Nem todos os que presenciaram o puxamento da primeira fibra óptica em terras brasileiras se recordam daquele dia como José Mauro Leal Costa. Era abril de 1977 quando o então professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) demonstrou a um seleto grupo de convidados o processo de produção daquele cabo flexível de vidro mais fino que um fio de cabelo, pelo qual passava um feixe de luz emitido por um laser e que prometia revolucionar as comunicações mundo afora, abrindo caminho para pesquisas e aplicações até então improváveis.
O cenário desse feito histórico foi um dos laboratórios do Departamento de Eletrônica Quântica (DEQ) do IFGW, no campus de Barão Geraldo, onde uma torre de 2 metros de altura havia sido instalada para o experimento que colocou o Brasil – e a Unicamp – praticamente em pé de igualdade na corrida científica que, especialmente a partir dos anos 1970, envolveu países como os Estados Unidos, a Alemanha e o Japão no desafio de transformar os recentes avanços nas pesquisas em óptica e fotônica em uma nova tecnologia de transmissão de dados, sons e imagens, capaz de superar as diversas limitações dos fios de cobre ou redes de micro-ondas. A fibra óptica representava, então, a oportunidade de multiplicar enormemente o volume e a velocidade de transmissão dos sistemas tradicionais, praticamente zerando ruídos, interferências ou a possibilidade de haver interceptações. Por isso, estar na vanguarda das pesquisas e do desenvolvimento dessa tecnologia significava uma vantagem estratégica para os países que se lançaram ao desafio.
Engenheiro mecânico pela Universidade Católica da América (EUA), José Mauro, como é mais conhecido, se casou no Brasil em julho de 1971 e, no mesmo dia, regressou ao solo norte-americano para iniciar o doutorado em física e ciência de materiais naquela mesma instituição. O cientista abriu mão de um trabalho na construção da Ponte Rio-Niterói em troca de pesquisar vidros de alta pureza para a produção de fibra óptica, área que lhe parecia tão promissora quanto incerta. “Naquela época, isso era muito incipiente ainda, ninguém estava fazendo nada em escala de produção. Já se sabia a teoria, mas [produzir], não”, conta ele, que foi o primeiro brasileiro a presenciar o puxamento de uma fibra óptica, ainda bastante frágil.
José Mauro estava não só no lugar certo, mas em um momento mais que oportuno. Isso porque foi justamente no início dos anos 1970 que esse “poder brutal” de comunicação representado pela fibra óptica passou a se tornar tangível de fato, com a superação de dois dos principais obstáculos para seu desenvolvimento: as enormes perdas de luz durante as transmissões e o calor excessivo gerado pelos lasers. Liderando as pesquisas na área estavam duas empresas norte-americanas. A Corning Glass, primeira a anunciar uma fibra óptica com perda de luz suficientemente baixa para permitir a transmissão de informações. E o Bell Telephone Laboratories (mais conhecido como Bell Labs), prestigiado centro de pesquisas então pertencente à American Telephone & Telegraph (AT&T), que desenvolveu um laser de semicondutor capaz de operar continuamente em temperatura ambiente, a partir de avanços obtidos pouco antes pelo físico soviético Zorhes Alferov, com a descoberta do laser de heteroestrutura dupla.
No grupo de pesquisadores do Bell Labs que participaram dessa importante invenção, estava outro brasileiro, também no lugar e na hora certa: José Ellis Ripper Filho – engenheiro eletrônico formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), com mestrado e doutorado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) –, que pouco depois chegaria à Unicamp.
Unicamp e Brasil na corrida pela fibra óptica
O IFGW foi uma das primeiras unidades de ensino estruturadas pelo fundador e primeiro reitor da Unicamp, Zeferino Vaz, que não mediu esforços para, usufruindo da ótima relação que mantinha com o governo militar, trazer para a recém-criada Universidade professores e cientistas de grande destaque, como parte fundamental dos planos de torná-la um polo tecnológico de referência em pesquisa aplicada, voltado especialmente ao desenvolvimento industrial. Entre os muitos pesquisadores recrutados nos primórdios do instituto, estavam três personagens frequentemente lembrados na história da fibra óptica nacional: Rogério Cezar de Cerqueira Leite, José Ellis Ripper Filho e Sérgio Pereira da Silva Porto.
