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Por que a Alemanha aboliu a cobrança de mensalidades menos de uma década após implementá-las?

Flávio Ferreira: "Governos que aboliram as mensalidades mantiveram-se no poder, enquanto aqueles que resistiram enfrentaram a rejeição nas urnas"

Em outubro de 2014, há dez anos, a Baixa Saxônia (um Estado do noroeste da Alemanha) deu início ao primeiro semestre acadêmico pós-abolição da cobrança de mensalidades em suas instituições de ensino superior, tornando-se o último ente da federação alemã a proibir essa prática. Essa data marcou a restauração da gratuidade da educação superior em todo o país[i]. A experiência dos alemães com a cobrança de mensalidades pode ser um bom ponto de partida para ampliar o debate sobre a importância da defesa ativa do princípio da gratuidade na educação superior.

Antes de passar para o tema em si, é importante apresentar um breve histórico sobre a educação superior na Alemanha, considerando aspectos relevantes para essa discussão: a estrutura e a dinâmica do federalismo alemão e a predominância do setor público na oferta e no financiamento da educação superior no país.

A Constituição da Alemanha (Lei Fundamental) de 1949 garantiu autonomia aos Estados nos assuntos culturais e educacionais, excluindo o governo federal dessas responsabilidades, o que inclui o seu financiamento. No entanto as mobilizações estudantis da década de 1960, especialmente durante os protestos de 1968[ii], pressionaram o país a implementar uma série de reformas educacionais de alcance nacional, especialmente de ampliação da oferta de vagas. Nos anos seguintes, a pressão gerada pelo aumento dos custos da expansão do ensino superior exigiu uma maior colaboração entre os governos federal e estaduais a fim de ampliar as universidades e financiar pesquisas. Esse processo culminou na promulgação da Lei de Diretrizes das Instituições de Ensino Superior (Hochschulrahmengesetz – HRG), em 1976. Essa lei regulamentou em nível federal as funções das universidades, o acesso aos cursos e a administração acadêmica, sem abordar, contudo, a questão do financiamento e, portanto, das mensalidades.

Até 1970-71, os estudantes pagavam mensalidades, mas a gratuidade foi gradualmente introduzida, inicialmente por meio de bolsas e empréstimos, passando depois para o financiamento público total. A gratuidade nasceu no interior de uma tensão entre as mobilizações que reivindicavam a democratização do acesso ao ensino superior e as dificuldades financeiras enfrentadas pelos Estados alemães. Ela foi conquistada no âmbito dos próprios Estados e universidades. Após duas décadas sem cobranças, no final da década de 1990 a questão das mensalidades voltou ao debate, levando à reintrodução parcial de taxas para estudantes que ultrapassavam o tempo regular de conclusão dos cursos. Aos poucos leis locais foram ampliando o alcance dessas taxas em alguns Estados.

Em 2002, a Assembleia Federal da Alemanha aprovou uma alteração na HRG, com o objetivo de frear a transferência de custos para estudantes e suas famílias, proibindo a cobrança de mensalidades para todos os alunos, incluindo os estrangeiros. No entanto alguns Estados contestaram a medida, alegando violação da autonomia estadual. Em 2005, o Tribunal Constitucional Alemão decidiu que os Estados poderiam cobrar taxas de matrícula semestrais nas universidades públicas, argumentando que isso fortaleceria o financiamento das instituições e garantiria a qualidade do ensino.

Sala de aula no Ciclo Básico no campus de Campinas da Unicamp; em 2005, o Tribunal Constitucional Alemão decidiu que os Estados poderiam cobrar taxas de matrícula semestrais nas universidades públicas
Sala de aula no Ciclo Básico no campus de Campinas da Unicamp; em 2005, o Tribunal Constitucional Alemão decidiu que os Estados poderiam cobrar taxas de matrícula semestrais nas universidades públicas

A decisão, de ampla repercussão, permitiu que os Estados adotassem cobranças de até 1.000 euros por semestre. Estados como Baden-Württemberg e Baviera rapidamente implementaram a medida. Os defensores argumentavam que essas taxas ajudariam a aliviar os cofres públicos e melhorar a infraestrutura universitária. E explicavam ainda que a medida seria temporária e de baixo custo em relação aos benefícios esperados. O Ministério da Educação Federal também apoiou a iniciativa, afirmando em diversos relatórios que as taxas seriam uma forma justa de redistribuir os custos da educação superior.

A reação dos estudantes à cobrança de taxas universitárias na Alemanha foi rápida e intensa, resultando em algumas das maiores manifestações estudantis do país, entre 2005 e 2008. Dezenas de milhares de alunos se mobilizaram em cidades como Hamburgo, Munique e Frankfurt, argumentando que as taxas prejudicavam o acesso de jovens de famílias de baixa renda às universidades. As mobilizações surtiram efeito e, Estado a Estado, restabeleceu-se a gratuidade.

