No âmbito dos debates da COP-16 – a 16a Conferência das Partes, organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), com foco na biodiversidade –, os povos indígenas brasileiros afirmam que, “se depender de nós, o céu não irá desabar”. Em carta lançada no último dia 26, oito organizações que representam povos indígenas de norte a sul, ao descreverem as crises de biodiversidade e do clima, defendem que “a resposta somos nós”:
“Nós dizemos que as nossas sabedorias ancestrais nos dão essa capacidade de preservarmos o nosso território, o nosso habitat e com isso ajudar a preservar a biodiversidade do planeta […]. Faz-se necessário que o mundo e o nosso país tenham o convencimentodisso. Sem território demarcado, sem terra demarcada, não há biodiversidade”.[1]
Qual é o efeito desse posicionamento para uma transição de paradigma científico e tecnológico?
Em abril de 2020, no auge da pandemia de covid-19, a professora Sheila Jasanoff debateu a complexidade das múltiplas crises que o mundo vivia sob a ótica dos estudos sociais da ciência e da tecnologia. Fundadora e diretora do programa Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) da Universidade de Harvard (Estados Unidos), ela apresentou os desafios de se enquadrar “a solução” para uma crise de dimensões sociais, ambientais, econômicas, políticas e sanitárias. Havia uma percepção pública generalizada de que, uma vez desenvolvida a vacina para o vírus, “o problema” estaria resolvido. Nas palavras dela: “A ideia de que a ciência vem em um cavalo branco e de que, o quanto antes um problema é detectado, tanto antes você tem uma solução científica, isso é uma miragem”.
Uma miragem significa um fenômeno físico real, ou seja, não deve ser confundida com uma alucinação. Contudo, a miragem mostra uma imagem que sofreu algum tipo de desvio ou alteração por condições externas (a luz do sol, a água, o vento) e que não corresponde ao modo habitual como vemos a realidade. A miragem de uma ciência salvadora que chega com soluções universais resulta de um paradigma científico e tecnológico que se consolida no início do século XIX, acompanhando a Revolução Industrial, e cuja neutralidade e linearidade representam suas características principais. Os cientistas ocidentais e ocidentalizados são os únicos atores que produzem conhecimento, configurando uma “República da Ciência”, e o foco da política científica – o que os governos decidem fazer ou não no que tange à orientação da produção científica – é exclusivamente o fortalecimento da capacidade de pesquisa interna dos institutos e universidades que reproduzem os métodos da ciência ocidental.
Pode parecer, à primeira vista, que o universalismo da ciência ocidental é, sim, o modo habitual pelo qual vemos as coisas. Porém, quando tomamos em conta o estudo da diversidade de ontologias, epistemologias e ciências existentes no mundo, o universalismo aparece como a exceção. Um viés gerado pelos efeitos ideológicos do colonialismo ocidental. Como afirma Manuela Carneiro da Cunha, apenas a ciência hegemônica ocidental tem a pretensão de unidade e universalidade, enquanto os “conhecimentos tradicionais” são tão diversos em seus regimes de conhecimento – modos de produção, protocolos e acervos – quanto os povos que os praticam. O olhar habitual, a atitude mais presente nas diversas ciências dos povos indígenas, é o que Gersem Baniwa chama de “cosmovisões baseadas na complementaridade dos conhecimentos”. A percepção de si como limitada e compatível com outras ciências, inclusive a ocidental. O antropólogo indígena da Universidade de Brasília (UnB) frisa que os conhecimentos tradicionais são ciências: “Esse é o desafio e o ideal de uma interculturalidade mais radical, ou de uma interepistemologia ou intercientificidade, muito além da interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade que ainda é espelho da colonialidade”.