Porto era graduado em química e fez seu doutorado em física na Universidade Johns Hopkins (EUA). Em 1954, retornou ao Brasil para se tornar professor do ITA, onde em meados de 1959 teve contato com as primeiras pesquisas sobre o laser, realizadas no Bell Labs por Arthur Schawlow e Charles Townes – ambos posteriormente laureados com o Nobel de Física. Não pensou duas vezes quando recebeu o convite, naquele mesmo ano, para voltar aos Estados Unidos e trabalhar com a notável dupla de cientistas.
No Bell Labs, Porto ganhou notoriedade ao utilizar o laser para produzir o chamado efeito (ou espalhamento) Raman, fenômeno descrito em 1928 pelo físico indiano Chandrasekhara Raman, que acontece quando partículas de luz (os fótons) se chocam com outras moléculas, permitindo investigar suas características. Embora conhecido, o espalhamento era pouco utilizado no estudo das propriedades dos materiais pela falta de uma fonte de luz monocromática que fosse suficientemente forte e estável. Ao utilizar o laser para produzir o efeito Raman, Porto inaugurou a possibilidade de estudar as propriedades químicas e estruturais de praticamente qualquer material com qualidade e precisão até então inéditas, angariando reconhecimento e prestígio em âmbito internacional, além do cargo de supervisor de pesquisas no Bell Labs – posição que lhe permitiu recrutar jovens pesquisadores brasileiros como Cerqueira Leite e Ripper, ambos seus alunos nos tempos de ITA. Em 1967, Porto aceitou o convite para se tornar professor titular da Universidade do Sul da Califórnia, mas a vontade de retornar de vez ao Brasil era crescente.
Cerqueira Leite, que no Bell Labs também vinha se dedicando a pesquisas sobre lasers de semicondutor, foi um dos responsáveis por articular um movimento de repatriação de cientistas brasileiros que estavam nos Estados Unidos, atendendo a apelos do Itamaraty e do Senado, preocupados com a “fuga de cérebros” que prejudicava os planos de desenvolvimento nacional em curso. Após negociações frustradas com a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade de São Paulo (USP), o pesquisador chegou à Unicamp em 1970 com o desafio de ajudar a fazer do IFGW um “novo Bell Labs”. Entre os que foram convencidos por ele a encarar a empreitada estava Ripper, que chegou a Campinas em 1971 para logo formar o primeiro Departamento de Física Aplicada do Brasil. No ano seguinte, já na condição de diretor do instituto, Cerqueira Leite ajudou a convencer o então ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, a oferecer aquilo que Porto vinha exigindo para retornar ao país: a construção de laboratórios, a aquisição de equipamentos adequados e a contratação de 30 pesquisadores criteriosamente selecionados por ele, além de US$ 2 milhões voltados ao financiamento das pesquisas – o suficiente para começar a estruturar o Departamento de Eletrônica Quântica que havia idealizado.
O ano em que Porto aceitou o convite para trabalhar na Unicamp, 1972, foi o mesmo da criação da Telebras (Telecomunicações Brasileiras) pelo governo militar. Desde o golpe de 1964, as telecomunicações vinham assumindo um papel cada vez mais estratégico para os planos de integração, desenvolvimento e segurança nacional do regime. O mercado de telefonia era considerado fragmentado, desorganizado e ineficiente, com gritantes discrepâncias e problemas técnicos, fruto da atuação de diferentes empresas nacionais e estrangeiras, além da grande carência de mão de obra especializada.
Uma das primeiras ações dos militares para mudar esse cenário foi a criação, em 1965, da Embratel (antiga Empresa Brasileira de Telecomunicações), que assumiu a responsabilidade pelas ligações de longa distância internacionais e entre as diferentes regiões do país, realizadas por meio de redes de micro-ondas ou satélites. Já a Telebras entrou em cena, logo depois, para planejar, implantar e operar o Sistema Nacional de Telecomunicações. Visando padronizar e centralizar os serviços de telefonia de todo o país, a holding assumiu o controle da Embratel e passou a adquirir as operadoras estaduais das companhias telefônicas existentes, consolidando o monopólio estatal do setor. Ainda assim, para atender à crescente demanda por serviços de telefonia que acompanhava os processos de industrialização e urbanização, sem abrir mão dos interesses da nação – isto é, sem depender da importação de conhecimento ou tecnologias desenvolvidas em outros países –, os militares entenderam que seria prioritário estimular o desenvolvimento de uma indústria nacional de telecomunicações, o que demandava investir em pesquisa e na formação de profissionais da área.
