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Utopias de um futuro verde: como a China pretende se converter em uma ‘civilização ecológica’

Niklas Weins: "Já o maior emissor de gases de efeito estufa em termos absolutos desde 2007, a China, não parece ser, na COP atual, politicamente tão relevante quanto foi no Acordo de Paris, nem ter o protagonismo que ainda parecia almejar antes da pandemia"

A agenda ambiental e o papel da China

No ano mais quente na história e em dias de COP28 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), a gente ouve bastante sobre a urgência de os principais emissores de gases do efeito estufa agirem rapidamente. Os Estados Unidos e os países da União Europeia, responsáveis pela maior parte das emissões ao longo das últimas décadas, parecem se mexer cada vez mais lentamente, alegando questões de “prioridades ainda mais urgentes” do que a crise climática e apontando para diferentes desafios políticos internos e externos, como os atuais conflitos na Ucrânia e no Oriente Médio.

Já o maior emissor em termos absolutos desde 2007, a República Popular da China, não parece ser, na COP atual, politicamente tão relevante quanto foi no Acordo de Paris, nem ter o protagonismo que ainda parecia almejar antes da pandemia. No Protocolo de Kyoto as lideranças chinesas se posicionavam sempre junto ao Sul Global, contestando acusações a respeito de suas taxas de emissão e invocando os países industrializados a cumprirem sua “responsabilidade histórica”. Ao insistir em seus status de país “em desenvolvimento”, a China enfraqueceu-se na COP15, em Copenhague (Dinamarca), quando já estava em vias de se converter em uma potência global. A abertura econômica e os benefícios advindos do processo pelo meio do qual (re)assumiu o papel de potência mundial fizeram com que as lideranças europeias e estadunidenses chamassem a China a se converter em uma “potência responsável” (Xia, 2001). Isso se referia não só a questões de segurança e de financiamento de instituições globais, mas também a sua agenda ambiental. Foi em 2015, quando a China negociou duramente com os Estados Unidos para chegar a um acordo histórico a respeito do clima, que o negociador chefe da delegação chinesa, Xie Zhenhua, assumiu o compromisso da responsabilidade ambiental.

A área ambiental tem sido um dos grandes temas de conflito entre países industrializados e aqueles que eram chamados de “subdesenvolvidos”, cujos modelos político e econômico são frequentemente criticados de forma arrogante pelo Norte Global. No entanto, aqueles que se beneficiaram de séculos de exploração colonial devem reconhecer que muitas das suas riquezas originaram-se do Sul Global e que seria justo pagarem pelas perdas e pelos danos decorrentes da crise climática. A China, depois do Século de Humilhação (Século XIX), imposta pelas potências coloniais, e a queda da sua última dinastia, em 1912, fazia parte da periferia do capitalismo então nascente no Atlântico Norte e, portanto, alinhava-se com movimentos dos e nos países pobres do Sul. Próximos do bloco soviético, os chineses, até o final da Revolução Cultural e a morte de Mao Zedong, em 1977, fomentaram movimentos marxistas e maoístas em muitos países ao redor do mundo.

Desde a Reforma e Abertura, no início dos anos 1980, o país tem feito crescer sua economia, reduzido drasticamente a pobreza e modernizado sua indústria, convertendo-se assim na segunda maior economia do mundo. Ao mesmo tempo que sua população de 1,4 bilhão de pessoas se urbanizou e viu aumentar seus padrões de vida, suas lideranças, desde o final do século passado, tiveram de perceber os efeitos negativos dessa expansão acelerada, como, por exemplo, a poluição das águas, do ar e dos solos. Grande parte dessa poluição, porém, não resultou do consumo dos produtos pelos próprios chineses, mas pelo fato de o país ter aberto suas portas às indústrias poluentes de nações da Europa e na América do Norte que passaram a adotar leis ambientais cada vez mais restritivas.

Sobreviventes das enchentes do Rio Yangtzé em 1998. Fonte: Agência Xinhua
Sobreviventes das enchentes do Rio Yangtzé em 1998. Fonte: Agência Xinhua

A produção, dentro de suas fronteiras, de mercadorias para os consumidores dos países industrializados e o crescimento da sua própria classe média urbana, a consumir cada vez mais recursos, fizeram aumentar os problemas ambientais da China. Problemas esses alimentados não só por fatores locais, mas também, a partir do final dos anos 1990, pelas mudanças ambientais globais. Em 1997, o Rio Amarelo ficou seco por 227 dias, sublinhando uma tendência crescente de episódios de falta d’água cada vez mais prolongados e frequentes (Liu & Zhang, 2002). No ano seguinte, o país registrou as maiores inundações do século, provocadas pelo maior rio da Ásia, o Yangtzé (He & Jiao, 2000).

