No final de abril, fomos informados sobre as fortes chuvas no sul do Brasil. Em poucos dias, o índice pluviométrico esperado para a época foi ultrapassado, gerando cenários devastadores em vários municípios gaúchos. Devido ao volume de chuvas, a barragem da Usina Hidrelétrica 14 de julho, que se localizava nos municípios de Cotiporã e Bento Gonçalves, rompeu-se (já havia sido emitida ordem de evacuação do local pelo risco iminente). Desde então, mais de 400 cidades foram atingidas, entre elas a capital Porto Alegre e sua região metropolitana. As imagens aéreas divulgadas em reportagens jornalísticas mostram o centro histórico da capital gaúcha completamente tomado pelas águas barrentas da inundação, resultado do aumento do nível do rio Guaíba, que atingiu sua altura máxima (5,33m), desde a enchente histórica de 1941. Até o momento, os dados contabilizam 1,4 milhão de pessoas afetadas, 120 mil desalojadas, 90 mil em abrigos, 100 mortes de pessoas registradas e 130 pessoas ainda desaparecidas.[1] Os números são alarmantes. Há relatos sobre crianças separadas de suas famílias aguardando em abrigos pelo reencontro, e muitos resgates de animais de estimação e de criação sendo ainda realizados.
Em meio a tantas fake news que povoam as redes virtuais de comunicação, é importante destacar a ação do Governo Federal, que atua com mais de 14 mil pessoas, entre militares, membros do Ministério da Justiça, da defesa civil, da saúde e da assistência social[2], aliando-se ao trabalho de voluntários diversos. A mobilização conta com helicópteros, barcos e viaturas para promover o salvamento de pessoas ilhadas em suas próprias casas, transportar mantimentos, garantir a segurança e o que mais for preciso. Os vídeos e as fotos de pessoas e animais se equilibrando em telhados sendo resgatados em helicópteros ou barcos rapidamente geraram uma onda de solidariedade na sociedade civil, promovendo redes de doações de água potável, roupas, cobertores, ração, materiais de higiene e limpeza e tantos outros itens que foram levados pelas águas. Dadas essas circunstâncias, o Congresso e o Senado reconheceram o estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul, o que garante o envio de verbas do Governo Federal aos municípios afetados, visando a recuperação de escolas, hospitais, vias e infraestrutura de forma geral. Mas e a prevenção? É possível exigir dos tomadores de decisão algo além da reparação?
As imagens de um desastre climático sem precedentes em nosso país assustam. O confrontamento com esse cenário catastrófico faz com que nós, cientistas ambientais de uma universidade pública, busquemos apontar alguns fatores que estão por trás de um episódio como esse. Frequentemente, a ideia da chuva como resultado da força indomável da natureza costuma ser difundida, o que mascara as reais causas que acarretam esses cenários desoladores. Não se trata somente de um caso isolado de precipitação acima da média, nem de uma vingança da natureza, como alguns ainda preferem dizer. O que vimos diante de nós, nesses últimos dias, ainda que desacreditadas por alguns, são as consequências das mudanças climáticas impulsionadas pela ação humana e que serão cada vez mais frequentes.
Nesse contexto desolador, é essencial destacar que os governos não tomaram as decisões que lhes cabiam para amenizar esse desastre. Relatórios foram engavetados, desconsiderados e apagados[3] por serem alarmistas demais, como se fosse possível, com isso, evitar as tragédias que hoje se desenrolam em nosso país. O desastre que nos assola neste momento deriva de escolhas políticas que desconsideraram previsões científicas formuladas há mais de uma década. Somam-se a isso as recentes alterações na legislação ambiental realizadas pelo então governador do estado afetado[4] e a tramitação no Congresso do que ficou conhecido como “Pacote da Destruição”.[5] Não é de hoje que as decisões políticas referentes ao meio ambiente privilegiam o lucro em detrimento da vida. O que está acontecendo no Rio Grande do Sul se relaciona a uma dinâmica muito maior do que o estado e mais complexa do que a própria inundação. Referimo-nos à manutenção de um sistema econômico e político que segue se apropriando da natureza enquanto recurso infinito, e que concentra o bônus dessa apropriação nas mãos de poucos, mas socializa o ônus para a população. Como resultado, esse processo atinge principalmente as camadas com menor poder aquisitivo, muitas vezes formadas por pessoas negras e indígenas, e vulnerabilizando ainda mais as mulheres, o que pode ser compreendido enquanto injustiça climática e ambiental.
Embora habitantes de um mesmo planeta, as consequências da mudança climática não serão as mesmas para todas as pessoas. Isso se deve a fatores como o país em que residem, visto que há zonas do planeta mais propícias a enchentes ou a secas extremas, assim como há diferenças entre programas de adaptação de países do norte e do sul global; a classe social da qual fazem parte, de modo que pessoas com maior poder aquisitivo têm maiores chances de se precaverem em um evento extremo, enquanto aquelas com menor poder aquisitivo não possuem as mesmas condições; há, ainda, o fator relacionado à localização da habitação, isto é, pessoas com menor poder aquisitivo tendem a residir em encostas de morros ou áreas de várzea, devido à pressão imobiliária que as empurra para as periferias, ficando sujeitas ao risco de deslizamentos e enchentes; existem, também, as questões de gênero e raça — as mulheres negras e indígenas têm constantemente seus direitos violados de múltiplas formas, explicitando a influência do racismo ambiental e seu caráter estrutural.