Quando a notícia de que a Telebras estava planejando a construção de um centro próprio de pesquisas em telecomunicações veio à tona, um grupo de professores do IFGW procurou o então presidente da holding – o comandante Euclides Quandt de Oliveira, que depois se tornaria ministro das Comunicações do governo Ernesto Geisel – para convencê-lo de que seria mais viável inicialmente investir em grupos e pesquisas já ativos no país. Assim, em 1973, a Telebras firmou os três primeiros contratos com instituições de ensino superior: um com a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), envolvendo antenas, e dois com a Unicamp. O projeto Transmissão Digital foi coordenado pelo professor da atual Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (Feec) da Unicamp, Rege Romeu Scarabucci, outro ex-aluno do ITA que contribuiu enormemente para o desenvolvimento de dispositivos para comunicações ópticas. E o projeto Sistema de Comunicação por Laser, que recebeu um aporte inicial de US$ 290 mil da estatal, ficou sob responsabilidade de Ripper, para realização de experimentos no Laboratório de Pesquisa em Dispositivos, que coordenava juntamente com o indiano Navin Patel.
Segundo os registros históricos, foi Porto quem teve a ideia de iniciar no IFGW um projeto sobre fibras ópticas, ajudando a vender a ideia para a Telebras. Em janeiro de 1974, firmou-se um novo contrato entre a Universidade e a holding, que vinculou o Grupo Fibras Ópticas ao projeto de Ripper com lasers, passando a abranger, desse modo, dois dos componentes fundamentais para o desenvolvimento da tecnologia. O grupo formado por Porto, coordenado inicialmente pelo físico norte-americano James Moore, tinha na equipe pesquisadores de diferentes nacionalidades, entre eles o indiano Ramakant Srivastava, o holandês Eric Bochove, o alemão Wolfgang May e o suíço Willy Meyer.
O único brasileiro dessa primeira formação, o já citado José Mauro, chegou em 1976, mesmo ano em que foi inaugurado o Departamento de Eletrônica Quântica. Com o retorno de Moore aos Estados Unidos, José Mauro assumiu a coordenação do projeto, reafirmando o objetivo central do trabalho: desenvolver uma tecnologia própria para a fabricação de fibra óptica que pudesse ser posteriormente transferida para a indústria nacional.
Para aqueles pesquisadores, acostumados a trabalhar em laboratórios de ponta de países que investiam pesadamente em ciência, ousar desenvolver uma tecnologia ainda tão incipiente em um país como o Brasil se revelou um dos maiores desafios. O acesso a equipamentos e outros insumos para as pesquisas era tão complicado que não restava outra saída: era preciso improvisar.
De fato, na maioria das vezes, quando se trata de avanços científicos e tecnológicos, não existe solução mágica. Mas podem existir atalhos.
Confissões de um aprendiz de Quixote
Quando a reportagem entrou em contato com Cerqueira Leite para convidá-lo a falar sobre sua participação no desenvolvimento da fibra óptica brasileira, ele não só aceitou conceder a entrevista como disse querer aproveitar a oportunidade para desfazer muitas das fake news que ainda pairam sobre o assunto. Aos 92 anos de idade, o respeitado cientista, professor e empresário, que por décadas integrou o conselho editorial da Folha de S.Paulo, aprendeu como ninguém a atiçar a curiosidade jornalística.
Fomos recebidos em sua casa, que chama atenção por suas paredes, estantes e até escadas lotadas de incontáveis artefatos de arte reunidos ao longo da vida, segundo ele aproveitando toda e qualquer oportunidade de adquiri-los, por quantias geralmente módicas. Um cenário que fala muito sobre esse engenheiro que se consagrou como físico, mas manteve o gosto pela arte como traço fundamental de sua personalidade. Em sua autobiografia, Um Aprendiz de Quixote: Memórias de um Arruá (Verbena Editora, 2016), o professor emérito da Unicamp e presidente de honra do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) admite certo esnobismo: a erudição parece ter sido o caminho que o garoto do interior paulista – que perdeu a mãe de maneira trágica aos 4 anos de idade e o pai, dez anos depois – encontrou como refúgio para a solidão, mas também como estratégia para angariar respeito. Com Porto não foi diferente: lembrado como um dos três professores mais importantes de sua trajetória profissional, Cerqueira Leite se orgulha por ter influenciado o gosto do mentor pela música clássica, assim como demonstra gratidão pelas muitas portas que Porto lhe abriu profissionalmente.
Mas, no que diz respeito ao desenvolvimento da fibra óptica no Brasil, Cerqueira Leite acredita que os créditos geralmente atribuídos a Porto são exagerados. Como conta no trecho a seguir, o pesquisador supõe que isso se deve, na verdade, a uma travessura que só agora confessa ter cometido.