Esses dois eventos extremos, estudados extensamente por cientistas da Academia Chinesa de Ciências (CAS, na sigla em inglês), produziram dados tão impactantes que, a partir desse ponto e pelas próximas duas décadas, os investimentos em programas públicos de proteção de florestas e de combate à erosão dos solos (veja figura) só fizeram aumentar (Banco Mundial, 2022).

Investimentos anuais dos programas de compensação ecológica da China. Fonte: dados personalizados coletados pelos autores (Banco Mundial, 2022) a partir de uma revisão sistemática de informações vindas de notícias, de fontes acadêmicas e de governos provinciais

Investimentos anuais dos programas de compensação ecológica da China. Fonte: dados personalizados coletados pelos autores (Banco Mundial, 2022) a partir de uma revisão sistemática de informações vindas de notícias, de fontes acadêmicas e de governos provinciais 

Entre 1998 e 2002, e nos anos seguintes, diferentes programas-piloto com metodologias de valoração e com os chamados serviços ambientais foram implementados praticamente no país inteiro (Delang & Yuan, 2015).

Participação de províncias por ano. Fonte: Cui, 2009; arte: Delang & Yuan, 2015
Participação de províncias por ano. Fonte: Cui, 2009; arte: Delang & Yuan, 2015

Assim, a preocupação com o meio ambiente tornou-se uma pauta cada vez mais relevante, não só nas políticas domésticas chinesas, como ainda no âmbito internacional, no qual o país paulatinamente começou a assumir um papel de potência mundial. Depois da participação de uma pequena delegação chinesa na Cúpula da Terra no Rio de Janeiro, em 1992, em que a China deixou uma impressão de defasagem em relação às questões ambientais, o país vem mudando sua imagem sob o lema da “Construção de uma Civilização Ecológica”.

O lema ‘Construção de uma Civilização Ecológica’ sob perspectiva da sociedade de risco

Durante meu doutorado, realizado com um financiamento da Fundação de Amparo à Pequisa do Estado de São paulo (Fapesp), explorei o que significa essa ideia da civilização ecológica (para quem estuda mandarim, 生态文明 Shēngtài wénmíng). O conceito, ainda muito pouco explorado na literatura científica não chinesa, ganha cada vez mais espaço no país, em todos os âmbitos, e promete ter implicações profundas sobre a direção das mudanças necessárias a nossos sistemas sociais e econômicos.

slogan utópico da civilização ecológica, hoje usado em tudo relacionado com sustentabilidade na China, encontra suas raízes filosóficas na fusão de vários elementos do pensamento chinês e do ocidental. O termo, cunhado pelo filósofo alemão Iring Fetscher em 1978, foi posteriormente utilizado por cientistas naturais e físicos da União Soviética que discutiam os limites materiais do planeta Terra. Após ter sido utilizado na práitca, na agricultura ecológica, pelo professor Ye Qianji (叶谦吉), da Universidade do Sudoeste em Chongqing, o ex-vice ministro do meio ambiente Pan Yue (潘岳) introduziu o conceito no âmbito do Partido Comunista (Schmitt, 2016).

No final do mandato do presidente Hu Jintao, o termo apareceu pela primeira vez nos níveis mais altos de governo e tem se tornado um dos grandes lemas do presidente Xi Jinping, que pretende atingir a meta da “Construção de uma Civilização Ecológica” até a metade do século. Desde seu primeiro discurso sobre o conceito, no 17º Congresso do Partido Comunista, Xi adotou a ecocivilização como pilar de um desenvolvimento com características chinesas. Nesse processo o conceito representa um guarda-chuva de ideias sobre a sustentabilidade, lançando mão de premissas tais como o entendimento daoísta da harmonia entre os seres humanos e a natureza, a retórica do pensamento marxista e o desenvolvimento verde. Tudo isso como parte de um esforço para unir o desenvolvimento econômico com a preservação ambiental e o uso sustentável dos recursos naturais.