Quando se recupera esse contexto, fica claro que dois fatores foram decisivos para o fracasso da cobrança de mensalidades na Alemanha: a pressão popular intensa, especialmente a mobilização estudantil, e os péssimos resultados dessa política em termos do acesso e da democratização da educação superior.

Como destacou Howard Hotson em uma matéria publicada no THE de fevereiro de 2014[iii], a resistência democrática foi um elemento fundamental nesse processo. Ele descreve que em Hesse, por exemplo, os estudantes realizaram protestos em massa e conseguiram reunir 70 mil assinaturas, forçando o partido da União Democrata-Cristã (CDU, na sigla em alemão) a mudar de postura em 2008 a fim de garantir sua reeleição. Esse movimento contra as taxas se espalhou rapidamente, levando outros Estados a seguirem o exemplo de Hesse.

Governos que aboliram as mensalidades mantiveram-se no poder, enquanto aqueles que resistiram enfrentaram a rejeição nas urnas. A pressão sobre os líderes políticos, como o primeiro-ministro conservador da Baviera, que viu seu partido ameaçado por um referendo sobre taxas[iv], culminou na eliminação das mensalidades em um curto espaço de tempo, marcando o fim dessa breve experiência da Alemanha com taxas universitárias.

Quanto aos resultados, Ralf Minor[v] mostrou que a cobrança de taxas de matrícula nas instituições de ensino superior alemãs entre 2006 e 2014 teve um impacto negativo significativo nas matrículas de novos alunos. Segundo uma pesquisa publicada no Journal for Labour Market Research, houve uma redução de 3,8% a 7% no número de matrículas nas instituições que cobraram essas taxas, em comparação com aquelas que mantiveram o ensino gratuito. As mulheres foram mais afetadas que os homens, com uma queda de 8,72% na quantidade de matrículas femininas, enquanto que, para os homens, a redução foi de 5,78%. Além disso, a cobrança de mensalidades não foi associada a melhorias na qualidade de ensino percebida[vi], ou melhorias na igualdade social[vii].

Antes de passar para a segunda parte da resposta para a pergunta do título (“o que podemos aprender com isso?”) é necessário reforçar o que já foi tratado recentemente pelo professor Lalo Watanabe[viii] e pelo professor Nelson Amaral[ix]: a apropriação de qualquer experiência internacional para fundamentar e/ou orientar análises sobre a situação brasileira deve levar em consideração a nossa história e as diversas esferas de constituição da nossa sociedade. As distâncias entre a realidade brasileira e a alemã são enormes, desde os aspectos históricos e geográficos evidentes e a constituição e a realidade social e econômica até as diferenças políticas, no caso específico do tema deste texto, especialmente aquelas relacionadas ao pacto federativo, aqui e lá. Portanto, não se trata de fazer qualquer transposição de experiências, mas de reconhecer que no interior de todas essas diferenças existem elementos que podem nos ajudar a melhor conhecer, interpretar e intervir em nossa realidade.

Primeiramente, é necessário destacar que mesmo em um país com melhores condições socioeconômicas do que as brasileiras, em geral, e com uma educação superior na qual aproximadamente 90%[x] das matrículas ocorrem em instituições públicas (no Brasil, esse número é próximo de 20%[xi]), com taxas de matrícula consideravelmente superiores às brasileiras, o impacto negativo das mensalidades sobre a democratização do acesso à educação superior foi grande. Os impactos negativos sobre um país com as atuais características do Brasil podem ser catastróficos, o que reforça a necessidade de cuidado com experimentos arriscados, mesmo que pontualmente localizados.

A gratuidade é um valor importante tanto para a sociedade brasileira quanto para a alemã, como ficou claro nas mobilizações que restabeleceram o ensino gratuito por lá. Não podemos deixar de enfatizar que a educação, para cumprir o seu papel social, não pode ser tratada como um privilégio reservado a quem pode pagar. Quando criamos barreiras financeiras, estamos ignorando o impacto que isso tem sobre a igualdade de oportunidades. Essa convicção deve estar viva no conjunto da sociedade, que ao sinal de qualquer ameaça não pode relutar em se expressar veementemente. Na Alemanha, o reconhecimento legal federal da gratuidade (HRG) não foi suficiente para impedir que manobras jurídicas e ações de governos locais conservadores enfraquecessem gradualmente esse direito. No Brasil, a gratuidade da educação superior é garantida constitucionalmente, o que lhe confere maior proteção jurídica. No entanto essa salvaguarda, por si só, não basta para evitar que ataques recorrentes possam limitar direitos, caso não haja uma mobilização rápida e contundente contra qualquer ameaça ao pacto formalizado na Constituição Cidadã.