Dados de 2023 da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que 67% da população mundial recebeu uma série completa de vacina contra a covid-19. No Brasil, esse número chega a 87%, e o monitoramento sobre a efetividade e a eficácia da vacina é feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com diversos artigos e publicações demonstrando os benefícios para a saúde pública e a preservação da vida. Nesse caso, a vacina e seus efeitos não representam uma miragem. A miragem é a resolução da crise sanitária, política, econômica e social por meio da vacina. O problema era o vírus ou a falta de água para lavar as mãos? O problema era a falta de água ou a situação fundiária de territórios tradicionais e de comunidades periféricas?
Quatro anos após o primeiro caso de covid-19, o cenário de múltiplas crises permanece, como descrito na carta em que a crise da biodiversidade e do clima recebeu destaque. A garantia das necessidades básicas virá por meio de quais ciências? As respostas para as mudanças climáticas virão de quais lugares? Os caminhos para “reduzir em 50% a taxa de perda de biodiversidade até 2030” (Acordo Kunming-Montreal) e para “limitar o aumento da temperatura global para bem abaixo de 2 °C em relação aos níveis pré-industriais e esforçar-se para limitá-lo a 1,5 °C” (Acordo de Paris) serão produzidos por quais atores?
Ao se posicionarem como atores relevantes na produção de respostas e soluções, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a Apoinme, o Conselho do Povo Terena, a Aty Guasu, a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sudeste (Arpinsudeste) e a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul) apontam para outros paradigmas científicos e tecnológicos. Ao dizerem “a resposta somos nós”, os povos indígenas brasileiros trazem subsídios para a construção de novos diálogos, nos quais redes de atores institucionais e populares produzem soluções técnicas e científicas para a superação dos desafios socioambientais. Essas redes de atores também devem participar ativamente da análise e da avaliação das políticas científicas, concretizando o pilar de participação pública nas chamadas “políticas de inovação orientadas por missões”.
Será que a nova revolução científica virá dos povos indígenas, dos quilombolas, dos povos e comunidades tradicionais, dos agricultores familiares e das comunidades periféricas? O imaginário do cavalo branco chegando com a solução será pintado de quais cores?
Como afirma a professora Manuela Carneiro da Cunha, a “ciência viva” produzida por essa pluralidade de grupos e sujeitos demanda condições de produção. As suas formas sociais, suas instituições, e especialmente os territórios precisam ter os seus direitos garantidos. Para que possamos ouvir as respostas e os caminhos de superação das crises, é obrigação do Estado brasileiro investir nessas ciências acolhendo-as com ações afirmativas e apoiando experiências como as universidades indígenas. Uma obrigação que se inicia com a suspensão imediata da Lei 14.701/23 e da PEC 48/2023 – dispositivos do marco temporal para demarcação de terras indígenas.
Voninho Guarani Kaiowá, liderança da delegação da Apib na COP-16, na sua fala na mesa do dia 21 de outubro na Câmara de Comércio de Cali (Colômbia), disse que não sabia se ia estar vivo na próxima COP, uma vez que é ameaçado de morte – “Já tentaram me matar três vezes”. Apoiar as ciências vivas é, também, garantir a vida dos seus sujeitos. O Brasil pode se tornar um país pioneiro se criar as condições para a coprodução intercientífica de soluções.
[1] Fala de Alberto Terena, coordenador executivo da Apib e representante do Conselho Terena para Lara Ramos no dia 01/11/2024, a convite desta matéria.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
Bibliografia
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ARJINI, Nawal. Science will not come on a white horse with a solution. The Nation, 2020. Acesso em 03/11/2024.
BANIWA, Gersem. Educação e povos indígenas no limiar do século XXI. In: BANIWA, G. Educação escolar indígena no século XXI: encantos e desencantos. Rio de Janeiro: Mórula, Laced, 2019. cap.2, p. 59-102. Acesso em 03/11/2024.
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Leda Gitahy é professora do Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp – e-mail leda@unicamp.br
Lara Ramos é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica do IG e-mail lara.ramos@ige.unicamp.br
Guilherme Gitahy de Figueiredo é professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) – e-mail gfigueiredo@uea.edu.br.