A fundamentação teórica da minha pesquisa remete ao conceito de sociedade do risco, do sociólogo alemão Ulrich Beck, sem deixar de levar em conta a evolução dessa ideia, tanto pelo marco teórico incompleto da metamorfose do mundo, que Beck sugeriu pouco tempo antes da sua morte, como pelas aplicações da teoria na Ásia, pelas mãos dos sociólogos chineses Zhang Wenxia e Zhao Yandong e do sul-coreano Chang Kyung-Sup. A civilização ecológica nos apresenta um modelo, mesmo que imperfeito, de uma transformação ampla da ideia de organização das sociedades em torno do risco. Conforme argumento na minha tese, algumas aplicações práticas realizadas antes da pandemia já apontavam para certos paralelos entre essa ideia e a da ecocivilização.  

O impacto da pandemia nos planos de pesquisa

Minha pesquisa originalmente previa explorar um novo tipo de arranjo de compensação ecológica “horizontal”, isto é, entre diferentes condados da cidade-província de Chongqing, no sudoeste da República Popular da China. Essa ferramenta, que está sendo usada de forma experimental, como política pública, em muitas partes do país, prometia um bom diálogo com outras pesquisas realizadas na área de meio ambiente e sociedade no Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam), no Laboratório de Dimensões Sociais das Mudanças Ambientais Globais no Sul Global (Labgec) e na linha “Relações Brasil-China” do doutorado em ciências sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). Junto com o Centro de Estudos sobre a China da Academia Chinesa de Ciências Sociais (Cass, na sigla em inglês), inaugurado na Biblioteca Central da Unicamp em maio de 2019, testemunhávamos um momento favorável para ampliar o diálogo sobre ações colaborativas entre China e Brasil a respeito de questões ambientais.

Os dois países megadiversos estavam se preparando para a Conferência das Partes da Convenção Quadro de Mudanças Climáticas (COP26) e a da Convenção de Diversidade Biológica (CBD), a COP15, em Kunming, na China. No entanto, como todo mundo que vivia no planeta Terra em 2020, sofremos os efeitos disruptivos da pandemia da covid-19, prejudicando as trocas acadêmicas e o planejamento de pesquisas. Em vez de fazer minha pesquisa de campo em 2020, tive que remanejar as prioridades e adotar para o meu projeto um novo foco.

Depois de um ano de conversas online com as colegas da Environmental Policy Group na Universidade de Wageningen, na Holanda, os intercâmbios da Fapesp dentro do programa Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior (Bepe) foram liberados novamente e a professora Annah Zhu pôde me receber como pesquisador visitante para avançarmos juntos na discussão teórica sobre mudanças das práticas de intervenção ambiental em larga escala dentro e fora das fronteiras nacionais.

No intento de manter as pontes anteriormente construídas com uma ex-doutoranda chinesa do nosso programa de doutorado que hoje trabalha no Instituto de Desenvolvimento Sustentável da Academia Chinesa de Ciências, organizamos, no final de 2021, um debate sobre o papel do Brasil e da China nas COPs. A COP15, que acabou sendo postergada para dezembro de 2022, ocorreu em Montréal (Canadá) sob a presidência da China, que ainda mantinha sua política de covid zero e não permitia a entrada de estrangeiros em seu território. Graças ao meu envolvimento com o capítulo brasileiro da Rede Global da Juventude pela Biodiversidade (GYBN, na sigla em inglês), consegui participar como observador desse encontro global para ver como o tema “Civilização ecológica: construindo um futuro partilhado para toda a vida na Terra” estimulava as interações entre governos e organizações sociais lançando mão da ideia chinesa da ecocivilização.

Resultados em estado de metamorfose

Um doutorado não só ensina como desenhar e executar uma pesquisa, mas principalmente como se adaptar às realidades. A pandemia, cujas causas relacionam-se profundamente com a crise da perda de biodiversidade (veja relatório da Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos), legou a muitos pesquisadores grandes desafios, não só na forma de problemas relacionaos à saúde mental, a perdas e aos impactos provocados no bem-estar de pessoas próximas, mas também na forma como tivemos de adaptar nosso trabalho às restrições. Realizar uma pesquisa sobre a China nesses tempos certamente foi um grande desafio que, porém, aos poucos, estivemos superando.

Tendo firmado parcerias de forma remota, conseguimos avançar na discussão teórica sobre os paralelos da teoria de Beck sobre a metamorfose do mundo e o marco da civilização ecológica: em um artigo publicado na revista Environmental Sociology, destacamos como, em sua esfera política, a resposta chinesa ao riscos ambientais internos e internacionais, passou de algo vergonhoso para uma visão orgulhosa de reorganização social. Mesmo que esse diagnóstico seja imperfeito, e isso por conta de uma ampla gama de fatores, entre os quais a ênfase pelo partido comunista chinês no nacionalismo e sua reinterpretação do passado do país como um cultura ecocêntrica, a reflexão sobre as transformações econômicas, culturais e ambientais possíveis tendo por farol essa ideia podem servir de referência para outros países.

