sofre com investimentos instáveis, dependência de insumos importados e baixa integração no sistema educacional. Países como Coreia do Sul e Alemanha mostram que, quando a pesquisa científica é tratada como prioridade nacional, ela transforma a sociedade e suas economias.

Os benefícios da ciência para uma sociedade são múltiplos, tendo reflexos em pivôs do desenvolvimento nacional. Na saúde pública, a pandemia de covid-19 evidenciou a vulnerabilidade do Brasil, já que mais de 90% dos insumos farmacêuticos ativos (IFAs) eram importados e apenas cerca de metade dos equipamentos médicos é produzida internamente, o que gera um déficit anual estimado em R$ 20 bilhões [1] [2]. Na agricultura, embora o Brasil seja um dos maiores produtores agrícolas do mundo, cerca de 85% dos fertilizantes usados no país são importados, o que encarece a pesquisa em agronomia, solos e biotecnologia vegetal, tornando-a vulnerável a crises geopolíticas. Até mesmo as ciências sociais podem depender de soluções importadas: pesquisadores brasileiros analisam bases de dados internacionais e usam softwares importados, como SPSS e NVivo (voltados para análises estatísticas quantitativas e qualitativas). Esta dependência pode também encarecer as pesquisas, tornando-as vulneráveis a variações cambiais, afora a limitação de acesso equitativo entre instituições brasileiras. Essa dependência externa demonstra a urgência em investir em soluções próprias de modo a fortalecer o complexo industrial brasileiro em todos as áreas do conhecimento.

A ciência deveria ser um dos pilares estruturantes da educação infantil, pois promove o pensamento crítico, prepara as pessoas para lidar com problemas complexos e contribui para o combate à desinformação que circula na sociedade. Pessoas educadas à luz da ciência a entenderiam como investimento e não como gasto. Isso teria um impacto profundo sobre nossa sociedade e iria além de resolver as limitações listadas acima. No campo da economia, a ciência é base fundamental para inovação, quanto a agregação de valor aos produtos, o que permitiria a construção de um modelo menos dependente de commodities. A ciência também é indispensável para a sustentabilidade e as causas ambientais, uma vez que pesquisas nesta área provêm soluções para enfrentar desafios urgentes como as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e a escassez de recursos naturais, todos temas que impactam diretamente o futuro coletivo. Isso tudo sem mencionar a importância das ciências sociais, que promovem a construção de sociedades ética e economicamente mais justas.

A Coreia do Sul é um exemplo sobre como transformar uma sociedade pobre numa potência tecnológica em algumas décadas. Após a Guerra da Coreia (1950–1953), o país enfrentou uma considerável devastação física e econômica. Com uma economia agrária precária e elevada dependência de ajuda externa, a partir da década de 1960, a Coreia do Sul iniciou uma transformação econômica, que incluiu investimentos em ciência e educação como um dos principais pilares. Planos quinquenais desde então impulsionaram-nos ao patamar de país desenvolvido já nos anos 1980 [3]. Pulando para os dias atuais, em 2022, a Coréia do Sul investiu 4,9% do PIB em ciência, o segundo maior investimento do mundo, somente atrás de Israel [4]. O alto investimento ao longo de décadas consecutivas levou à alta qualificação da força de trabalho, dando inclusive origem a gigantes como Samsung e LG. Neste sistema, cria-se uma virtuosa sinergia entre educação, tecnologia e indústria, de forma que esta sociedade não mais se sustentaria sem tamanho investimento em ciência, que claramente tornou-se uma política de Estado. Outro exemplo é a Alemanha. Há séculos, este país que passou por diversas transformações sociais e territoriais, investe em conhecimento. É parte da essencial da Alemanha investir em universidades e institutos de pesquisa (como Max Planck, Fraunhofer, Leibnitz e Humboldt) e no intercâmbio entre academia e indústria. O resultado é um setor industrial robusto, com inovação tecnológica estruturada e valorizada pela sociedade [5].

Por outro lado, no Brasil, o investimento em ciência não tem sido sustentável, nem estratégico. Em 2023, o esforço em P&D foi de 1,19% do PIB, cerca de 4 vezes menor que o da Coreia do Sul e 2,5 vezes menor que o dos Estados Unidos [6]. Além de investimentos limitados, estes são eventualmente irregulares, instaurando frequentemente crises orçamentárias nas instituições de ciência e tecnologia. Ainda, cientistas convivem com uma alta burocracia, que atrasam, por exemplo, a importação de reagentes e equipamentos, prejudicando os cronogramas de pesquisa e, portanto, a conclusão de seus objetivos.

A dependência de produtos importados é um dos grandes entraves da ciência e da indústria brasileira. Um exemplo claro é a área de equipamentos laboratoriais de alta precisão, como espectrômetros e sequenciadores de DNA, além dos reagentes especializados, que são quase totalmente adquiridos no exterior. Além disso, mesmo consumíveis de uso cotidiano em laboratórios são majoritariamente importados, encarecendo a pesquisa e tornando-a vulnerável a crises logísticas internacionais.

A Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT) do Senado Federal relata que 76% dos cientistas brasileiros já relataram terem perdido material científico na alfândega e 99% dos cientistas já relataram ter alterado suas pesquisas devido às dificuldades de importação de reagentes [7]. Essa dependência estrutural resulta em déficits comerciais bilionários e, ao mesmo tempo, impede a consolidação de uma indústria nacional mais sofisticada e competitiva [8]. Embora tenham existido iniciativas pontuais de engenharia reversa em insumos médicos, como as desenvolvidas pela CODETEC [9], esses esforços ainda são tímidos diante da dimensão da dependência externa.

Além de limitar a autonomia científica, essa realidade impacta também a geração de empregos e o fortalecimento do setor industrial no país. É imperativo que ações de incentivo ao desenvolvimento de tecnologia em solo brasileiro sejam disparadas para suprir estas deficiências, ainda mais se considerarmos o crescente número de mestres e doutores formados anualmente no Brasil (67 mil em 2013, 80 mil em 2021) [10]. A falta de planejamento estratégico da ciência faz com que não se tenha exatamente um destino definido para esta mão de obra qualificada. Como consequência, o Brasil perde seus mestres e doutores para o exterior, muito por conta das limitadas perspectivas que estes profissionais têm de futuro no país. Ou seja, investimos na formação de força de trabalho que acabam suprindo, majoritariamente, às necessidades de países desenvolvidos.

A ausência de ciência como política de Estado cobra seu preço e isso foi destacado durante a pandemia. Ao passo que cientistas brasileiras e brasileiros promoveram importantes avanços no campo da ciência básica, por outro lado, nossa capacidade de produzir insumos, testagem e vacinas ficou à mercê do mercado externo. Com muito esforço, avançamos neste campo também, mas relativamente atrasados e muito por conta dos esforços individuais de cientistas. Por outro lado, nações com sistemas de inovação estabelecidos exportaram produtos de alto valor agregado, como as vacinas importadas que compramos, tendo assim lucrado significativas cifras com esta infeliz situação. Um contraste claro com nossa economia baseadas em exportação de commodities.

Defender a ciência como política de Estado começa com educação. A educação básica formal é o alicerce para isso, de forma a estimular o pensamento científico desde a educação infantil. É desta forma que cidadãos desenvolverão base crítica e vocação tecnológica. A educação em ciências e matemática devem ter um peso cultural claro, de forma a estruturar uma fundação sólida. Mas para atingirmos este primeiro objetivo, cujos reflexos aparecerão décadas adiante, é essencial capacitar educadores em ciências, investir em laboratórios funcionais nas escolas, implantar programas de iniciação científica na educação básica e promover a integração das escolas de ensino básico com as universidades.

Tornar a ciência uma política de Estado implica em um compromisso de longo prazo com educação, pesquisa e inovação. Coreia do Sul e Alemanha podem servir de inspiração. Estes países investem com consistência e objetivos claros, superando a dependência de importações e construindo uma base tecnológica e social forte. Sem educação científica desde a base, esse projeto nunca será sustentável. É preciso vontade política, investimento contínuo e estruturação educacional para que o Brasil possa, enfim, competir no século XXI de forma soberana e próspera.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


[1]: https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/noticias/2024/07/dependencia-de-insumos-importados-torna-o-sus-vulneravel-diz-ministra-da-saude-na-5a-cncti

[2]: https://www.ipea.gov.br/cts/pt/central-de-conteudo/artigos/artigos/426-brasil-ainda-importa-90-da-materia-prima-necessaria-para-a-producao-de-vacinas

[3]: https://en.wikipedia.org/wiki/Five-Year_Plans_of_South_Korea

[4]: https://en.wikipedia.org/wiki/South_Korea

[5]: https://www.tatsachen-ueber-deutschland.de/pt-br/alemanha-sinopse/importante-polo-de-conhecimento

[6]: https://www.ipea.gov.br/cts/pt/central-de-conteudo/artigos/artigos/499-evolucao-dos-dispendios-em-pesquisa-e-desenvolvimento

[7]: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2024/02/26/pesquisadores-podem-ter-importacao-simplificada-de-bens-destinados-a-estudos-cientificos

[8]: https://www.brasildefato.com.br/colunista/observatorio-de-politica-externa/2021/09/03/por-que-a-saude-do-brasileiro-depende-tanto-de-importacoes   

[9]: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2021/02/24/entendendo-dependencia-nacional-de-medicamentos-importados

[10]: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/ce/apresentacoes-em-eventos/eventos-2023/arquivos-2023/MercedesBustamanteCapes.pdf

08 ago 25

Aspectos quantitativos e qualitativos da produtividade científica brasileira

"Apesar do volume quantitativo expressivo, o impacto da produção científica brasileira ainda pode ser considerado modesto."
Aspectos quantitativos e qualitativos da produtividade científica brasileira

14 out 24

As proteínas e o Prêmio Nobel de Química

Daniel Martins: "A vida existe por conta das proteínas. Essas moléculas são as principais executoras das funções biológicas"
Artigo sobre proteínas e inteligência artificial, tema desenvolvido pelos ganhadores do Prênio Nobel de Química

27 ago 24

Os futuros caminhos da ciência em São Paulo e no Brasil

"A ciência brasileira, mais madura do que nunca, está em fase de transição. As atuais lideranças científicas elevaram, em escala logarítmica, a qualidade de nossa ciência ..."
Experimento em laboratório da Faculdade de Engenharia Química
Ir para o topo