A certa altura do documentário sobre Chico Buarque Uma palavra (RWR, 2005), dirigido por Roberto de Oliveira, há um corte em que aparece uma tela com a legenda: “Vôo 6571 Malév Hungarian Airlines Zurique – Budapeste”. Surge então a imagem de Chico sentado em sua poltrona no avião sendo interrogado por um interlocutor:
– Você fica assim preocupado de chegar na Hungria, tem alguma preocupação? Chico responde e o diálogo prossegue:
– É… Tô um pouco ansioso, né?
– Você fica preocupado com o que eles estão achando do livro?
– Não, não. Eu fiquei pensando muito na cidade, né?
– Você tem medo de se decepcionar?
– Não sei o que que é…
Chico olha com certo ar enfadonho para o interlocutor oculto como se não quisesse mais falar sobre o assunto. Mas continua:
– O negócio do livro é a cidade de Budapeste, mas é a língua também, é essa coisa da língua, não é? Desde o aeroporto… É… Começou a ficar esquisito… É estranho, né?
O compositor e dublê de escritor (ou o contrário?) nunca havia ido para Budapeste. Mas escreveu um romance, Budapeste (Companhia das Letras, 2003), no qual boa parte do enredo se passa na cidade. Uma cidade minuciosamente pesquisada, mas também imaginada. Em um outro trecho do documentário, o autor revela o seu processo de escrita:
– Eu estava muito temeroso de chegar aqui. Eu fiquei por muito tempo, dois anos, imaginando essa cidade, imaginando e um pouquinho também… também consultando… E o que é engraçado é que chegando aqui eu fui ver que muitas coisas que é… (pausa). O livro não tem compromisso com a realidade, muitas coisas… A ficção e a realidade estão se misturando o tempo todo. E chegando aqui eu fui constatar que muitas coisas que escrevi em base em pesquisas estavam erradas. Por exemplo, […] o jornal em que o meu protagonista anunciou aos domingos, o jornal não sai aos domingos! […] E, por outro lado, coisas que eu tinha imaginado são reais. Isso é espantoso. Por exemplo, eu inventei a casa da professora húngara, eu inventei o nome da rua. […] Tot é uma rua inventada. E aí conversando com o tradutor ele me disse: “Engraçado. Essa pequena rua existe e fica perto de uma estação de metrô”.
Ficção e realidade é um tema que alimenta desde sempre a própria literatura. Isso não é novidade. O que me chama atenção é o modo como Chico Buarque opera esse processo. Mais do que isso. No seu caso trata-se propriamente de uma poética que parece ser um eixo importante a percorrer e estruturar boa parte da sua obra. Seja nas canções quando assume a “voz” feminina (“Olhos nos olhos”, 1976) ou a perspectiva da criança em situação de rua (“Pivete”, 1978), seja quando o tema surge explícito, como em “Sonhos sonhos são” (Sei que é sonho/ Incomodado estou, num corpo estranho/ Com governantes da América Latina, 1998). Nos romances, além de Budapeste, Estorvo (1991), Benjamin (1995), Leite derramado (2009), Essa gente (2019) e, sobretudo, O irmão alemão (2014), ficção e realidade sempre se embaralham. Nas peças, o melhor exemplo dessa poética está em Roda Viva (1967), na qual o grande astro da música (ele próprio) é engolido pelo sistema. Enfim, são inúmeros exemplos. Pesquei apenas o que me veio de pronto à memória.
Chico, octogenário, acaba de lançar Bambino a Roma (2024). Talvez os desavisados que passarem por uma vitrine de livraria vão dizer: “Olha lá o velho artista consagrado agora resolveu escrever suas memórias de infância!”. Sim, é verdade. Mas também não é. Na capa aparece estampada a imagem da criança Chico (lá com seus oito ou nove anos). Acima da imagem, o título e, entre esse e o nome do autor, a referência ao gênero: “Ficção”. A indicação sobre o gênero não aparece na capa de suas outras peças literárias. É um pressuposto que sejam romances, novelas, peças ou contos, isto é, escritos ficcionais. Mas, neste, trata-se de uma autobiografia que, em geral, narrada em primeira pessoa, é um gênero próprio da literatura como, por exemplo, O diário de Anne Frank, escrito em tom confessional, ou Diários da presidência, de Fernando Henrique Cardoso, escrito em prosa oficialesca como quem quer escrever a História (com agá maiúsculo mesmo) definitiva.
A capa, portanto, nos dá o indício do curto-circuito em que vamos entrar. Somam-se a isso diversas fotos reais e imagens de bilhetes, que vão aparecendo ao longo do livro. Personagens que pareciam ficcionais se tornam reais quando nos deparamos, por exemplo, com a reprodução de um bilhete endereçado ao autor das memórias. No início, o narrador é um tanto quanto formal e me pareceu meio duro na prosa, o que me fez desconfiar da qualidade narrativa. Por exemplo: “Coppi, eu já não podia ignorar quem era Fausto Coppi, o maior ciclista de todos os tempos. Porque no começo pensei que coppi fosse tampinha de garrafa em italiano” (p. 13). Será que Chico, sempre tão astuto e irônico em suas narrativas, deixou-se levar pelo gênero autobiográfico clássico e vestiu casaca para contar suas memórias? Não, é claro que não. Aos poucos a narrativa vai ganhando humanidade e complexidade e percebemos (ufa!) que se trata de um jogo absolutamente honesto e sincero do autor expondo um mal-estar ficcionalmente sonhado ou realmente sofrido de um alter ego que escreve a sua própria história. Aí está a emoção, como observou Arthur Nestrovski, “Da ideia quando ginga” (verso da canção “O Futebol”, de 2006).
São narrados os temas clássicos de qualquer autobiografia: o despertar para o sexo, os conflitos juvenis (aqui agravados pela condição estrangeira), as relações familiares na figura das mulheres (mãe e irmãs) e a complexa imagem do pai – figura de presença oblíqua na persona de um professor convidado para dar aula na Universidade de Roma. Figura essa, no entanto, a respeito da qual Chico, quando encontra por acaso Alle Radici del Brasile em uma livraria, sai ao berros pela rua gritando: “É o livro do meu pai, é o livro do meu pai!”, como se esse fosse um contato presente com um pai sempre ausente trancado em sua biblioteca.
Livros livros são. A presença dos livros nas memórias de Chico parece humanizar e trazer um lugar estruturante de sua personalidade. E aqui a economia geral que rege a arquitetura de Bambino a Roma se revela: de uma narrativa calcada no “real”, característica do gênero confessional autobiográfico, o texto se transforma em uma novela com direito a torneios típicos das narrativas ficcionais. Torneios em que, por exemplo, um personagem que foi realmente o grande amigo italiano do bambino Chico em Roma reaparece no final do livro, transformado em um bêbado de rua reconhecido pelo autor quando volta à cidade já adulto. Um dispositivo narrativo típico de ficção. E que Chico Buarque, como ninguém, arquitetou com maestria desde o início.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.