Apesar da implementação das compensações ecológicas em larga escala nas cidades e no interior da China já estar mostrando efeitos positivos, os resultados, por uma série de questões, ainda são ambíguos. O avanço dos extremos climáticos em escala global fez-se presente nos verões de 2020 e 2022, quando o Rio Yangtzé registrou uma seca histórica e Chongqing, foco de meu estudo, mostrou-se ao mundo com imagens chocantes. A curiosidade sobre os arranjos internacionais sobre a questão do risco ambiental na agenda de adaptação continua viva. E, com meu doutorado defendido e a China reaberta ao mundo, espero finalmente poder executar minha pesquisa de campo em 2024.

Pessoas sentadas em uma piscina rasa de água no leito do rio Jialing, um afluente do Yangtze, no município de Chongqing, no sudoeste da China, no sábado, 20 de agosto de 2022. A própria paisagem de Chongqing, uma megacidade que também abrange terras agrícolas nos arredores e montanhas íngremes e pitorescas, foi transformada por uma onda de calor excepcionalmente longa e intensa e uma seca que a acompanhou. Fonte: Mark Schiefelbein, Associated Press
Pessoas sentadas em uma piscina rasa de água no leito do rio Jialing, um afluente do Yangtze, no município de Chongqing, no sudoeste da China, no sábado, 20 de agosto de 2022. A própria paisagem de Chongqing, uma megacidade que também abrange terras agrícolas nos arredores e montanhas íngremes e pitorescas, foi transformada por uma onda de calor excepcionalmente longa e intensa e uma seca que a acompanhou. Fonte: Mark Schiefelbein, Associated Press

Em novembro de 2023, assumi uma posição de professor-assistente do departamento de estudos internacionais de uma jovem universidade nascida da cooperação da Universidade Jiaotong de Xi’an com a Universidade de Liverpool, a XJTLU. Aqui pretendo manter minha agenda de pesquisa com foco na governança ambiental global, mas também continuar olhando para as rápidas mudanças no nível local, junto aos colegas do departamento de estudos da China e das ciências ambientais. 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


Referências bibliográficas

  1. Xia, L. 2001. China: A Responsible Great Power. Journal of Contemporary China, v. 10, n. 26. p. 17-25. 
  2. South China Morning Post. 2019. Maoism: A Global History – how China exported revolution. 
  3. Liu, C., Zhang, S. 2002. Mitigation and Adaptation Strategies for Global Change 7: 203–214. 
  4. He, X., Jiao, J. 2000. The 1998 flood and soil erosion in Yangtze river. Water Policy, v. 1, n. 6, p. 653-658. 
  5. Banco Mundial. 2022. Ecological Compensation in China Trends and opportunities for incentive-based policies towards a greener China. Washington D.C.
  6. Schmitt, Edwin. 2016. The Atmosphere of an Ecological Civilization: A Study of Ideology, Perception and Action in Chengdu, China.
  7. Weins, N., Zhu, A. L., Qian, J., Barbi, F. S., Ferreira, L. C. Ecological Civilization in the making: the ‘construction’ of China’s climate-forestry nexus. Environmental Sociology, v. 9, n. 1, p. 6-19. 
  8. Hansen, M. H., Li, H., Svarverud, R. 2018. Ecological civilization: Interpreting the Chinese past, projecting the global future. Global    Environmental Change, v. 53, nov., p. 195-203.

Niklas Weins tem graduação em Economia e Política da Ásia Oriental pela Ruhr Universität Bochum (Alemanha) com estadias na Tongji University, Xangai (China), e na Universidad Autónoma Metropolitana, Cidade do México (México); mestrado em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná e doutorado em Ambiente e Sociedade pela Unicamp. Weins foi pesquisador associado ao projeto Studio Cidades e Biodiversidade do Instituto de Estudos Avançados da Universidade das Nações Unidas (UNU-IAS) e pesquisador visitante na Wageningen University & Research (Países Baixos). Atualmente é professor assistente no departamento de estudos internacionais da Xi’an Jiaotong-Liverpool University em Suzhou (China).

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