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Cultura e Democracia na Unicamp

"Em suma, o que vem acontecendo de modo recorrente nas últimas eleições é o reconhecimento da cultura como algo relevante, mas relegada a um lugar secundário na ordem das prioridades."

Nas últimas semanas, foram lançadas as candidaturas que passarão pela consulta da nossa comunidade para a escolha do(a) novo(a) reitor(a) para o mandato do período de 2025 a 2029 na Unicamp. Em geral, as propostas de agenda concentram-se nas questões administrativas (sobretudo no uso do orçamento e nos direitos e deveres de funcionário e docentes/pesquisadores), na pesquisa, na docência e, em alguns casos, em assuntos relacionados à extensão. Temas relacionados à cultura na Universidade são por vezes citados, mas de modo sucinto e invariavelmente complementar aos assuntos da extensão. Em suma, o que vem acontecendo de modo recorrente nas últimas eleições é o reconhecimento da cultura como algo relevante, mas relegada a um lugar secundário na ordem das prioridades.

Recentemente, Carolina Cantarino, minha colega professora da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA), e eu escrevemos um artigo que nos foi encomendado sobre o tema. Diante da importância que acreditamos ter o assunto hoje em dia para a Unicamp, a reflexão que se segue é uma versão adaptada daquele artigo para esta coluna. Apesar de eu assinar individualmente a coluna, o texto que o leitor lerá foi escrito a quatro mãos e passou, é claro, pela anuência da coautora. Acreditamos, agora no plural, que refletir sobre cultura e democracia no ambiente universitário é urgente e necessário, sobretudo nos tempos atuais de polarizações ideológicas e (des)informações a qualquer prova (ou falta de). Esperamos, desse modo, sensibilizar nossa comunidade e as agendas dos candidatos sobre a importância estruturante que a cultura e a democracia têm para as universidades. Vamos à reflexão.

Um lugar institucional

O Plano Nacional da Artes (PNA) de Portugal, lançado em 2019, se define como uma “estratégia” e um “manifesto”. Criado nas áreas governamentais da educação e da cultura, o plano traz um conteúdo temático que aqui no Brasil já vínhamos experimentando desde, pelo menos, 2003 com o nosso Ministério da Cultura (MinC). Isto é, a cultura compreendida como uma dimensão constitutiva da sociedade em suas dimensões simbólica, econômica e cidadã. Em outras palavras, a cultura sob a perspectiva de sua condição ordinária e inexoravelmente necessária, como uma camada intrínseca dos nossos afazeres cotidianos que atravessa as nossas vidas subjetivas e comunitárias. Mas nem sempre foi assim. Por muito tempo, a cultura foi compreendida como uma dimensão puramente material, em sua dimensão patrimonial, e ou como mera fonte de entretenimento.

O que chama atenção no texto do PNA lusitano, no entanto, é o uso da expressão “indisciplinar”. Ora, a palavra “indisciplinar” carrega a ideia de que não se pode colocar a cultura em uma caixinha, ou para o nosso contexto, em uma disciplina acadêmica. O poder indisciplinador da cultura, como diz o texto-manifesto-estratégico, “[…] inquietando, desarrumando e pondo em causa a ordem e certezas habituais, pode abrir um espaço de liberdade para a construção pessoal e coletiva: um lugar e um tempo de questionamento e abertura” (PNA, 2019, p.19). Como sabemos, a gestão pública exige disciplina e infinitas caixinhas. E talvez aí esteja a maior contradição de qualquer gestor e gestora que se proponham a trabalhar com políticas públicas no campo da cultura: o equilíbrio entre o ímpeto indisciplinador, que invariavelmente bate de frente com os processos burocráticos do Estado, e o pragmatismo disciplinar em achar as possíveis frestas para mover uma mínima contraporca que seja de uma máquina institucional pública altamente complexa.