Porto faleceu em junho de 1979, aos 53 anos de idade, em Novosibirsk, na antiga União Soviética, por conta de um ataque cardíaco fulminante sofrido durante uma partida de futebol. Morreu sem saber do envolvimento de Cerqueira Leite no despretensioso furto que pode ter maculado sua imagem no Bell Labs – mas contribuído decisivamente para o desenvolvimento da fibra óptica no Brasil.
Da primeira fibra óptica ao primeiro enlace
Entre as diferentes técnicas estudadas então, em todo o mundo, para produzir fibra óptica, os pesquisadores da Unicamp optaram pela MCVD (sigla em inglês para deposição modificada de vapor químico), proposta pela Corning Glass em uma conferência sobre o tema realizada em 1975, na Inglaterra. A escolha foi uma aposta na capacidade de, por meio de vidros de alta pureza, conseguir transmitir os sinais luminosos por distâncias maiores. Além disso, de acordo com as leis vigentes no país, a MCVD não estava protegida por patente. No entanto, para conseguir aplicar os princípios básicos dessa técnica, foi preciso percorrer um árduo caminho, repleto de experimentos frustrados.
Quando finalmente foram vencidos os obstáculos que desafiavam o conhecimento e a criatividade dos pesquisadores do grupo, José Mauro achou por bem reunir testemunhas para o experimento que seria marco inaugural das comunicações ópticas no Brasil.
Embora estivessem presentes na ocasião, nem Cerqueira Leite nem Ripper se recordam daquele dia. A impressão de José Mauro de que seus convidados, apesar de satisfeitos com a primeira etapa finalmente vencida, estavam preocupados com outros projetos e pesquisas, é corroborada por Ripper, que, apesar de frequentemente associado aos avanços na área, não considera a fibra óptica sua principal contribuição à ciência.
Logo após o puxamento da primeira fibra óptica no país, a Telebras firmou um novo contrato com a Unicamp: coordenado por José Mauro, o projeto agora chamado Sistemas de Comunicações Ópticas recebeu US$ 1 milhão para aperfeiçoar o processo de fabricação da fibra e avançar até a etapa de transferência de tecnologia para a indústria.
O então reitor da Universidade já havia convencido o general José Antônio de Alencastro e Silva, segundo presidente da Telebras, a instalar o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPQD) em Campinas. Como, porém, a futura sede do centro, localizada nas imediações da Unicamp, ainda estava sendo construída, foram providenciados espaços provisórios para dar continuidade ao projeto, cujo objetivo passou a ser a elaboração da planta-piloto, isto é, um protótipo para a produção da fibra em escala industrial.
Nessa fase, o Grupo Fibras Ópticas se dividiu: uma parte prosseguiu na Universidade, onde foram concentradas as pesquisas de ponta e a formação técnica e científica de pesquisadores e profissionais, inicialmente sob a coordenação de Ramakant Srivastava; e outra, coordenada por José Mauro, foi transferida para um prédio da Embratel, no centro de Campinas, onde o CPQD passou a realizar os testes e experimentos voltados ao desenvolvimento da fibra propriamente dita. Mas a estrutura era bastante limitada: na cozinha do local, por exemplo, havia um torno e uma pequena torre para o puxamento da fibra e, na sala ao lado, funcionava um escritório e o laboratório onde eram feitas as medições, isto é, a caracterização do produto.
Durante o período no Barracão dos Amarais, o grupo foi incumbido de produzir uma fibra óptica específica para ser utilizada em um conversor de corrente elétrica da Usina Hidrelétrica de Itaipu, atendendo a uma demanda da estatal XTal do Brasil, responsável por fabricar osciladores de quartzo – mineral que, por conta da pureza e abundância no país, passou a ser cogitado como insumo para a tão sonhada indústria nacional de fibras ópticas. No entanto, quando pronta, a fibra Itaipu, como ficou conhecida, foi recusada pela fabricante sueca do equipamento. O esforço, de toda forma, não foi em vão: ela foi utilizada alguns anos depois para monitorar disjuntores da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) em testes realizados em Americana e São José do Rio Preto e representou a primeira experiência concreta de transferência tecnológica do CPQD para uma indústria, já que a XTal acabou montando no Rio de Janeiro uma torre para puxamento de fibra que, posteriormente, também serviu de modelo para a fase industrial.
