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Arte Rafaela Repasch

O professor emérito que atravessou cinco ditaduras

Matemático teve tios assassinados pelo franquismo e experimentou três regimes de exceção na Argentina

Tote Nunes


Com uma boa dose de sarcasmo, o professor José Mario Martínez Perez sorri ao rememorar a própria biografia. “Atravessei cinco ditaduras. Acho que já está bom”, ironiza ao falar dos 60 anos do golpe militar no Brasil – país para o qual se mudou em 1976 e onde acabou fazendo uma carreira irretocável na área das ciências matemáticas. 

Hoje, Martínez, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e condecorado com a Ordem do Mérito Científico no grau comendador – além de muitas outras honrarias – ainda guarda vivas na memória lembranças de regimes totalitários aos quais sobreviveu na Espanha, onde nasceu, na Argentina, para onde emigrou com a família, e no Brasil, onde praticamente construiu sua carreira acadêmica. O traço comum entre elas, segundo o professor: a clara incompatibilidade entre a liberdade necessária para a pesquisa científica e os objetivos dos regimes ditatoriais. 

“As ditaduras vivem sempre em uma situação de conflito com a ciência”, disse. “E isso por uma razão muito simples. As ditaduras precisam dominar os fatos. Se os fatos não se mostrarem da forma que lhes é mais conveniente, os ditadores têm o poder de modificá-los para que assim sejam”, explica.

General Jorge Videla (centro), presidente da Argentina entre 1976 e 1981

O general Jorge Videla (centro), presidente da Argentina entre 1976 e 1981: para Martínez, período foi marcado por uma “ditadura assassina” (Foto: Wikimedia Commons)

“E essa é uma questão epistemológica permanente e essencial, porque a ciência bem feita submete-se aos fatos. Ou seja, aceita os fatos como eles se revelam. Um governo autoritário precisa modificar a história. A ciência precisa respeitar a história. Temos aqui, portanto, uma contradição básica”, afirma.

Nascido em Cangas del Narcea, uma vila de mineradores do Principado das Astúrias, na Espanha, Martínez emigrou para a Argentina ainda pequeno, com apenas 3 anos, fugindo da sangrenta ditadura de Francisco Franco, “um militar medíocre e fundamentalista cuja única esperteza foi passar de capacho da Alemanha nazista a delegado dos interesses norte-americanos na porta da Europa”, como descreveu ele próprio no discurso de encerramento da cerimônia em que recebeu o título de Professor Emérito da Unicamp, em março de 2020.

“Fui batizado com os nomes José e Mario em memória a dois irmãos da minha mãe. Mario morreu combatendo o fascismo na Guerra Civil Espanhola e José, conhecido como Pepe, morreu em um campo de concentração nazista em 1943, depois de, como exilado espanhol, ter sido capturado na França pelos nazistas. Na mesma época, na nossa vila natal, um irmão e um primo do meu pai foram assassinados pelos fascistas espanhóis”, relembrou no mesmo discurso.

José Mario Martínez
O professor e matemático José Mario Martínez: “As ditaduras vivem sempre em uma situação de conflito com a ciência” (Foto: Felipe Bezerra)

Martínez conta que, na Argentina, experimentou três períodos de governo de exceção. O primeiro deles ainda menino, quando, em 1955, eclodiu a chamada Revolução Libertadora, que derrubou Juan Domingo Perón. Uma segunda onda autoritária se daria em 1966, com a Revolução Argentina – um levante militar comandado pelo general Juan Carlos Onganía. Uma terceira ocorreu dez anos depois – quando um golpe de direita derrubou da presidência Isabel Perón. Uma junta militar substituiu-a no poder.

Presidente do Conselho Científico e Cultural do Instituto de Estudos Avançados (Idea) da Unicamp, o professor tenta desmistificar a ideia de que as ditaduras fazem da ciência seu alvo principal. “As ditaduras prendem, encarceram, matam, operam fora da lei. As ditaduras decretam estado de sítio, estado de exceção etc. E isso, claro, afeta a ciência, mas afeta todos os cidadãos também. A diferença é que os cientistas têm voz, têm melhores condições de produzir notícia”, argumenta.

Para ele, uma característica marcante das ditaduras latino-americanas é a adoção de uma política econômica ortodoxa, conservadora, neoliberal. “Como todos sabemos, fazer ciência custa caro. E, quando os governos neoliberais querem cortar gastos, uma das primeiras coisas que fazem é reduzir – ou acabar com – os investimentos na ciência”, afirma. 

Martínez reconhece, no entanto, que, em determinados momentos, a ciência torna-se, sim, um dos alvos preferenciais dos regimes autoritários. O pesquisador lembrou, por exemplo, que uma das primeiras medidas do golpe militar de 1966 na Argentina, aquele liderado pelo general Onganía, teve por alvo, justamente, as universidades. 