A Organização das Nações Unidas (ONU) confirmou que, no ano de 2023, batemos o recorde no aumento da temperatura global.[6] A Organização Meteorológica Mundial (OMM), na mesma reportagem, em janeiro deste ano, já previa que o ano de 2024 poderia ser ainda mais quente que o anterior, classificando as alterações climáticas “como o maior desafio que a humanidade enfrenta” e sinalizando para um estado de colapso climático. O que acontece no Rio Grande do Sul parece corroborar essa afirmação, já que o impacto das chuvas sentido em 85% do estado inaugura um novo episódio na vida das milhares de pessoas afetadas. Para fugir das inundações, que serão recorrentes, cidades inteiras deverão ser construídas em outro local.[7] Pesquisadores apontam que as reconstruir na mesma área possivelmente alagável não resolverá as questões da população, visto que serão novamente atingidas pelos eventos climáticos. O relato de moradores já mostra a reincidência do evento, o que potencializa o sofrimento psicossocial a que ficam sujeitos. A perda da casa é sentida não só devido à ausência que sua materialidade representa, mas aos aspectos mais subjetivos, relacionados à perda da segurança, das afetividades, das memórias compartilhadas, aspectos simbólicos tão importantes na constituição das identidades e nas relações sociais que são tecidas dia a dia.
Ainda que não haja um consenso sobre o termo “refugiados climáticos”,[8] os deslocamentos ambientais do Sul do país sinalizam a impossibilidade da manutenção da vida em determinados locais. As pessoas deixaram suas casas sem nenhuma perspectiva de retorno, e algumas delas estão sem acesso a itens básicos como água e alimentos; outras estão sujeitas a roubos e a abusos sexuais; há aqueles que procuram por seus familiares e animais desaparecidos, na busca de restaurar algum senso de normalidade. Enquanto não encararmos a emergência climática e o aquecimento global como um processo já em andamento, não seremos capazes de exigir dos nossos governantes posicionamentos mais efetivos ao seu combate. Não podemos apostar só em estratégias de mitigação e de adaptação, é preciso vislumbrar um futuro possível que não seja definido somente pelos interesses do capital. É papel nosso, enquanto cientistas e estudantes em uma universidade pública, direcionar e construir em conjunto com a sociedade alternativas a essa dinâmica estabelecida que não prioriza a vida.
Ana Paula Leal Pinheiro Cruz é arquiteta e urbanista, doutoranda no Programa de Pós-graduação em Ambiente e Sociedade do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Integrante do Laboratório de Estudos de Mudanças Ambientais, Qualidade de Vida e Subjetividade (Lemas – CNPq) da Unicamp. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre as mudanças nas dinâmicas socioespaciais e os deslocamentos ambientais de comunidades atingidas por barragens de rejeito da mineração em Minas Gerais, investigando, pelo recorte de gênero, os aspectos subjetivos relacionados à perda da casa.
Sônia Regina da Cal Seixas é presidenta da Comissão Assessora de Mudança Ecológica e Justiça Ambiental (Cameja), DeDH-Unicamp. Professora do Doutorado em Ambiente e Sociedade (IFCH-Unicamp) e do Programa de Pós-graduação em Planejamento de Sistemas Energéticos da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp. Líder do Lemas (CNPq), bolsista de produtividade CNPq/BR e pesquisadora sênior do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (NIPE) da Unicamp.
Reforçamos nossa solidariedade ao povo do Rio Grande do Sul e aproveitamos para divulgar alguns dos pontos de coleta de doações localizados nos campi da Unicamp e em Barão Geraldo:
Secretaria de Vivência nos Campi –
Qualquer tipo de doação. Todos os dias, 24h por dia
SVC (Av. Albert Einstein, 763)
CECOM Campinas – recepção da clínica médica e recepção da odontologia (segunda a sexta-feira, das 7h às 19h).
Itens aceitos:
– Alimentos de cesta básica
– Produtos de higiene pessoal
– Material de limpeza seco
– Itens de cama, mesa e banho
– Ração para pets.
Serviço de Informação ao Cidadão
Água e produtos de limpeza
(R. Roxo Moreira, 1402)
De segunda a sexta-feira, das 8h30 às 17h30
Postos do Grupo Gestor de Benefícios Sociais – GGBS
Água e produtos de limpeza
De segunda a sexta-feira, das 8h30 às 17h
Prédio da Reitoria III (Rua da Reitoria, 165)
Posto de Atendimento no Hospital de Clínicas
Água e produtos de limpeza
De segunda a sexta-feira, das 7h às 16h
Rua Vital Brasil, 251 – Entrada F1
Campus de Limeira:
Central de Atendimento da Prefeitura
De segunda a sexta-feira, das 8h30 às 17h30
Faculdade de Tecnologia (FT)
Rua Paschoal Marmo, 1888
Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA)
Rua Pedro Zaccaria, 1300
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[1] https://oglobo.globo.com/brasil/ao-vivo/chuvas-no-rio-grande-do-sul-acompanhe-a-cobertura-sobre-os-estragos-causados-pelos-temporais.ghtml
[2] https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202405/mais-de-14-5-mil-pessoas-deslocadas-pelo-governo-federal-atuam-diretamente-na-ajuda-ao-rio-grande-do-sul
[3] https://apublica.org/2023/09/governo-do-rio-grande-do-sul-engavetou-planos-para-lidar-com-mudancas-climaticas/
[4] https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2024/05/leite-mudou-quase-500-normas-ambientais-em-2019-especialistas-criticam-gestao.shtml
[5] https://www.oc.eco.br/novo-pacote-da-destruicao-ameaca-direitos-socioambientais/
[6] https://brasil.un.org/pt-br/257750-onu-confirma-que-2023-bate-recorde-de-temperatura-global#:~:text=A%20Organiza%C3%A7%C3%A3o%20Meteorol%C3%B3gica%20Mundial%20
[7] https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd18p5zpp0no
[8]https://www.nexojornal.com.br/expresso/2024/05/08/refugiados-climaticos-rio-grande-do-sul