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A revolução já está acontecendo

É necessário nutrir nossa imaginação para que o conhecimento esteja à altura dos acontecimentos

“Precisamos ampliar o domínio do que é possível imaginar”. Passei o último final de semana com essa frase ressoando, depois de ouvi-la numa aula de Jota Mombaça durante a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Ela nos interpela a todes que estamos na universidade. Como nutrir nossa imaginação para que o conhecimento e o pensamento estejam efetivamente à altura dos acontecimentos?

Um filósofo de quem gosto muito tomou para si essa pergunta: Paul B. Preciado. Curador de arte e um dos mais instigantes pensadores contemporâneos, as obras de Preciado transitam entre a filosofia, as artes, as ciências e o ativismo político e são, ainda, um testemunho da sua transição de gênero.

A filosofia de Preciado parte do princípio de que as transformações que estamos vivendo — o colapso climático, o empobrecimento cognitivo e sensorial pelo vício nas redes sociais, o recrudescimento do fascismo, dentre tantos outros desafios políticos  — não poderão ser entendidas e enfrentadas com conhecimentos que ainda operem na chave dos binarismos que organizam o pensamento moderno ocidental, dividindo o mundo entre natureza e cultura, humano e animal, masculino e feminino, branco e negro, nacional e estrangeiro, analógico e digital, centro e periferia.

Preciado defende que o patriarcado e a colonialidade são epistemologias que condicionam nossa percepção, limitando nossa capacidade de imaginar, conhecer e viver. Uma mutação epistêmica é urgente e necessária, já que essas epistemologias estão comprometendo a vida no planeta. Esta é a revolução que já está acontecendo.

Duas obras recentes de Preciado nos levam a ver a mutação em curso: sua estreia no cinema com o documentário Orlando, minha biografia política (2023) e o livro Dysphoria mundi: o som do mundo desmoronando (2023).

Convidado a participar de um projeto que faria sua biografia para o cinema, Preciado preferiu brincar com a oposição entre realidade e ficção e propôs um documentário que seja uma adaptação de Orlando: uma biografia, romance de Virginia Woolf publicado em 1928. Ele justificou sua proposta dizendo que sua biografia já havia sido feita pela escritora inglesa no começo do século passado ao narrar a vida de um personagem em transição de gênero.

O documentário torna-se, então, uma carta endereçada à Virginia Woolf, para quem Preciado quer contar as múltiplas possibilidades da transição de gênero no mundo presente, que é o futuro de Woolf. Se, no romance, Orlando vive sua transição nos salões da alta sociedade londrina, no documentário de Preciado, a vida trans acontece no consultório médico, na pista de dança, no quarto, na sala de cirurgia, na rua, no tribunal e no camarim. Os bastidores ganham o primeiro plano no filme, porque ser trans também é descobrir como funcionam os bastidores da diferença sexual e de gênero: masculinidade e feminilidade são ficções que se impõem aos corpos através de uma violenta performance e repetição ao longo de toda uma vida, tornando-se, assim, algo tido como dado, “normal” ou “natural”.

Pude assistir ao filme de Preciado no início deste ano na mostra Terra Abrecaminhos, parte de uma exposição sobre a artista cubano-americana Ana Mendieta. O público que lotou a pequena sala de cinema do Sesc Pompeia espelhava a diversidade dos muitos “Orlandos” presentes no filme: conhecemos 26 pessoas trans que, portando golas elisabetanas, narram suas vidas, leem e encenam passagens do livro de Woolf.

Ao nos colocar diante desses “Orlandos”, incluindo a si próprio, Preciado quer fazer ver que existem diferentes modos de vida trans, evitando fixar um modelo sobre o que seria ou deveria ser a transição de gênero.