As mobilizações na Alemanha se basearam em dados amplamente divulgados sobre os impactos negativos da cobrança de mensalidades, como o endividamento estudantil, a exclusão social, o aumento das desigualdades e as dificuldades financeiras das instituições com a queda progressiva de receitas com impactos sobre a qualidade acadêmica. Esses fatos alimentaram as mobilizações e deram argumentos sólidos para avançar em suas reivindicações. No Brasil, não precisamos esperar os prejuízos acontecerem. É necessário mostrar que esses efeitos já são conhecidos internacionalmente. Essa deve ser uma frente de engajamento da academia e da imprensa, mas não só delas. Fazer uma boa leitura das experiências históricas (nossas e dos outros) não nos deixa imunes às tentativas de privatização da educação, especialmente em países como o Brasil, onde os ataques à educação pública, gratuita e socialmente referenciada são recorrentes. Não podemos ignorar os riscos, pois as consequências podem ser duras. A experiência alemã com a reversão da cobrança de mensalidades nos mostra que a busca por complementar o financiamento da educação superior por meio de cobranças diretas tendo por alvo os estudantes pode criar mais problemas do que soluções.

Flávio Batista Ferreira é bacharel e licenciado em História e mestre em educação pela Unicamp e doutor em ensino superior pela Universidade de São Paulo (USP). Atua como assistente técnico da Controladoria Geral da Unicamp.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


[i] Apesar do reconhecimento da gratuidade do ensino superior na Alemanha, alguns Estados ainda mantêm cobranças de taxas administrativas, conforme estabelecido em suas Leis Estaduais das Instituições de Ensino Superior (Landeshochschulgesetz – LHG). O valor dessas taxas, as regras e os procedimentos de cobrança variam de Estado para Estado, mas geralmente são destinados a cobrir serviços de administração estudantil e a manutenção das infraestruturas das próprias instituições. Essas taxas têm natureza semelhante a daquelas cobradas pela própria Unicamp (Deliberação CAD-A-030/2022), apesar de estas terem regras e procedimentos de apuração e cobrança diferentes. Além disso, os estudantes devem arcar com o custo do Semesterticket, que garante acesso ao transporte público e contribuições para o Studentenwerk, órgão responsável por oferecer suporte social e administrativo aos alunos.

[ii] https://dossiers-bibliotheque.sciencespo.fr/voir-plus-loin-que-mai-les-mouvements-etudiants-dans-le-monde-en-1968/1968-germany#toc-a-democratic-movement

[iii] HOTSON, Howard. Germany’s great tuition fees U-turn. Times Higher Education, Londres, 13 fev. 2014. Disponível em: https://www.timeshighereducation.com/news/germanys-great-tuition-fees-u-turn/2018274.article. Acesso em: 02 out. 2024.

[iv] https://www.sv.tum.de/en/sv/what-we-do/projects/project-archive/tuitions/the-abolition/

[v] MINOR, Ralf. How tuition fees affected student enrollment at higher education institutions: the aftermath of a German quasi-experiment. Journal for Labour Market Research, v. 57, n. 1, p. 28, 2023.

[vi] GAWELLEK, B.; SINGH, D.; SÜSSMUTH, B. Tuition fees and instructional quality. Economic Bulletin, v. 36, n. 1, p. 84-91, 2016.

[vii] BAHRS, M.; SIEDLER, T. University tuition fees and high school students’ educational intentions. SOEPpapers on Multidisciplinary Panel Data Research, n. 1008. Deutsches Institut für Wirtschaftsforschung (DIW), 2018.

[viii] https://youtu.be/2oqgWC2qGSY

[ix] https://www.cartacapital.com.br/educacao/os-falsos-mitos-que-ancoram-a-cobranca-de-mensalidades-por-universidades-publicas-segundo-pesquisador/

[x] A Alemanha tinha em 2022/2023, 2.868.311 estudantes matriculados na educação superior, dos quais 2.503.289 (87,27%) em instituições públicas e 365.022 (12,73%) em instituições privadas, segundo o Escritório Federal de Estatísticas (Destatis). Ver: https://www.destatis.de/EN/Themes/Society-Environment/Education-Research-Culture/Institutions-Higher-Education/_node.html

[xi] Segundo o Censo da Educação Superior (do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, Inep) de 2023, o Brasil tinha 9.977.217, do quais 2.069.366 (20,74%) em instituições públicas e 7.907.851 (79,26%) em instituições privadas. Ver: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-da-educacao-superior/resultados

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