No ano de 1979, parte dos pesquisadores que se dedicavam aos lasers na Unicamp acabou transferida para o CPQD, formando o Grupo Dispositivos Optoeletrônicos, com a meta de desenvolver tecnologia para a fabricação de fontes de luz, multiplexadores de comprimento de onda, que prometiam “multiplicar” os sinais em uma única fibra, e outros equipamentos necessários em sistemas de comunicação óptica. Pouco depois, em 1980, começou o planejamento para iniciar os testes de campo, com um objetivo bastante audacioso: interligar duas centrais telefônicas via fibra óptica, o que demandava solucionar uma série de detalhes técnicos.
Ao mesmo tempo, já estava em andamento no CPQD o projeto ELO-34, com o objetivo de construir um terminal para a interligação de centrais telefônicas de regiões metropolitanas via fibra óptica – uma das principais contribuições do grupo coordenado por Scarabucci. Após meses de preparação, em 1982, o Brasil finalmente pôde se orgulhar de implantar o primeiro enlace de comunicações ópticas em rua, antes mesmo de muitas das multinacionais que atuavam no setor: o ECO-I, com 4 km de extensão, que interligou as regiões de Jacarepaguá e da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro.
Transferência para a indústria
O sucesso dos testes em campo permitiu que o CPQD iniciasse o processo de transferência de tecnologia para a indústria, como previsto desde o início. O Ministério das Comunicações ficou responsável por selecionar as empresas a serem beneficiadas, enquanto a Telebras encarregou-se de fiscalizar o Sistema Nacional de Telecomunicações para impedir a instalação de produtos concorrentes. As três primeiras empresas comtempladas – Elebra, NEC e GTE – ficaram incumbidas de produzir equipamentos a serem utilizados nos sistemas de comunicação óptica, incluindo os previstos no ELO-34.
Já para a produção da fibra, abriu-se em 1983 uma concorrência pública, que teve como vencedor o Grupo ABC, que havia comprado a Xtal e iniciado a instalação de uma fábrica ao lado do CPQD, garantindo exclusividade na fabricação de fibra óptica no país pelos cinco anos seguintes. Com funcionários contratados tanto na Unicamp quanto no CPQD – entre eles, José Mauro, que ficou responsável pela implantação da fábrica –, a agora chamada ABC XTal firmou um contrato de US$ 6 milhões com a Telebras, para a produção de 2 mil km de fibra óptica em 12 meses. O primeiro lote fabricado pela empresa, com 500 km de fibra óptica produzida integralmente com tecnologia nacional, foi entregue em agosto de 1984. No mesmo ano, José Mauro ainda implantou o primeiro sistema de comunicação óptica não experimental do país, que interligou duas centrais telefônicas em Uberlândia (MG) – com fibras da ABC XTal, cabos da Pirelli e equipamentos da ABC Telettra.
Assim como ele, a maior parte dos pesquisadores que se dedicaram aos projetos da Unicamp visando ao desenvolvimento das comunicações ópticas no país acabou partindo para a iniciativa privada. Caso de Ripper e Scarabucci, que foram contratados pela Elebra, passando a se dedicar à fabricação de equipamentos e dispositivos de telecomunicação. Em 1989, Ripper fundou a AsGa – cujo nome faz referência ao símbolo químico do arseneto de gálio, material presente em semicondutores – por meio da aquisição da divisão de dispositivos óptico-eletrônicos da Elebra, que enfrentava um processo de endividamento. A empresa inicialmente se voltou à fabricação de lasers para comunicações ópticas e depois passou a investir também em amplificadores de sinal e outros equipamentos para transformar elétrons das redes tradicionais de fios de cobre em sinais luminosos, por exemplo. Além da AsGa, outras cinco empresas do ramo foram criadas nos anos seguintes na região de Campinas, geralmente encabeçadas por pesquisadores que haviam participado do processo de pesquisa e desenvolvimento da tecnologia: Padtec, Fotônica, OptoLink, Fiberwork e KomLux. Daí em diante, o polo de alta tecnologia que havia sido idealizado nos primórdios da Unicamp passou a se tornar realidade, com a implantação de muitas outras empresas na região que hoje sedia uma das mais avançadas fontes de luz síncrotron do mundo, o acelerador de partículas Sirius, no CNPEM.
Cerqueira Leite também tentou, juntamente com Ripper, montar uma fábrica para a produção dos tubos de quartzo, produto que, como já mencionado, tinha grande potencial para ser utilizado na fabricação da fibra óptica nacional. Para o pesquisador, no entanto, toda essa expectativa em torno da consolidação de uma indústria brasileira de fibra óptica, com potencial inclusive para concorrer no mercado internacional, desmoronou quando José Sarney assumiu a Presidência da República, em 1985, nomeando como Ministro das Comunicações o político baiano Antônio Carlos Magalhães.
