
‘Retórica do arquivamento’ desvaloriza tipologias arquitetônicas
Dissertação analisa as políticas sociais e econômicas que influenciam a decisão de rejeitar, no caso de certos imóveis, proteção como patrimônio de relevância

Ao ser reconhecido como um patrimônio passível de preservação, entende-se que um determinado bem possui relevância histórica, cultural, arquitetônica, ambiental ou um valor afetivo para certa comunidade. No entanto imóveis que poderiam ganhar esse aval nem sempre o conquistam. Pensando nisso, o historiador Lucas Gregate, em sua dissertação de mestrado, defendida recentemente na Unicamp, analisou a “retórica do arquivamento” na qualidade de política patrimonial.
O pesquisador estudou a atuação do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) do Estado de São Paulo entre 1982 e 2020. Na pesquisa, Gregate analisou em profundidade os pedidos de patrimonialização de alguns cinemas de rua localizados no interior de São Paulo e do Terreiro Santa Bárbara, de candomblé, situado na capital paulista.
Para mostrar a importância de revisitar casos arquivados de pedidos de tombamento, o historiador faz uma analogia: “Quando nós trabalhamos com um patrimônio oficialmente tombado, estamos atuando com a fotografia patrimonial do Estado. Então, costumo dizer que estamos enxergando o álbum de fotografias do Estado. E, quando nós trabalhamos com processos arquivados, estamos atuando com os negativos que ficaram no estúdio de revelação”.
A “retórica do arquivamento”, explica o pesquisador, refere-se a “pressões múltiplas que acontecem nos processos e que vão encaminhando esses processos para o arquivamento”. Os casos escolhidos pelo pesquisador ilustram bem essa dinâmica.

Mudanças na valorização patrimonial

O Terreiro Santa Bárbara, considerado o primeiro de candomblé da cidade de São Paulo, foi registrado em 1965. Atribui-se a Julita Albuquerque, conhecida como Mãe Manaundê, a criação do local. O pedido de tombamento, de 1993, defendia que o local representa o “primeiro baluarte da cultura afro oficializada no Estado de São Paulo”. No entanto a solicitação viu-se negada e arquivada em 2005. Após a abertura de um novo pedido em 2019, houve o aceite.
“O que mudou entre os dois pareceres?”, pergunta-se, no estudo, o historiador. Nesse meio-tempo, destaca, o imóvel passou por um processo de reconhecimento enquanto patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), um órgão federal. “Parece que, na estrutura dos órgãos, é mais fácil atribuírem essa patrimonialização imaterial para as religiões afro-brasileiras”, afirma.
Ao reconhecimento, somou-se a intensa mobilização de comunidades de terreiro e de pesquisadores da área, resultando na criação do Grupo de Trabalho Territórios Tradicionais de Matriz Africana Tombados, em 2018. Esse grupo de trabalho (GT) apresentou estudos referendando a materialidade e a imaterialidade dos locais religiosos.
Em 2019, o tombamento do Santa Bárbara, junto a um conjunto de terreiros, ganhou aprovação. “O caso do terreiro é muito bom para a gente entender como essa lógica vai mudando com o tempo e como a própria composição dos órgãos ao longo do tempo vai decidindo de fato o que será apreciado como algo com valor patrimonial.”
O abandono dos cinemas
Ao analisar a negativa para o tombamento de dois cinemas de rua, o Cine Teatro da cidade de São Miguel Arcanjo e o Cine São Miguel de Garça, Gregate identificou uma despatrimonialização e desqualificação dos equipamentos de cultura. “Esses cinemas acabam desaparecendo devido a pressões econômicas do mercado ou por causa do abandono. Mas, ao mesmo tempo, essas ocorrências causam um impacto muito grande nas comunidades locais, que frequentemente acabam ficando sem um cinema.”
No caso de São Miguel Arcanjo, mesmo a população tendo endereçado uma petição solicitando um projeto de utilização pública do espaço para a promoção da cultura, o imóvel acabou abandonado e, em 2019, reformado totalmente, transformando-se em um local de comércio.
Analisando esses casos, o historiador diz perceber que, dentro da retórica do arquivamento, há uma desvalorização de determinados tipos de arquitetura. “Existem tipologias arquitetônicas não tão bem quistas ou tão bem observadas pela burocracia do dia a dia ou pelos conselhos, que não reconhecem determinada tipologia como constitutiva da história do Estado de São Paulo. Esse é o caso dos cinemas, por exemplo. A gente depara-se com linguagens arquitetônicas que estão sumindo e que não são reconhecidas.”
Outra hipótese de Gregate sugere haver uma diferença de atuação do Condephaat no interior de São Paulo e na capital. “Se, na capital, a gente vê cinemas de rua que serão no mínimo apreciados pelo conselho, no interior existe uma miríade de cinemas que estão simplesmente desaparecendo.”
Orientadora da dissertação, a professora do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp Cristina Meneguello destaca que vem, junto a um grupo de orientandos, analisando esses imóveis rejeitados quanto a sua qualidade de patrimônio passível de proteção, um tema pouco explorado na área. Meneguello salienta que, embora sem reconhecimento oficial, esses bens ainda guardam valor. “Eles só não receberam a chancela, mas têm valor para aquela comunidade, têm um valor arquitetônico. Então, também queremos nos livrar da ideia segundo a qual só o que recebe a chancela [oficial] pode ser considerado patrimônio.”
Sub-representação da sociedade civil
Meneguello já fez parte do Condephaat e ressalta as limitações de um órgão em que há uma sub-representação da sociedade civil. Até 2019, lembra, havia quatro representantes de cada universidade estadual pública (além da Unicamp, a Universidade de São Paulo — USP — e a Universidade Estadual Paulista — Unesp) no conselho. Depois, sobraram apenas um representante de cada uma dessas universidades e outro da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
“Esse enxugamento foi proposital, justamente para enfraquecer a sociedade civil. Desde que isso aconteceu, a gente tem visto muitos desmandos, muitas oportunidades perdidas de preservação de lugares importantes, principalmente no interior do Estado. Quando estudamos esses casos recusados, percebemos não se tratar só de questões técnicas a determinar o que vira patrimônio e o que não vira. Trata-se de questões técnicas somadas a questões sociais e políticas”, conclui.