Contudo, uma outra camada surge quando trazemos esse tema para a universidade pública. Pois a institucionalização e a prática da cultura no ambiente acadêmico apresentam uma série de especificidades diferentes daquelas praticadas nos gabinetes de ministérios ou secretarias estaduais e municipais. Em geral, o lugar da cultura se constituiu como um braço das ações da área de extensão que, junto com o ensino e a pesquisa, formaram o tripé em que se estruturaram as universidades públicas no Brasil. Um lugar ambíguo, na realidade, pois como a articulação cultural não era prioridade na agenda acadêmica daquele momento inicial, mais voltada à pesquisa e ao ensino, predominou uma visão tradicional da cultura, isto é, mais patrimonialista (investimento no patrimônio material, como museus e anfiteatros) e utilitária (o fomento a e a difusão de eventos culturais como um fim e não como um meio formativo e articulador do ambiente acadêmico).

Somente nas últimas décadas é que se iniciou um processo, em consonância com as experiências citadas acima do PNA e do MinC, no qual as diversidades e o papel articulador da cultura, para sermos sintéticos, passaram a ocupar a pauta central do diálogo. Não à toa, os processos de institucionalização das diretorias de cultura nas universidades públicas são tão recentes. Em 2022, por exemplo, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foi mais longe e articulou a criação de uma Pró-Reitoria de Cultura, desvinculada da área de extensão. Entre parêntesis: fique claro que, nesse caso, houve uma demanda específica da comunidade acadêmica da UFMG, que se direcionou para esse desenho institucional. Não se deve, é claro, achar que isso seria um objetivo institucional para toda e qualquer universidade.

Contudo, na Unicamp, não foi diferente. Ao longo dos quase 60 anos de existência da Universidade, equipamentos foram criados, a partir de interesses individuais ou coletivos, como o Espaço Cultural Casa do Lago, o Museu de Artes Visuais, o Museu Exploratório de Ciências ou os locais geridos em parceria, como o Centro Cultural Unicamp (CIS-Guanabara). Uma pequena coordenadoria de “ação cultural” era o locus institucional de uma Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários. Somente em 2019, a palavra cultura foi incorporada à Pró-Reitoria de Extensão, que passou a se chamar Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec), e, por fim, foram criadas a Diretoria de Cultura (DCult) e o Conselho de Cultura, com o objetivo de ser um órgão administrativo e uma instância consultiva para abrigar e gerir os equipamentos culturais e o lugar formulador da política cultural da universidade (Deliberação Consu A-030, 2019).

Pois bem, Carolina e eu chegamos em 2021 à recém-criada DCult com o espírito indisciplinado de quem vem de trajetórias teórica, artística e de gestão do campo cultural. O primeiro esforço talvez tenha sido esse, resumido nos parágrafos anteriores: a compreensão do lugar institucional da cultura na Unicamp. Trabalho que herdamos da gestão que nos antecedeu, cuja atuação foi fundamental para a criação da própria DCult e de seu lugar estratégico em nossa Universidade. Um dos primeiros desafios foi dar contorno institucional a um órgão recém-criado e, ao mesmo tempo, fazer uma reflexão sobre outros modos de entendimento para a relação entre cultura e universidade. Nesse sentido, foi necessário realizar um giro epistemológico.

Cultura, política e democracia

Como vimos, o processo de institucionalização do campo da cultura na universidade pública tende a colocar o foco das discussões na gestão cultural e na dimensão institucional da política. Sem dúvida, uma dimensão importante. Mas é preciso lembrar que a gestão na universidade é uma atividade meio, não uma atividade fim. Guardar essa distinção é importante quando se trata de democracia em tempos de neoliberalismo.

Wendy Brown (2019), por exemplo, afirma que a política antidemocrática está relacionada a uma redução da política a um entendimento gerencial. O neoliberalismo busca desdemocratizar o político, substituindo o lugar da deliberação, da contestação, do dissenso e da partilha democrática do poder apenas por gestão, lei e tecnocracia. Há uma valorização da rapidez, da eficiência dos gestores entendida como o alcance veloz do cumprimento de metas e prazos, da obtenção de produtos com foco nas entregas e nas mensurações dos resultados.

A democracia, por sua vez, é lenta. Lenta e trabalhosa porque ela diz respeito ao processo, à participação e à escuta. Trata-se, muitas vezes, de experiências imensuráveis a exigir modos singulares de avaliação que desafiam as métricas e o modo habitual da mensuração concebidos nos termos gerenciais do neoliberalismo.