Ripper, porém, não concorda com Cerqueira Leite. “Eu nem achava muito importante fabricar a fibra óptica no Brasil. É a mesma coisa [de pensar]: se tenho telecomunicações tradicionais, não é importante fazer cobre no Brasil. Para mim, é um fio que você usa. Eu nunca fui contra a importação”, confessa. Já José Mauro defende que, se o país, apesar de todo investimento público em pesquisa e desenvolvimento, não conseguiu colocar um produto competitivo no mercado, a melhor saída é importar.
Fato é que, desde o início dos anos 1990, com o fim da reserva de mercado, as diversas empresas que passaram a atuar no setor – além da ABC XTal, Pirelli, Bracel, Avibrás e Sid – chegaram a fabricar a maior parte dos 400 mil km de fibra óptica que começaram a ser instalados anualmente no Brasil. Esse montante, no entanto, não era suficiente para uma demanda que chegava a 1 milhão km por ano, abrindo espaço para a importação. Apesar de todos os esforços e investimentos do governo, a universalização do acesso aos serviços de telefonia continuava distante, sem conseguir superar o problema das longas filas de espera e do alto custo para se adquirir uma linha telefônica no país.
Nova geração
Como o processo de transferência de tecnologia para a indústria aconteceu principalmente por meio da transferência de recursos humanos formados na Unicamp para o CPQD e, posteriormente, para o setor privado, novos pesquisadores chegaram ao IFGW para dar continuidade aos estudos envolvendo lasers e comunicações ópticas, focando principalmente a ampliação do alcance e das taxas de transmissão de informações. Entre os que fizeram parte dessa nova geração, destacam-se o ex-reitor da Unicamp e ex-diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) Carlos Henrique Brito Cruz e os físicos Hugo Fragnito e Carlos Lenz Cesar. Todos esses, com doutorado pela Unicamp e pós-doutorado pelo Bell Labs, se tornaram docentes do Departamento de Eletrônica Quântica na década de 1980. Juntamente com o professor Luiz Carlos Barbosa, que assumiu a coordenação do Grupo Fibras Ópticas a partir de 1984, eles se envolveram inicialmente com pesquisas em torno do quartzo, como conta Lenz, atualmente professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A frustração com o fracasso do processo de transferência da tecnologia desenvolvida para a fabricação do quartzo sem bolhas não impediu, no entanto, que esses pesquisadores dessem mais um importante passo rumo ao aprimoramento dos sistemas de comunicação óptica no país. “Aquela geração anterior levou [o projeto] até a dispersion-shifted fiber (DS). Na época que o [Cesar] Évora assumiu a direção do CPQD, o trabalho deles foi conseguir essa fibra DS. E eles conseguiram – com isso você levou a dispersão óptica para o mínimo de atenuação da fibra”, explica Lenz. Para se ter uma ideia, a primeira fibra puxada na Unicamp tinha atenuação de 100 decibéis por quilômetro (dB/km), enquanto a fibra desenvolvida no CPQD perdia apenas 3 dB/km, permitindo que o sinal alcançasse, assim, distâncias maiores.
Mais uma vez, a estreita relação de pesquisadores da Unicamp com o Bell Labs foi decisiva para que o Brasil se colocasse pari passu com o que havia de mais avançado nas pesquisas na área ao redor do mundo – ainda que, diferente de Cerqueira Leite, Brito tenha trazido de lá, com a devida autorização, uma amostra da fibra dopada com érbio. Como explica o professor Lenz, o EDFA, ou erbium-doped fiber amplifier, foi um marco porque permitiu amplificar os sinais luminosos de maneira mais rápida e eficiente, possibilitando taxas de transmissão até então inéditas.
Segundo Lenz, não foi fácil convencer o pessoal do CPQD a investir no desenvolvimento dos amplificadores ópticos. Mas, quando os pesquisadores do IFGW conseguiram demonstrar que a fibra dopada com érbio realmente amplificava o sinal – e diante da possibilidade de perder a oportunidade de participar do desenvolvimento de uma tecnologia que prometia mais uma vez revolucionar as comunicações –, o cenário mudou, e grande parte da equipe do CPQD passou a se dedicar ao EDFA.