Cena do filme "Orlando: Minha Biografia Política”
Cena do filme “Orlando: Minha Biografia Política”

Numa das cenas mais intrigantes do documentário, estamos numa sala de cirurgia onde um médico rodeado de enfermeiros abre um prontuário com o nome de Preciado. Dentro da pasta, constam várias imagens de arquivo do movimento trans. Uma maca é, então, trazida para a sala com uma edição do romance de Woolf. Abre-se o livro, e um bisturi rasga uma página, recortando a frase “Violence was all”. Retratos de Orlando como um jovem aristocrata também são retirados. Em seu lugar, costuram-se as imagens do prontuário-arquivo. Delas, pude reconhecer uma fotografia de Marsha P. Johnson, drag queen e ativista presente em Stonewall em 1969, e que se tornou mais conhecida com o documentário A morte e vida de Marsha P. Johnson (Netflix, 2017).

O filme também apresenta imagens de arquivo de Christine Jorgensen desembarcando nos Estados Unidos nos anos 1950 depois de viajar à Dinamarca e passar por uma cirurgia de “redesignação sexual”. O fascínio da mídia fez de Jorgensen, ao tornar-se mulher, uma celebridade trans, ainda que a chamada “transexualidade” fosse considerada uma patologia a ser curada.

No documentário e em um texto recentemente publicado na revista Quatro Cinco Um, Preciado defende que, em relação aos corpos trans, uma cirurgia não pode ser entendida somente pela perspectiva da medicina. “Cada cirurgia é um enunciado somático que inventa um modo de vida para além do binarismo sexual”, escreve, ao relatar sua mastectomia. No documentário, por sua vez, a cirurgia torna-se performance e genealogia: a incisão é feita no próprio corpo da História, para que se torne possível ler as dissidências políticas entre suas entrelinhas.

Tal procedimento cirúrgico está bastante presente nas artes contemporâneas. No ano passado, quem pôde visitar a 35.a. Bienal de São Paulo – coreografias do impossível, pôde conhecer o Archivo de la Memoria Trans das ativistas argentinas María Belén Correa e Claudia Pía Baudracco; o documentário de Cabello e Carceller sobre a controversa biografia de Antonio de Erauso, conhecido como a “freira alferes”; a vida de Xica Manicongo, considerada a primeira travesti do Brasil; as instalações de Castiel Vitorino Brasileiro. Quem, por sua vez, visitou o Pavilhão da Bienal em 2014, pôde conhecer o fabuloso Museo Travesti del Peru, do filósofo e drag queen Giuseppe Campuzano.

O documentário de Preciado é leve e cheio do humor que ri das instituições e daqueles que estão em posições de poder. Durante o filme, nos divertimos com o despreparo constrangedor de um médico psiquiatra e psicanalista ao receber seus pacientes trans no consultório, uma atmosfera bastante distinta da tensão e da confrontação que marcaram a conferência de Paul B. Preciado em 2019, durante a Jornada Internacional da Escola da Causa Freudiana, diante de 3.500 psicanalistas.

Dessa vez, o filósofo evoca o macaco Pedro Vermelho, personagem do conto Um relatório para uma academia, escrito por Franz Kafka em 1917, para dizer que, como o macaco, irá falar a partir da condição inumana e monstruosa que os diagnósticos psicanalíticos muitas vezes constroem sobre as pessoas trans, querendo aprisioná-las na patologização. A conferência foi publicada como livro intitulado Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia de psicanalistas (2020).

Conheci a filosofia de Paul B. Preciado quando li Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica, lançado em 2008. A leitura prende a atenção ao intercalar densos capítulos teóricos com capítulos nos quais Preciado narra suas primeiras experimentações corporais com a testosterona e seu relacionamento afetivo com a escritora francesa Virginie Despentes, que, aliás, escreveu um belo prefácio a outro livro de Preciado, Um apartamento em Urano: crônicas da travessia (2019).

Em Testo Junkie, a experimentação vai desfazendo tanto o gênero de seu corpo com o tratamento hormonal — tornando-se, de Beatriz, agora Paul. B. Preciado —, quanto a classificação da sua própria escrita em gêneros literários. Essa desativação se dá com a opção por escrever um ensaio de inspiração autobiográfica, no qual não há oposição entre teoria e prática, filosofia e experiência, mente e corpo, pensamento e vida, razão e sensibilidade — tudo é posto num mesmo plano de igualdade e valorização. Historicamente, esse procedimento metodológico tem sido utilizado pelo feminismo — lembremo-nos de Audre Lorde, Gloria Anzaldúa e bell hooks, por exemplo, para quem a escrita autobiográfica é parte do próprio processo de subjetivação, já que se escreve para diferir de si mesma e se desidentificar dos estereótipos raciais e de gênero.