No dia 29 de julho, em um episódio conhecido como La Noche de los Bastones Largos (a noite dos grandes cassetetes, em espanhol), policiais federais, a golpes de cassetete e usando bombas de gás lacrimogêneo, invadiram a Universidade de Buenos Aires e prenderam 400 alunos e professores. O grupo protestava contra o decreto do novo governo que suprimia a autonomia das universidades (leia artigo abaixo).

Segundo dados publicados pela Agência Fapesp, cerca de 1.400 docentes argentinos renunciaram, então, a seus cargos e pelo menos 300 se exilaram. Metade conseguiu trabalho em outras instituições latino-americanas, principalmente universidades do Chile, do México e da Venezuela. Quase uma centena deles mudou-se para os Estados Unidos e o Canadá e cerca de 40 migraram para a Europa. A Unicamp contratou dezenas de pesquisadores argentinos à época.

Bordaberry e Pinochet em 1976

Juan María Bordaberry e Augusto Pinochet, respectivamente, ditadores do Uruguai e do Chile, durante encontro em Montevidéu, em 1976 (Foto: Wikimedia Commons)

O professor conta que diariamente lia nos jornais os comunicados oficiais de desligamento de professores. “Lembro-me perfeitamente. Os comunicados diziam assim: ‘A faculdade tal aceita a renúncia e rejeita os termos do professor tal’. Evidentemente isso foi um desastre para a ciência argentina naquele momento”, disse Martínez.

“Eu me lembro de outra história pessoal. O pai de um amigo meu, um biólogo muito respeitado, trabalhava em um projeto de pesquisa muito importante sobre biologia marinha e teve seu trabalho totalmente arruinado. Esse meu amigo reclamava disso comigo e eu lembrava a ele: ‘Olha. O papel das ditaduras é justamente este: acabar com as pessoas’”, contou.

No Brasil

Em 1974, Martínez foi contratado pela Fundação Bariloche, uma entidade privada argentina, mas quase totalmente financiada pelo Estado, que se dedicava ao desenvolvimento científico. Em Bariloche teve contato com grupo que trabalhava no Modelo Mundial Latino-americano (MML) – que sustentava que os obstáculos que se opõem a um desenvolvimento harmônico da humanidade são essencialmente políticos. Foi considerado subversivo pela ditadura e teve de deixar a Argentina – a exemplo do que ocorrera com um grande número de professores, pesquisadores e cientistas.

A história de Martínez no Brasil começa em 1976, quando teve início o período mais duro dos governos de exceção instalados na Argentina ao longo do século XX. “A ditadura iniciada em 1976 foi assassina”, disse o professor que – ao lado de outros colegas seus – foi acolhido pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) – centro fundado em 1969 como departamento de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Candido Mendes.

Dois anos depois foi contratado pelo Departamento de Matemática Aplicada – vinculado ao, hoje, Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc) da Unicamp. Apesar de viver praticamente a vida toda numa espécie de exílio, Martinez se manteve umbilicalmente ligado à Espanha.  “Não sou naturalizado argentino, nem brasileiro. Minha única nacionalidade é a espanhola”, testemunha.

Milei

O professor se diz profundamente preocupado com o futuro da Argentina sob o governo do presidente Javier Milei. “Eu não tenho bola de cristal, mas vejo a possibilidade de Milei ameaçar tudo na Argentina e não apenas a ciência. Além do mais, não podemos nos esquecer de que, na América Latina, já tivemos ditaduras derivadas de um governo civil”, advertiu o professor, referindo-se aos casos de Juan María Bordaberry (no poder de 1972 a 1976), no Uruguai, e de Alberto Fujimori (no poder de 1990 a 2000), no Peru. 

Martínez observa, porém, que houve ditaduras militares no continente com traços desenvolvimentistas – caso de Juan Velasco Alvarado, que governou o Peru entre outubro de 1968 e agosto de 1975. “Tratou-se de uma ditadura militar com as características negativas da repressão, mas, do ponto de vista econômico, esse foi um governo progressista”, diz o professor. “Alvarado implementou uma reforma agrária e promoveu processos de nacionalização. Só que acabou sendo derrubado por outros militares”, ressalva.

Flávio Bolsonaro e Javier Milei
Depois de empossado, Javier Milei (à dir.) posa com Flávio Bolsonaro: para Martínez, novo presidente pode “ameaçar tudo na Argentina e não apenas a ciência” (Foto: Reprodução)

Martínez cita ainda o caso do general Juan José Torres, que governou a Bolívia entre outubro de 1970 e agosto de 1971. Considerado um dirigente progressista, foi deposto em um golpe – também militar – apoiado pelos Estados Unidos e que resultou na ditadura do general Hugo Banzer. JJ, como era conhecido, defendia a soberania boliviana e da América Latina. Exilado na Argentina, foi assassinado cinco anos depois de sua deposição.