Logo no início dos anos 1990, quando os amplificadores ópticos começaram a ser comercializados, teve início uma nova corrida tecnológica, como previsto. “As empresas perceberam que a banda ia se tornar absurdamente grande, que você iria obter uma taxa de transmissão imensa. Foi a primeira vez que a transmissão por fibra óptica no mundo bateu a transmissão por todos os outros meios (fios de cobre, micro-ondas e satélites). Depois disso, toda linha tronco do mundo passou a ser de fibra óptica, encheu-se de cabos submarinos. E todos esses cabos estão cheios desses amplificadores”, ressalta Lenz.
Os investimentos da Telebras nos grupos formados na Unicamp seguiram ao menos até 1996, quando o CPQD decidiu encerrar as atividades de pesquisa e desenvolvimento de tecnologia básica. Dois anos depois, ocorreu o processo de privatização das telecomunicações no Brasil, com a abertura do mercado para agentes privados, inclusive empresas estrangeiras, em um momento de grandes mudanças tecnológicas, em especial pela expansão da telefonia móvel e dos serviços de internet a que assistimos desde então. “O CPQD poderia ter virado, por exemplo, uma organização social como é o [Laboratório Nacional de Luz] Síncrotron. E aí eles transformaram em uma coisa de software e jogaram fora uma capacidade que só o CPQD tinha, de produzir as fibras, de produzir os semicondutores… E esse material que estava lá, se você deixa dois anos parado, pode jogar fora porque você não usa mais”, lamenta Lenz.
Outro aspecto que pode ter contribuído para as mudanças observadas no período pós-privatização foi uma grande crise mundial que, no início dos anos 2000, abalou as empresas do setor. Segundo Lenz, reflexo de um fenômeno chamado “economia de redes”, em que o valor de uma rede de comunicação é determinado pelo número de seus usuários elevado ao quadrado, fazendo com que o seu potencial de mercado seja proporcional ao seu tamanho ou extensão. Com base em uma projeção de que o mercado de fibras ópticas dobraria a cada três meses, as empresas ao redor do mundo, ao longo dos anos 1990, investiram pesadamente na expansão de suas redes. Mas a demanda de usuários não correspondeu às expectativas: na virada do século, a maior parte das fibras ópticas instalada estava apagada – fenômeno que ficou conhecido como dark fiber.
“Quando o pessoal percebeu que só estava usando 5% da capacidade [instalada de fibra óptica], nas bolsas de valores ocorreu o estouro das ‘ponto com’s’: todas as empresas de alta tecnologia despencaram. E aí pararam a produção de fibra no mundo todo. Afinal, por que eu vou continuar produzindo fibra se só estou usando 5% da capacidade que já está instalada?”, reflete Lenz. No Brasil, por exemplo, um dos impactos dessa crise foi o fechamento da ABC X-Tal. “Mas logo depois, em questão de dois anos, o mercado já estava se recuperando. E estamos precisando de mais fibra hoje, porque, na hora em que a fibra chegou à casa das pessoas, a demanda aumentou muito: uma coisa é só a linha tronco ligando o principal; outra coisa é a capilaridade para chegar de casa em casa”, avalia o professor.
Como ressalta José Mauro, apesar de toda a evolução tecnológica que se seguiu, são muitos os fatores que fazem da fibra óptica uma tecnologia até hoje insuperável.
Para além das telecomunicações, um legado científico
Um dos legados mais importantes das pesquisas realizadas na Unicamp em cooperação com a Telebras foi a aprovação, no ano 2000, do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof), que até 2014 foi um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da Fapesp, com investimento de R$ 24 milhões no período. Além de ter fomentado o aprimoramento dos amplificadores ópticos usados em sistemas de multiplexação densa por divisão de comprimento de onda (DWDM, na sigla em inglês), permitindo multiplicar a quantidade de feixes de luz em uma única fibra, novas linhas de pesquisa foram iniciadas na área, sempre com a perspectiva de contribuir para a formação de profissionais e pesquisadores de alto nível.
A moderna infraestrutura de pesquisa viabilizada pelo Cepof culminou, em 2001, na criação pelo CPQD da empresa Padtec, que até hoje fabrica e comercializa equipamentos para sistemas de comunicação óptica. E também estimulou a realização de projetos de ponta para o desenvolvimento e fabricação de chips e dispositivos fotônicos, levando à criação da BrPhotonics, joint venture do CPQD com a empresa norte-americana GigOptix que se manteve em atividade até o final de 2017. Esses são apenas dois exemplos de como o ciclo de geração de conhecimento na Unicamp, de desenvolvimento no CPQD e de transferência de tecnologia para a indústria continuou mesmo após a privatização do setor de telecomunicações no país.