Essas considerações implicam uma redefinição daquilo que é normalmente visto como o terreno da política e das relações de poder a serem transformados. Implicam a ampliação e o aprofundamento da própria concepção de democracia, de modo a incluir o conjunto das práticas sociais que transcendem o nível institucional. Trata-se aqui de considerar as sociabilidades permeadas pelo que Evelina Dagnino (1994) denomina como autoritarismo social: um ordenamento presidido pela hierarquia e pelas desigualdades de poder que organizam as relações sociais no Brasil.

Nossa referência aqui, portanto, não é somente a garantia de um regime político democrático (entendido na chave liberal), mas a efetividade de uma sociedade democrática. Essa é a discussão que Dagnino (1994) traz para pensar as questões que surgiram no período logo após o fim da ditadura militar, entre os anos 1980 e 1990, justamente quando emergiram e se fortaleceram os chamados novos movimentos sociais – movimento negro, movimento feminista, movimento LGBT e movimento indígena, dentre outros. Muitos, inclusive, irão afirmar que não existe democracia no Brasil. Por quê?

Porque, da perspectiva desses movimentos políticos, precisamos aprofundar e adensar a democracia ou entender que a democracia não diz respeito somente ao funcionamento das instituições. Mas também às relações sociais, às sociabilidades e aos modos de convivência. Nesse contexto é que podemos afirmar, como propõe Dagnino (1994), a existência de um nexo constitutivo entre as dimensões da cultura e da política. Com a emergência de novos sujeitos políticos, torna-se necessário ampliar o espaço da política e enfatizar o caráter constitutivo da transformação cultural para a construção democrática. Deve-se levar em conta que o autoritarismo social, profundamente enraizado e baseado em critérios de classe, raça, etnia, gênero e sexualidade, põe em funcionamento o racismo, o sexismo, o antropocentrismo, a homofobia, a transfobia, dentre outras violências atávicas no Brasil:

“Esse autoritarismo social engendra formas de sociabilidade e uma cultura autoritária de exclusão que subjaz ao conjunto das práticas sociais e reproduz a desigualdade nas relações sociais em todos os seus níveis. Nesse sentido, sua eliminação constitui um desafio fundamental para a efetiva democratização da sociedade” (Dagnino, 1994, p. 105).

E o que seria essa efetiva democratização da sociedade? Bem, ela deveria se constituir como uma proposta de sociabilidade. Novas formas de sociabilidade com um desenho mais equânime das relações sociais, e não apenas como assimilação e como inclusão ao sistema político no seu sentido estrito. Um processo de aprendizado social, de construção de novas formas de relação, que inclui de um lado, evidentemente, a constituição de cidadãs e cidadãos enquanto sujeitos sociais ativos, mas também, de outro lado, para a sociedade como um todo. Um aprendizado de convivência com as cidadãs e os cidadãos que se recusam a permanecer nos lugares hierarquizados que foram definidos socialmente e culturalmente para eles. Em suma, políticas de ação afirmativa e a transformação da universidade.

Cultura e diversidade epistêmica

Considerando, portanto, esse nexo constitutivo entre a cultura e a política, a democracia exige uma transformação cultural no que diz respeito ao combate do autoritarismo social organizador das relações sociais. Como nos lembra Jacques Rancière (1996), democracia e política dizem respeito ao dissenso e não ao consenso. Isto é, dissenso em relação às hierarquizações, às posições sociais, aos lugares e às competências estabelecidos pelo poder.

É dentro desse percurso conceitual que a cultura pode ser compreendida como um lugar de valorização de outros modos de conhecimento presentes na universidade. Entendida como o lugar da garantia, da promoção e do exercício da diversidade epistêmica. A cultura pode, assim, criar condições institucionais e políticas para a presença de outros modos de conhecimento na pesquisa, no ensino e na extensão. É desse modo, inclusive, que compreendemos a transversalidade da cultura.

E aqui é importante pararmos para pensar: quando falamos de diversidade epistêmica, estamos preferindo falar de conhecimento em vez de falar de cultura; estamos preferindo falar de saberes tradicionais, saberes ancestrais indígenas, africanos, afrodiaspóricos e afroindígenas em vez de culturas. Por quê?