Nesse sentido, é preciso lembrar que a revolução que já está acontecendo não é somente epistêmica, mas também somática, já o corpo é o território da disputa política. “Não somos meras testemunhas do que ocorre. Somos o corpo através do qual a mutação chega e se instala”, afirma Preciado em seu livro mais recente, Dysphoria mundi: o som do mundo desmoronando (2023).

Assim como fez com a cirurgia — extraindo-a do âmbito da medicina para fazer uma incisão na História —, Preciado promoverá essa operação em relação à própria disforia de gênero, retirando-a dos discursos médicos, psicanalíticos e jurídicos para pensar o mundo contemporâneo como um mundo disfórico, dividido entre o regime herdado da modernidade patriarcal e colonial e as epistemologias em emergência através das dissidências políticas.

Escrito durante a pandemia de covid-19, o livro dedica-se a pensar como a precarização da vida se estende, a partir desse acontecimento, a todos os corpos viventes, ainda que em diferentes graus de intensidade. A pandemia escancarou vários processos em curso: evidenciou a gestão necrobiopolítica dos corpos racializados e o colapso ambiental que põe em xeque a própria habitabilidade do planeta, confinando-nos de vez na vida digital e no capitalismo cibernético.

E, mais uma vez, a literatura aparece em aliança com a filosofia: agora, é com a literatura heroinômana de William Burroughs que Preciado irá pensar o funcionamento do poder e da linguagem. Com ressonâncias da virada cibernética, há uma teoria da comunicação em Burroughs que não funciona no modelo da emissão-recepção, da causa e do efeito, e muito menos como transmissão de conhecimento ou informação — trata-se de contágio corporal. A linguagem é um vírus que coloniza nosso sistema nervoso, e o poder, por sua vez, funciona como uma droga que nos submete, não pela obediência ou pela subjugação, mas pela adicção.

Em Testo Junkie, Preciado já propunha algo semelhante ao pensar o funcionamento atual do capitalismo como um “regime farmacopornográfico”: um circuito global de excitação-frustração-excitação, do qual participam a indústria farmacêutica e a indústria pornográfica em conexão com as tecnociências, a indústria cinematográfica e as Big Techs. Somos engajados num circuito de produção industrial de imagens e substâncias químicas no qual circulam dopamina, serotonina, Viagra, Venvase, palestras e aulas motivacionais, vídeos pornôs, selfies, a indignação das polêmicas de Twitter/X, os memes e as fakenews compartilhadas no Whatsapp, numa saturação sensorial e cognitiva que quer nos impedir de pensar, perceber e sentir o mundo, as pessoas e os seres ao nosso redor.

Por isso, a revolução que já está acontecendo diz respeito a uma mutação epistêmica e somática que também nos obriga coletivamente a inventar novas linguagens e modos de comunicação. “Perceber, sentir e nomear de outro modo. Conhecer de outro modo. Amar de outro modo”, escreve Preciado em Dysphoria Mundi (2023, p. 58), afirmando que, para conhecer e pensar as transformações contemporâneas, podemos mudar o modo de nomeá-las. Podemos, inclusive, mudar os nomes próprios e fazer uso da linguagem neutra.

Por fim, Preciado avalia que nossa sobrevivência depende de um processo de descarbonização, despatriarcalização e decolonização do planeta. Sinto que a escala escolhida pode nos levar à sensação de paralisia e impotência. E se começássemos ao rés-do-chão? É o que buscarei fazer escrevendo a coluna que inauguro hoje. Foi o que procurei fazer ao escrever esse texto inspirada pelas filosofias, artes, epistemologias e vidas trans.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

24 maio 24

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