Com o fim dos projetos em parceria com a Telebras, o Grupo Fibras Ópticas se transformou no Grupo de Fenômenos Ultrarrápidos e Comunicações Ópticas (Gfurco), que desempenhou papel fundamental em duas outras importantes iniciativas na área: a Kyatera, rede de fibra óptica de alta velocidade financiada pela Fapesp que interconectava centros de pesquisa, universidades, empresas e agências de fomento, com foco em experimentos com altas taxas de transmissão; e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Fotônica para Comunicações Ópticas (Fotonicom), sediado na e liderado pela Unicamp. O Fotonicom reúne dez instituições de ensino e pesquisa de diferentes regiões do país, além de duas empresas de alta tecnologia, e tem se dedicado, desde 2008, a estudos envolvendo dispositivos avançados em nanofotônica e redes de comunicação óptica de alta capacidade, com financiamento do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da Fapesp.
Outra área de pesquisa que avançou a partir do legado dos estudos pioneiros realizados no IFGW com lasers e comunicações ópticas foi a biofotônica, em especial sob a liderança de Lenz. “Na biofotônica, eu agora estou usando meu laser óptico, a óptica não linear etc. para investigar o que acontece na biologia do nível da molécula até o tecido”, explica. Ele conta que foi ainda durante o pós-doutorado no Bell Labs que teve a oportunidade de aprender sobre as pinças ópticas com seu inventor, o físico norte-americano Arthur Ashkin, laureado com o Nobel de Física em 2018 – encontro que possibilitou, após o retorno dele ao Brasil, o desenvolvimento da primeira pinça óptica no país. E o que parecia improvável – utilizar a luz, ou melhor, os lasers para capturar e manipular partículas, átomos, moléculas e células vivas – passou a ganhar cada vez mais espaço em suas pesquisas dali em diante.
Dentre os três campos de aplicação da biofotônica – utilização dos lasers para terapias ou tratamentos diversos, como cirurgias e outros procedimentos médicos ou estéticos; para o diagnóstico de doenças, tal como sensores avançados; ou para experimentos em biologia celular, permitindo “o controle da vida em seu nível mais profundo” –, Lenz optou pelo último.
O Instituto Nacional de Fotônica Aplicada à Biologia Celular (Infabic) desenvolve e disponibiliza técnicas de última geração baseadas em óptica não linear para o estudo de materiais biológicos, por meio de um avançado laboratório sediado no Instituto de Biologia da Unicamp. Já no IFGW, Lenz segue como docente colaborador do Grupo de Biofotônica, vinculado ao Departamento de Eletrônica Quântica, cujo principal desafio tem sido integrar diversas técnicas de microscopia e análise de espectro para extração do máximo de informações sobre as células.
A trajetória de Lenz é um exemplo de como o legado das pesquisas com lasers e comunicações ópticas realizadas de forma pioneira no IFGW se desdobraram em novos desafios científicos, contribuindo para a ampliação dos horizontes da física, especialmente por meio da cooperação com outras áreas do conhecimento. Olhando para trás, ele não se arrepende de nenhum dos caminhos que percorreu depois do dia em que um respeitado cientista, muito amigo de seu pai, convidou o “meninote de calças curtas” que vivia no Ceará a desbravar o que era apenas uma promessa de universidade de ponta no interior paulista. Assim como aconteceu com muitos outros jovens cientistas, foi Sérgio Porto quem lhe abriu as portas para um mundo até então desconhecido, que não imaginava pudesse ser tão fascinante. Afinal, ao longo da história os físicos estiveram ora associados ao progresso e às maravilhas do conhecimento, ora inevitavelmente responsabilizados por terem levado o poder bélico da humanidade a um patamar tão assustador quanto devastador. Para Lenz, que optou por usar a física para investigar a vida, é preciso sempre lembrar: “Conhecimento é conhecimento: você não pode controlar quem vai usar no final.”
FICHA TÉCNICA
Edição: Raquel do Carmo Santos
Texto: Juliana Franco
Fotos: Antonio Scarpinetti, Reprodução
Vídeos: João Ricardo Boi, Marcos Botelho Jr
Ilustrações: Rafaela Repasch
Arte: Alex Calixto, Paulo Cavalheri
Design web: Renan Barreto
Edição de vídeo: Kleber Casablanca
Edição de áudio: Juliana Franco
Coordenação: Álvaro Kassab, Laura Freitas Rodrigues