Primeiro, para evitar uma oposição hierarquizada (de poder) entre expressões que seriam remetidas apenas ao campo do simbólico e das representações (como fazem o multiculturalismo e a diversidade cultural) e deixar que a ciência seja considerada, desse modo, como o único conhecimento a ter efetivamente acesso à realidade e/ou à natureza. Parêntesis: aqui estamos diante do dualismo epistemológico entre natureza e cultura característico da longa tradição da modernidade colonial, em suma, do pensamento ocidental ainda dominante na universidade. Isto é, “nós, cientistas,” fazemos ciência enquanto “os outros” fazem cultura.

Segundo, para novamente evitar uma outra oposição: aquela entre sujeito e objeto. Nessa hierarquia de poder, os “outros” que supostamente só fazem cultura são incluídos na universidade na condição de “informantes” ou “objetos de pesquisa” ou ainda pontualmente presentes na universidade em ações culturais, geralmente colocados em uma situação de entretenimento nos intervalos dos eventos acadêmicos. Isso cria uma distinção sutil (mas nem tanto!) entre o que deve ser efetivamente levado a sério e o que não deve ser.

Pois bem, diante disso, quais são as outras possibilidades que podemos criar para a cultura na universidade? Como podemos efetivamente respeitar esses modos de conhecimento e de vida?

Antes de tudo, algo que poderíamos chamar, como sugerem Edgar Neto e Marcio Goldman (2022), a “arte do respeito”, muito diferente da tolerância, com base em uma transformação cultural: 1) falar em modos de conhecimento, de pensamento, de multinaturalismo ao invés de multiculturalismo; 2) reconhecer os sujeitos produtores e produtoras de outros modos de conhecimento como parceiros e parceiras na pesquisa, no ensino e na extensão, ou seja, como pesquisadores e pesquisadoras, também atuando no ensino (como professores e professoras) e na extensão (em um movimento que vai da sociedade para a universidade ao invés da habitual direção da universidade à sociedade).

A Universidade pode e deve se tornar pluriepistêmica, ser um espaço-tempo propiciador de encontros entre diferentes conhecimentos, científicos e não científicos, a partir dos quais novos conhecimentos podem emergir.

Mãos à obra

Como conclusão, gostaríamos de listar algumas ações afirmativas e de diversidade epistêmica que já estão em prática ou virtualmente incubadas na Unicamp e que podem ou poderiam passar pelo lugar estratégico institucional de uma Diretoria de Cultura e sua formulação de política cultural na Universidade:

– Política de cotas epistêmicas e adoção de instrumentos e procedimentos para valorizar e reconhecer os chamados notórios saberes de mestres e mestras de conhecimentos tradicionais, africanos, afrodiaspóricos, indígenas e afroindígenas como continuação das cotas étnico-raciais e do Vestibular Indígena na Unicamp;

– Política de cotas étnico-raciais para docentes;

– Concepção ampliada de permanência estudantil: formulação de políticas culturais que respeitem os estudantes nas suas diferenças em vez de obrigá-los/las a incorporar um violento ethos assimilacionista sob o argumento da manutenção da excelência acadêmica e do mérito, que tende a desqualificar tudo o que eles e elas vivem e viveram/conheceram antes ou fora da Universidade;

– Construção de espaços de convivência dentro da Universidade, como a Casa dos Saberes Ancestrais, que propiciem diferentes sociabilidades na Universidade fortalecida como espaço público.

    Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


    Referências bibliográficas

    BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.

    Comissão Executiva do Plano Nacional das Artes et all. Plano Nacional das Artes: uma estratégia, um manifesto (2019-2024). Lisboa, junho de 2019. (Acesso em 07/10/2024).

    Deliberação CONSU A-030, 2019, Universidade Estadual de Campinas, 28 de setembro de 2019. (Acesso em 07/10/2024).

    DAGNINO, Evelina (org.) Anos 90 – Política e Sociedade no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

    RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras; Brasília, DF: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996.

    NETO, Edgar Rodrigues Barbosa e GOLDMAN, Marcio. “A maldição da tolerância e a arte dos respeito nos encontros de saberes – 2a. Parte”. In: Rev. antropol. São Paulo: v.65 n.1, 2022.

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