O continente experimentou ainda outras ditaduras militares, como a do Chile (com Augusto Pinochet, de 1973 a 1990) e a do Paraguai (com Alfredo Stroessner, de 1954 a 1989). O primeiro, acusado de inúmeros casos de violação dos direitos humanos, terminou o governo tendo registrado milhares de prisões arbitrárias e denúncias de tortura. O número de vítimas fatais da ditadura Pinochet pode ter chegado a 3 mil.

Stroessner também entrou para a história como um governo sangrento, com cerca de 150 mil presos políticos, mais de 3 mil mortes e diversas acusações de que teria dado abrigo a nazistas fugidos da Europa depois da Segunda Guerra Mundial.

Ditadura e ciência na Argentina

José Mario Martínez

A La Noche de los Bastones Largos representa bem o começo da quarta ditadura militar da Argentina no século XX. Por trás dos gendarmes que expulsavam e espancavam professores e estudantes da Faculdade de Ciências Exatas da Universidade de Buenos Aires, morriam os sonhos de uma geração que tinha se entusiasmado com as perspectivas de uma ciência avançada, independente e integrada ao desenvolvimento nacional, em marcos democráticos e libertários.

Milhares de docentes e pesquisadores renunciaram a seus cargos, e os dirigentes universitários escolhidos sob o regime de autonomia e “governo tripartito” (professores, estudantes e graduados) foram substituídos por sátrapas obtusos. Projetos foram abandonados, pesquisas interrompidas, cátedras desestruturadas, bolsas e financiamentos descontinuados. Nossa sensação, como estudantes, era de perda. Aquele ambiente borbulhante, dinâmico, criativo e aberto a todo tipo de manifestações não existiria mais e não alimentaria nossa juventude. Ele tinha sumido no dia 28 de junho de 1966, quando, pelo rádio, ouvimos que a Junta de Comandantes havia assumido o poder e indicado como presidente o general Juan Carlos Onganía.

Estudantes e professores detidos na UBA em junho de 1966
Estudantes e professores são detidos por policiais na Universidade de Buenos Aires, em junho de 1966: La Noche de los Bastones Largos representou o fim dos sonhos de uma geração (Foto: Reprodução)

O mundo não acabou. Lutamos contra a ditadura na semiclandestinidade, aproveitando que os níveis de repressão, na maioria dos casos, não iam além de detenções por poucas semanas. Manifestações e assembleias eram proibidas, e o estado de sítio permitia o encarceramento por tempo indeterminado, mas o debate político era intenso. De outro lado, no ambiente intelectual e acadêmico, o pensamento peronista ganhava posições, apontando para uma convergência com os sentimentos da maioria da população. Cresceu a percepção de que a ditadura se esgotaria e de que era necessário preparar-se para uma nova etapa. Com essa convicção, surgiram organizações de técnicos e cientistas — como o Conselho Tecnológico do Justicialismo, dirigido pelo ex-diretor da Faculdade de Ciências, Rolando Garcia —, que preparavam a transição para um governo democrático.

A ditadura de 66 sucumbiu devido à sua ineptidão e à força dos anseios populares. Em 1973, chegou ao poder um governo popular que, sob o mote da Reconstrução Nacional, valorizou e recuperou ciências e artes e introduziu o debate e a reforma no ensino universitário. Infelizmente, este governo claudicou perante suas próprias contradições e os interesses das oligarquias, dando lugar a um engendro fascistoide dirigido por um personagem ridículo chamado López Rega.

Nesta etapa, o ministro de Educação atacava sem pudor a comunidade científica, reclamando da falta de suficientes “inventos”, amparando-se em citas do “presidente” Richard Nixon. Houve demissões massivas nas universidades e nas instituições de pesquisa. Os militares, que já eram de fato donos do poder, assumiram o governo em março de 1976, inaugurando o período mais tenebroso da história argentina. Cientistas, artistas, estudantes e professores foram banidos, demitidos ou assassinados.

A retomada da democracia, em 1983, não esteve isenta de dificuldades, sobretudo financeiras. A inflação reduziu os salários dos trabalhadores da ciência a níveis insignificantes. O êxodo de graduados e pesquisadores consolidados foi massivo, e governos de orientação neoliberal fracassaram. Entretanto, significativa recuperação, com o retorno de muitos cientistas, aconteceu nos primeiros lustros do presente século.

Como é de público conhecimento, uma nova La Noche de los Basatones Largos ameaça o pensamento crítico na Argentina. Embora a História mostre que sempre sucede a recuperação, em alguns aspectos, ditaduras e governos antipopulares podem ter produzido catástrofes irreversíveis. O ensino fundamental e médio, que já foi gratuito, universal e de boa qualidade, não desfruta mais da credibilidade do passado, e as classes mais favorecidas optam pelo atalho das escolas privadas. Claramente, isso estreita a faixa de jovens bem formados e pode contribuir, em última instância, para o declínio do ensino superior. Vivemos em tempos de grande incerteza.

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