O editorial “A armadilha das cotas identitárias”, publicado por O Estado de S. Paulo em 11/04/2025, critica a recente decisão da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) de adotar cotas para pessoas trans, travestis e não binárias. Ao fazer isso, o jornal ignora não apenas os dados concretos e os fundamentos jurídicos que sustentam essa política, mas também os princípios constitucionais que regem a construção de uma sociedade mais justa no Brasil.
O editorial parte da ideia de que as cotas para pessoas trans e travestis violariam o princípio da igualdade previsto no artigo 5º da Constituição Federal. No entanto essa interpretação ignora o espírito da Constituição de 1988, que se estrutura sobre o princípio da equidade. A equidade parte do reconhecimento de que não basta tratar todos da mesma forma: é preciso considerar as desigualdades históricas e estruturais que impedem o acesso real a direitos fundamentais. Tratar os desiguais na medida de suas desigualdades é justamente o que torna possível uma verdadeira igualdade.
Nesse sentido, as cotas trans não ferem a Constituição – essas cotas a concretizam. A presença de pessoas trans no ensino superior público é ainda mínima, não por falta de capacidade ou interesse, mas porque essa população enfrenta um ciclo contínuo de exclusões: abandono escolar precoce, ruptura familiar, violência física e simbólica, estigmatização, marginalização social e barreiras institucionais. O relatório do Grupo de Trabalho (GT) das Cotas Trans da Unicamp mostra que essas exclusões são atravessadas por fatores que vão muito além da renda: dizem respeito à identidade e à expressão de gênero, marcando um padrão de exclusão específico e persistente. Tal padrão não se restringe ao empobrecimento e é muito mais severo do que o encontrado entre gays, lésbicas ou bissexuais, pessoas igualmente afetadas por desigualdades baseadas na sua orientação sexual.
O editorial também recorre a um falso dilema ao afirmar que as cotas deveriam se restringir à renda familiar. Ora, o próprio texto reconhece que cotas raciais foram essenciais para ampliar o acesso de estudantes negros às universidades – e justamente porque a desigualdade racial não se resume à pobreza. Da mesma forma, a transfobia estrutural que impacta a vida de pessoas trans não se resolve apenas com critérios econômicos. Reduzir desigualdades complexas a uma questão de renda é ignorar as múltiplas dimensões da exclusão social no Brasil.
Outro ponto de fundamental importância é que as cotas trans da Unicamp não retiram vagas da ampla concorrência. Como explicou o professor José Alves, presidente do GT, em entrevista recente, a política será implementada por meio de vagas adicionais ou ociosas, ou seja, aquelas que não são preenchidas pelos processos seletivos regulares. Trata-se de uma ação afirmativa que amplia o acesso sem diminuir as oportunidades para os demais candidatos.
A aprovação dessa política pela Unicamp ocorreu de forma responsável e democrática: foi fruto de um processo técnico, participativo e ético, culminando em uma decisão unânime do Conselho Universitário (Consu) no dia 1º de abril de 2025. Embora pioneira entre as universidades estaduais públicas paulistas, a Unicamp segue uma trajetória consolidada por outras instituições públicas que já adotaram cotas trans, como a Universidade Federal do ABC (UFABC), a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Universidade Estadual do Paraná (Unespar), a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UnB), entre outras.
O editorial ainda critica o uso de “relatos de vida” no processo de ingresso, questionando a validade da autodeclaração de identidade de gênero. No entanto o Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu a identidade de gênero como direito subjetivo, que não exige laudos médicos ou judiciais para ser validado. Tal reconhecimento acompanha a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a retirada da incongruência de gênero da condição de patologia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) na CID-11.
Os relatos de vida, como parte do processo de autodeclaração, não serão utilizados como critério subjetivo ou moral, mas tão somente para registrar a história de cada pessoa que se habilita para a vaga. Ninguém vai “ganhar” ou “perder” vaga por algum critério discricionário. As universidades que adotam cotas trans têm construído comissões especializadas e critérios claros para garantir seriedade e justiça aos processos seletivos – tudo isso sem desrespeitar a dignidade de quem busca ingressar nesses espaços. Ao apresentar a documentação, a pessoa que se candidata assume o compromisso de fornecer informações verídicas, e a constatação de fraude, mesmo após iniciado o curso, resulta no cancelamento da matrícula. Tais instrumentos têm sido suficientes para coibir fraudes, e isso é o que nos mostram as demais experiências.
É triste que o jornal ignore esses dados, princípios e avanços institucionais. Ao fazer isso, perpetua a ideia de que o vestibular é um espaço neutro, quando, na verdade, ele historicamente favoreceu aqueles que já tiveram acesso a uma educação de qualidade, à proteção social e ao reconhecimento institucional. A suposta neutralidade apenas mantém os mesmos privilégios de sempre.
Além disso, é preciso afirmar com clareza: a excelência da Unicamp não se constrói apesar da diversidade – ela se constrói por meio dela. São os múltiplos olhares, vivências e saberes que alimentam a produção de conhecimento crítico, transformador e socialmente relevante. Incluir pessoas com deficiência, como ocorreu em 2024, e trans, como foi aprovado agora, é ampliar essa riqueza, é expandir os horizontes da universidade pública e torná-la ainda mais comprometida com o futuro que o país precisa construir.
As cotas trans não são um privilégio. São instrumentos de equidade – e, portanto, de justiça. Ao enfrentar desigualdades estruturais com políticas direcionadas, a universidade pública cumpre seu papel constitucional: não o de repetir a exclusão do mundo lá fora, mas o de corrigi-la. Equidade não é um desvio da igualdade: é o único caminho para alcançá-la de fato. Por isso, a decisão da Unicamp não só é legítima – é necessária. E deve ser defendida.
